Projeto Allan Kardec: "Rascunho da carta de Kardec para o Sr. Tiedeman"


Em continuidade à série de pesquisas sobre o acervo do Projeto Allan Kardec da Universidade Federal de Juiz de Fora - UFJF-MG, trazemos aqui a contextualização de mais um documento inédito originário da coleção particular do Dr. Canuto Abreu. Desta vez, o manuscrito destacado é uma correspondência do codificador espírita, catalogado como "Rascunho de carta para o senhor Tiedman [DD/05/1857]", cuja contextualizamos nós faremos logo após a transcrição.

Saiba mais sobre o Projeto Allan Kardec.

A seguir, imagens do manuscrito original:

Confira adiante a transcrição do documento, em francês:


]Maio de 1857.[

Mr. Tiedman, Il y a quelque temps <un> Mr. est venu me demander à mon bureau dans un moment où par hasard je me trouvais absent. Quoiqu’il n’ait pas donné son nom, à la manière dont on me l’a dépeint, j’ai pensé que c’était vous, et j’ai d’autant plus regretté cette circonstance que je suis rentré une minute après votre départ et que j’avais le plus grand désir de vous voir. Mes occupations ne m’ont pas permis d’aller chez vous comme j’en ai eu plusieurs fois l’intention. J’espère que j’en serai <bientôt> dédommagé.

Le succès du Livre et son effet moral ne se démentent pas ; j’en juge par les lettres nombreuses que je reçois et qui toutes témoignent de l’impression qu’il produit ; aujourd’hui <seulement> j’en ai reçu 5. Cela m’oblige à une correspondance très active, pour répondre à toutes les questions que l’on m’adresse. Beaucoup de ces lettres contiennent des documents très précieux, sous le rapport des faits et des communications spirites. Ce sont des matériaux qui me seront fort utiles. En même temps j’en recueille de mon côté et je prépare des travaux d’une grande importance pour l’accomplissement de l’œuvre à laquelle je me suis consacré ; or plus j’avance plus cette œuvre grandit, et plus je vois l’immensité des travaux qu’elle nécessite ; mais cela ne m’effraie pas ; je sais que les Esprits me soutiennent dans ma tâche. La science spirite est immense comme toutes les sciences philosophiques ; elle exige une étude longue, patiente, persévérante et de profondes observations ; je me livre à cette étude avec un zèle infatigable, et c’est sans doute pour m’encourager que les Esprits semblent multiplier autour de moi les sujets d’observation que je puise dans les hommes et dans les choses ; aussi rien n’est perdu pour moi, et le fait le plus insignifiant en apparence est un sujet d’étude qui trouvera sa place en temps utile. Les Esprits m’ont dit: Marche, nous te soutiendrons tiens toi prêt pour quand le <moment sera> venu. Eh ! bien ! je marche, et <en> marchant je récolte ; je suis arrivé au faîte de la montagne ; je découvre l’horizon devant moi ; je vois la route à suivre pour atteindre le but.


Agora, a tradução da carta:

]Maio de 1857.[

Senhor Tiedman,

Faz algum tempo, um senhor procurou-me no escritório, num momento em que por acaso eu estava ausente. Embora não tenha deixado o nome, pensei logo no senhor, pela maneira como o descreveram. E lastimei ainda mais o desencontro porque regressei um minuto após sua partida e tinha grande desejo de o rever. Minhas ocupações não me têm permitido ir à sua casa, como várias vezes tive a intenção. Mas espero ter em breve essa satisfação.

