quarta-feira, 23 de agosto de 2023

Projeto Allan Kardec: Carta de Allan Kardec para sua esposa, Amélie, durante o retiro do Codificador Espírita na Normandia


Mais uma peça anexada ao acervo do Projeto Allan Kardec da Universidade Federal de Juiz de Fora - UFJF-MG: um manuscrito de Allan Kardec com uma cópia da carta para sua esposa, Amélie, datada de 15 de setembro de 1863, documento provindo do acervo Forestier. No seu teor da correspondência, vários assuntos interessantes para compreendermos melhor o trabalho do Codificador do Espiritismo, além de sua índole particular. 

Saiba mais sobre o Projeto Allan Kardec.

Primeiro, vamos conferir o conteúdo da carta, depois faremos a contextualização dos assuntos tratados:


Fotocópia do manuscrito

Confira o manuscrito original no portal da UFJF.


Transcrição (em francês)

Mardi 15 7bre 1863

Ma bonne Amélie, j’ai reçu ta lettre ce matin, et quoique je n’aie, pour mon compte, rien de bien particulier à te dire, je ne veux pas tarder de remercier MM. d’Ambel et Canu de ce qu’ils ont fait pour Mr Costeau, car ils ont agi en vrais spirites ; leur allocution est admirable ; ils ont montré du cœur, ce qui ne me surprend pas, car leur foi est sincère. M. Vézy doit recevoir aussi sa part de félicitations.

Quant à la veuve, tu sais que Mr Prévert m’a remis 200 frs pour de bonnes œuvres ; tu peux donc y puiser pour lui venir en aide. Cet argent ne peut pas avoir un meilleur emploi.

Je suis charmé des bonnes nouvelles que tu me donnes ; les Esprits ont eu raison de me dire qu’à mon retour je trouverais un progrès satisfaisant. La communication qu’Éraste m’a donnée par M. d’Ambel est très encourageante pour moi, et je l’en remercie ; elle concorde avec celle que La Vérité m’a donnée par Mme <Judith>.

Tu ne me parles pas de ta santé, ce qui me fait présumer qu'elle est bonne, cependant /2/ j'aurais été bien aise d’en avoir une certitude plus positive. Pour moi, je vais très bien ; les derniers bains que j’ai pris m’ont fortifié d'une manière remarquable ; je n’ai plus cette faiblesse de jambes que j’avais depuis longtemps. J’en ai fait l'épreuve dimanche. Le temps était magnifique, et j’ai fait le paresseux, c’est à dire que j’ai très peu travaillé. Après mon bain, j’ai été faire une longue promenade en mer dans un petit bateau à voile, et quoique la mer fut calme, j’ai pensé que tu ne m’aurais pas accompagné avec plaisir dans cette coquille de noix se balançant sur les flots. L’après-midi je suis allé faire une excursion le long de la mer, dans les rochers éboulés qui forment le cap de la mer au dessous des signaux et des phares, puis j'ai grimpé de la mer au petit vallon qui précède les signaux, en gravissant les rochers et les falaises ; et, chose extraordinaire, je n’ai point été essoufflé et suffoqué, comme je le suis ordinairement en montant un simple escalier. Je suis revenu par la chapelle de Notre Dame des flots, et suis redescendu au bord de la mer dîner au parc aux huîtres. Rentré chez moi à 7h1/2, j'étais un peu fatigué et me suis couché, et /3/ j’ai dormi jusqu’à 8 heures du matin. Depuis quelques jours le temps est admirable ; pas un nuage au ciel, un soleil resplendissant ; une mer tranquille comme un lac parsemée d'une multitude de navires et d’embarcations de toutes grandeurs : c’est un spectacle ravissant. Ma longue mer est pour moi une grande distraction ; j’en constate chaque jour la beauté ; il n’est pas un point se montrant à l’horizon, que je n’explore, et il en ressort souvent des observations intéressantes et instructives qui me font méditer, car tout est instruction pour celui qui veut réfléchir.