O sucesso do Livro e seu efeito moral não se têm desmentido. Assim julgo pelas inúmeras cartas que venho recebendo, todas testemunhando a impressão que ele produz. Só hoje já recebi cinco. Isso me obriga a manter ativa correspondência para responder às perguntas que me fazem. Muitas dessas cartas trazem informes preciosos de fatos ou comunicações espíritas. Esses materiais serão muito úteis para mim. Ao mesmo tempo, de meu lado, recolho outros e preparo trabalhos de grande importância para a realização da obra à qual me estou consagrando. Ora, quanto mais avanço, mais essa obra se engrandece e mais percebo a imensidade dos trabalhos de que ela necessita. Isto, porém, não me assusta; sei que os Espíritos me sustentam em minha tarefa. A ciência espírita é imensa como todas as ciências filosóficas; exige estudo longo, paciente, perseverante e profundas observações. Dedico-me a esse estudo com zelo infatigável, e é sem dúvida para me encorajar que os Espíritos parecem multiplicar à volta de mim os motivos de observação que se me deparam nos homens e nas coisas. Também nada se perde para mim, e o fato mais insignificante na aparência constitui um objeto de estudo que encontrará seu aproveitamento em tempo útil. Os Espíritos me disseram: “Vás caminhando, nós te apoiaremos; fica pronto para quando o momento chegar.” Pois bem! Sigo caminhando e, no caminho, vou colhendo; estou me aproximando do cimo da montanha, já descubro o horizonte ante mim e vejo o rumo a seguir para atingir o objetivo.

Vamos então entender melhor o contexto desta importante correspondência.


Os personagens, a data e o assunto

O presente documento é, como o próprio título informa, um rascunho de uma correspondência (Allan Kardec tinha o hábito de arquivar uma cópia das cartas que ele remetia, a fim de deixar registrado tudo de que tratava com seus correspondentes); portanto, são dois personagens: Kardec, o remetente, e o Sr. Tiedman, o destinatário. Falaremos logo mais sobre eles, mas é bom nos atentarmos antes à data e o assunto.

O tal "Livro" citato na carta é exatamente O Livro dos Espíritos, que na época era uma obra recém-lançada: a correspondência está datada de maio de 1857, ou seja, um mês após o lançamento do livro inaugural do Espiritismo, que foi levado a público em 18 de abril do mencionado ano. A propósito, os personagens em questão estão intimamente interligados a esta publicação.


Quanto ao remetente da carta, precisamente o autor de O Livro dos Espíritos, cremos ser dispensável sua apresentação, embora julguemos útil fazer lembrar que a alcunha "Allan Kardec" era um nome novo na praça, porque se tratava de um pseudônimo exclusivamente reservado para se referir àquele que estava decidido a "consagrar-se à obra espírita", distinguindo-se de sua vida pessoal e profissional, sendo conhecido como o "Prof. Rivail", simplificação do nome civil "Hippolyte León Denizard Rivail".

Já o destinatário, o Sr. Tiedman, provavelmente é desconhecido da grande maioria dos espíritas, embora tenha sido uma peça-chave para a publicação em pauta na carta. A grafia correta do seu nome, na verdade, é Tiedeman; sua identidade e mais detalhes pessoais foram descobertos pelo nosso confrade Carlos Seth Bastos, o Sir CSI do Espiritismo, e uma pequena biografia dele encontra-se à disposição no mesmo portal do Projeto Allan Kardec da UFJF-MG (Veja aqui). Em síntese, Johannes Nicolaas Tiedeman (1821-1888) era um rico holandês devotado ao Magnetismo e ao espiritualismo, também conhecido em Londres pelo cognome "Martheze", descrito como "um dos generosos partidários do espiritualismo" pelo jornal Le Spiritisme (jornal da União Espírita Francesa) na edição da 1ª quinzena de novembro de 1888. Pois foi com a ajuda financeira do Sr. Tiedeman que Kardec conseguiu empreender a confecção de O Livro dos Espíritos — algo, aliás, nada barato no século XIX, além de burocrático.