Dimanche prochain sera mon dernier dimanche ici ; j’aurai une petite réunion spirite chez M. Rodier qui se fait une fête de me recevoir ; puis je ferai mes préparatifs de départ. Le jour n’en est pas encore fixé, mais je pense que ce sera mardi, ou mercredi au plus tard ; du reste je t’en aviserai.

Je partirai par le convoi de 10 h 1/2 du matin, ce qui fait que j'arriverai à 6 h 1/2 du soir, heure commode pour tout le monde.

Adieu chère Amélie, ton bien

affectionné

A.K.

PS. Quand tu me récriras, tâche que ta lettre me parvienne dimanche matin, et fais en sorte, si cela se peut, d’y joindre la communication de Costeau.


Tradução

Terça-feira, 15 de setembro de 1863.

Minha querida Amélie, recebi tua carta esta manhã e, embora de minha parte eu não tenha nada de especial para te dizer, não queria demorar para agradecer ao senhor d’Ambel e ao senhor Canu pelo que eles fizeram pelo Senhor Costeau, pois atuaram como verdadeiros espíritas; a fala deles foi admirável; demonstraram ter bondade, o que não me surpreende, pois a fé que eles têm é sincera. Agradeço, igualmente, ao senhor Vézy.

Em relação à viúva, tu sabes que o Senhor Prévent deu-me 200 francos para as boas obras; tu podes valer-te dessa quantia para ajudá-la. Esse dinheiro não poderia ter melhor destino.

Estou entusiasmado com as boas notícias que tu me deste; os Espíritos tinham razão em me dizer que, quando voltasse, eu encontraria um progresso significativo. A comunicação que Erasto me fez através do senhor d’Ambel me é muito encorajadora, e por isso lhe agradeço; a mensagem está de acordo com aquela que A Verdade me comunicou através da senhora Judith.

Tu não me disseste nada a respeito da tua saúde, o que me faz presumir que ela esteja bem, mas /2/ eu ficaria mais tranquilo se tivesse uma confirmação a esse respeito. Quanto a mim, estou muito bem; os últimos banhos que tomei me fortaleceram de uma maneira incrível; não tenho mais aquela fraqueza nas pernas que eu vinha sentindo há muito tempo. Pude provar isso no domingo. O tempo estava muito bom, e eu estava bem tranquilo, ou seja, quase não tive trabalho. Após meu banho, fiz um longo passeio no mar em um pequeno barco a vela e, embora o mar estivesse calmo, pensei que tu não irias gostar de me acompanhar naquela casca de nozes balançando sobre as ondas. Depois do almoço, saí para fazer um passeio até a beira do mar, descendo por entre as rochas que formam o cabo, logo abaixo de onde ficam os sinais e os faróis. Depois de chegar perto do mar, subi até o pequeno vale que antecede os sinais, escalando as rochas e as falésias; e, surpreendentemente, não fiquei nem cansado nem sem fôlego, como eu costumava ficar quando subia uma simples escada. Voltei passando pela capela de Notre Dame des Flots [Nossa Senhora das Ondas], e desci novamente até a beira do mar para jantar no parque das ostras. Voltei para casa às 19h30; estava um pouco cansado e fui deitar; /3/ dormi até as 8h da manhã. Nesses últimos dias, o tempo está excelente, sem nuvens no céu, um sol esplêndido; um mar tranquilo como um lago repleto de navios e embarcações de vários tamanhos: é um espetáculo encantador. <O mar extenso> é para mim uma grande distração; constato a beleza disso a cada dia; não há um ponto distante no horizonte que eu não explore, e frequentemente me dou conta de observações interessantes e instrutivas que me fazem meditar, pois tudo é instrução para quem quer refletir.

O próximo domingo será meu último domingo aqui; terei uma pequena reunião espírita na casa do senhor Rodier, que faz questão de me receber; logo após, farei os preparativos para a minha partida. O dia em que irei embora ainda não está decidido, mas penso que será na terça ou, no mais tardar, na quarta-feira; de qualquer modo, eu te avisarei.

Irei de ônibus, por volta das 10h30 da manhã; assim chegarei às 18h30, uma hora cômoda para todos.

Até breve, querida Amélie,

Carinhosamente,

A.K.

PS: Quando tu me escreveres novamente, tenta me enviar tua carta na manhã de domingo e certifica-te, se possível, de incluir a comunicação de Costeau.


Contextualizando a carta

A referida carta é uma resposta à carta enviada no dia anterior (14 de setembro de 1863). Madame Kardec estava em Paris e o seu esposo estava na comuna do Havre, na Normandia, litoral Norte da França, em retiro especial que ele propôs a si mesmo, tanto para revigorar suas forças físicas (o excessivo trabalho estava penalizando a saúde de Allan Kardec) como para uma melhor concentração na elaboração do novo livro que ele estava prestes a publicar: O Evangelho Segundo o Espiritismo. Nesse ínterim, Kardec e Amélie trocavam correspondência com muita frequência, e sempre com muito carinho mútuo.

E vemos, assim, que a estadia à beira-mar estava fazendo bem ao Codificador do Espiritismo. Kardec fala do seu encanto pelo oceano e até de seu prazer em velejar por sobre as ondas. Na volta do passeio, diz ele que passeou pela capela de Nossa Senhora das Ondas, que, aliás, tem uma bela vista para a praia (veja imagens abaixo). Saiba mais sobre a Chapelle de Notre-Dame-des-Flots clicando aqui (em francês).



Podemos ver também como Kardec buscava inspiração através das belezas da natureza. Diz ele: "Nesses últimos dias, o tempo está excelente, sem nuvens no céu, um sol esplêndido; um mar tranquilo como um lago repleto de navios e embarcações de vários tamanhos: é um espetáculo encantador. <O mar extenso> é para mim uma grande distração; constato a beleza disso a cada dia; não há um ponto distante no horizonte que eu não explore, e frequentemente me dou conta de observações interessantes e instrutivas que me fazem meditar, pois tudo é instrução para quem quer refletir..."

Antes, porém, Kardec trata dos afazeres como líder do movimento espírita, com total cooperação da dedicada esposa, é claro! Ele recomenda que a sua senhora faça uso de um dinheiro recebido de uma doação (do Sr. Prèvent) para fins de "boas obras". Pois, sim! As pessoas procuravam Kardec para lhe oferecer contribuições em favor da causa espírita (e não ousamos admitir que o casal Kardec se valesse desses donativos para uso pessoal).

E a ocasião parecia bem apropriada para a utilização daquela verba. Havia falecido naqueles dias uma pessoa bastante honrada, espírita convicto e membro da Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas - SPEE presidida por Kardec: o Sr. Antoine  Costeau, sepultado em 12 daquele setembro, numa sepultura muito humilde, dado que o falecido era de poucos recursos financeiros.

Ainda sobre o Sr. Costeau, a Revista Espírita de outubro daquele ano de 1863 lhe consagra um artigo: "Enterro de um Espírita na vala comum", descrevendo-o assim:

"Era um homem de coração, que o Espiritismo havia reconduzido a Deus; sua fé no futuro era completa, sincera e profunda; era um simples calceteiro, que praticava a caridade por pensamento, por palavras e por atos, conforme seus parcos recursos, pois sempre achava meios de assistir aos que tinham menos que ele."

Kardec menciona a boa ação do Sr. D'Ambel e do Sr. Canu (de quem falaremos mais adiante) porque foram estes dois cavalheiros (respectivamente vice-presidente e secretário da Sociedade Espírita de Paris) quem conduziram o enterro e pronunciaram as palavras de conforto à família que ficou órfã de seu chefe.