Tiedeman fez parte de um grupo de estudos espiritualistas formado por ele e mais quatro homens eminentes: Victorien Sardou (dramaturgo e escritor francês) e seu pai Antoine Léandre Sardou (autor de livros escolares e historiador), Saint-René Taillandier (filósofo, educador, historiador, homem de letras e político) e Pierre-Paul Didier (livreiro e editor, que mais tarde editaria as obras de Kardec) Eles começaram a frequentar as sessões mediúnicas e se envolveram nas investigações dos fenômenos produzidos nessas reuniões, concluindo pela imortalidade da alma e seu poder de comunicação com os encarnados na Terra. Estes homens — sentindo-se incapazes para dar continuidade a esse trabalho e procederem à classificação das comunicações mediúnicas, obtidas ao longo de cinco anos, através dos médiuns que colaboraram com as suas sessões — resolveram entregar seus arquivos para que o Prof. Rivail (futuro Allan Kardec) pudesse sistematizar tudo didaticamente, tal como o fez em seu trabalho de codificação do Espiritismo.

Isso explica por que Kardec parece querer prestar contas do sucesso do livro publicado recentemente — e que já era um sucesso.

Ainda sobre o Sr. Tiedeman, vamos encontrar referências no livro Obras Póstumas, na transcrição das anotações pessoais de Kardec datadas de 15 de novembro daquele mesmo 1857, referentes ao projeto de lançar a Revista Espírita: numa sessão mediúnica particular, através da médium Ermance Dufaux, o pioneiro espírita pergunta aos guias espirituais:

— Tenho a intenção de publicar um jornal espírita: julga que o conseguirei e me aconselharia a fazê-lo? A pessoa a quem me dirigi, Sr. Tiedeman, não parece resolvida a me prestar o seu auxílio financeiro.
— "Conseguirá o auxílio, com perseverança. A ideia é boa; porém, precisa deixá-la amadurecer mais."
[...]
— Devo agir sem a ajuda do Sr. Tiedeman?
— "Aja com ou sem a ajuda dele; não se inquiete por causa dele. Você pode prosseguir sem ele."
Obras Póstumas, Allan Kardec - 2ª parte: 'A Revista Espírita'

Enfim, como sabemos, a revista foi lançada em 1 de janeiro de 1858, também com grande sucesso. Quanto ao financiamento, ele não se concretizou; sobre isso, Kardec anotaria: "Reconheci mais tarde que para mim seria uma felicidade não ter tido quem me fornecesse fundos, pois assim me conservei mais livre, ao passo que outro interessado teria talvez querido impor-me suas ideias e sua vontade e criar embaraços para mim. Sozinho, eu não tinha que prestar contas a ninguém, embora, pelo que respeitava ao trabalho, a tarefa me fosse pesada."

OBRAS PÓSTUMAS


O sucesso do Livro

A carta em evidência também nos faz adentrar na intimidade dos trabalhos de Kardec logo após a publicação que inaugurou a Doutrina Espírita. Tudo corria muito bem — quiçá além das expectativas. Vemos ainda o seu comprometimento pessoal e a sua compreensão quanto ao trabalho que estava por ser continuado: "Ora, quanto mais avanço, mais essa obra se engrandece e mais percebo a imensidade dos trabalhos de que ela necessita. Isto, porém, não me assusta; sei que os Espíritos me sustentam em minha tarefa."

E a tarefa não seria pequena; o rascunho da carta nos dá conta de que a rotina do autor estava repleta de compromisso, inclusive falando da crescente correspondência. E era só o comecinho de uma profícua e brilhante jornada de uma década e meia, até a desencarnação, que o surpreendeu, em meio ao trabalho doutrinário; por isso, quanto mais o conhecemos, mais admiramos.
Salve, salve, Allan Kardec!

Saiba mais sobre O Livro dos Espíritos.


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Confira a publicação original desta pasta de correspondência da SPEE no portal do Projeto Allan Kardec.

Veja as demais postagens que fizemos contextualizando os documentos disponibilizados pelo Projeto Allan Kardec:

E, é claro, visite também o portal online do 
Projeto Allan Kardec da UFJF-MG.

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