Na carta, Kardec também agradece a participação do Sr. Vézy, que era um dos médiuns da SPEE, a quem coube evocar o Espírito do confrade recém-desencarnado, na ocasião do sepultamento, e transmitir à céu aberto, comovendo a todos, inclusive os coveiros (destaca Kardec) a mensagem daquele que agora desfrutava das benesses de ter sido bem preparado para o retorno à pátria espiritual: "“Obrigado, amigos, obrigado. Minha sepultura ainda não está fechada, e contudo, mais um segundo e a terra vai cobrir meus restos. Mas, vós o sabeis, sob esta poeira minha alma não será enterrada. Ela vai planar no espaço, para subir a Deus.— estas foram as palavras iniciais da mensagem do Espírito de Costeau.


É, amigos: a hierarquia das sociedades na Terra está longe de refletir os valores do alto, pois o pobre falecido era daqueles quais tantos hoje ninguém supõe valer quase nada, ao passo que, desencarnado, encontra uma glória sublime. Pois o outrora pobre Antoine Costeau figurou-se na lista dos Espíritos felizes citados por Allan Kardec no livro O Céu e o Inferno, onde encontramos a transcrição de outra comunicação dele, recebida mediunicamente três dias depois do velório, cujo trecho exprime:

"A morte é a vida. Não faço mais que repetir o que já disseram, mas para vocês não há outra expressão senão esta, a despeito do que afirmam os materialistas, os que preferem ficar cegos. Oh, meus amigos! Que belo espetáculo sobre a Terra é ver tremular as bandeiras do Espiritismo! Ciência profunda, imensa, da qual apenas soletram as primeiras palavras. E que de luzes leva aos homens de boa vontade, aos que, libertando-se das terríveis cadeias do orgulho, altamente proclamam a sua crença em Deus! Homens, orem, rendam graças por tantos benefícios!"
O Céu e o Inferno, Allan Kardec - 2ª Parte, cap. II

Outro detalhe importante contido na carta é sobre mensagens coincidentes que Kardec andava recebendo de diversas fontes (como o Espírito Verdade e Erasto) através de médiuns diferentes (como o Sr. D'Ambel e a Sra. Judith), que neste caso tratavam com especial enfoque sobre a questão da saúde do Mestre pioneiro espírita e sobre a prudência necessária para a condução da sua obra doutrinária — razão pela qual Kardec estava em retiro na Normandia.

Por fim, vale a pena comentar sobre os personagens D'Ambel e Canu, em quem Kardec depositava toda a confiança: "a fé que eles têm é sincera— diz o codificador na carta à esposa.

Comecemos pelo Sr. Alexandre Canu, valendo-nos da pesquisa de Carlos Seth Bastos, exposta em Coadjuvantes da Codificação Espírita, onde lemos o trecho correspondente:

"Canu foi secretário da Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas e primeiro tradutor de uma obra de Kardec para o português — a brochura O espiritismo na sua mais simples expressão (do original em francês Le Spiritisme à sa plus simple expression)."
Coadjuvantes da Codificação Espírita, Carlos Seth Bastos - cap. 3


Quanto ao Sr. Alis D'Ambel, médium e vice-presidente da SPEE, notável  intermediário do Espírito Erasto para a Codificação do Espiritismo, sabemos que acabou se tornando um desertor da Sociedade Espírita e franco-opositor a Kardec,  numa tentativa de reinventar o movimento, através do semanário L' Avenir, Moniteur du Spiritisme (O Futuro, Monitor do Espiritismo), que ele editou entre julho de 1864 e 19 de abril de 1866. Teve um fim trágico: suicidou-se em Paris, França, perto de completar seus 50 anos de idade. Saiba mais sobre Alis D'Ambel em Autores Espíritas Clássicos.

Vê-se, portanto, que não foi nada fácil para Allan Kardec completar sua missão. Mas, felizmente, temos a graça de saber que ele foi muito bem.

E assim, de manuscrito em manuscrito, graças ao Projeto da UFJF, vamos conhecendo mais e melhor a História do Espiritismo.

Veja as demais postagens que fizemos contextualizando os documentos disponibilizados pelo Projeto Allan Kardec:
E, é claro, visite também o portal online do Projeto Allan Kardec da UFJF-MG.


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