Projeto Allan Kardec: manuscrito "Prece de Allan Kardec - 02/12/1866"


Como nossos leitores bem sabem, temos acompanhado atentamente o desenvolvimento do Projeto Allan Kardec (veja aqui) da Universidade Federal de Juiz de Fora - UFJF, que já reúne o maior acervo documentado e público de cartas, manuscritos e obras em geral originais de autoria do Codificador do Espiritismo. À visto disso, cuidamos de analisar esses documentos, apresentando uma contextualização, de acordo com o conjunto de informações que vamos cruzando a partir de todos os elementos históricos de que podemos nos valer a fim de compreendermos melhor a História do Espiritismo e mesmo seu corpo doutrinário.

Para hoje, vamos destacar a o documento intitulado como "Prece de Allan Kardec - 02/12/1866", disponível no portal do Projeto. Lá você pode baixar a imagem do manuscrito original (ver imagem a seguir), sua transcrição (em francês) e a tradução, que reproduzimos aqui.


Segue o texto do manuscrito traduzido para o nosso português:

2 de dezembro de 1866.

Senhor Deus Todo-Poderoso,

Quanto mais medito sobre o objetivo final do espiritista, que é sua constituição em religião, mais eu sinto minhas ideias se aclararem e o plano se delinear, sem dúvida graças à assistência de vossos mensageiros; porém, mais também eu sinto quanto esse trabalho exige calma e <meditações> sérias.

Se me julgais digno, Senhor, de uma tal tarefa, fazei, peço-vos, que eu possa ter a tranquilidade necessária. Se as circunstâncias me obrigarem a me expatriar, peço que os bons Espíritos preparem os caminhos para que eu possa, em meu retiro, dedicar-me sem problemas a esses trabalhos. Dai-me sobretudo saúde, assim como a Amélie.

Quanto ao local do retiro, tenho em vista Locarno, que me parece reunir as melhores condições; sobre isso, porém, seguirei os conselhos dos Bons Espíritos. Parece-me útil, antes de partir, ter feito o volume da Gênese.

Peço aos Bons Espíritos que me assistam e me deem o tempo e as forças que me são indispensáveis.


CONTEXTUALIZAÇÃO

O primeiro ponto que aqui destacamos é que Kardec fazia uso contínuo da oração, tanto que chegava ao ponto de escrevê-las — muito provavelmente para deixar nos registros históricos do Espiritismo esse seu traço marcante, inclusive como estímulo aos confrades, para fortalecer a consciência, a fé e determinação nos projetos espíritas.

Em seguida, observamos como ele se dirigia solenemente a Deus, reconhecendo sem pesar sua submissão ao "Todo-Poderoso".

Logo mais, vemos o codificador espírita com a mente aberta — e não dogmática — meditando sobre o "objetivo final" da doutrina para a qual ele se predispôs trabalhar. Note-se: conforme o documento original, a frase é: "Quanto mais medito sobre o objetivo final do espiritista...", que pensamos querer dizer, na verdade, sobre o objetivo do espiritismo, podendo Kardec ter cometido um engano ao grafar a derradeira palavra ("espiritista" em vez de "espiritismo") — o que não é difícil (Kardec também se equivocava, às vezes, em seus escritos) e aliás, no francês, a diferença entre estes vocábulos é de uma só letra: "spiritiste" e "spiritisme". De qualquer forma, se assim não for, temos Kardec meditando sobre o rumo da prática espírita.

Ora, se ele ainda estava meditando sobre o objetivo da doutrina, significa que ele — embora já houvesse dedicado uma década aos estudos espíritas — ainda não havia fechado a questão nem tampouco estabelecido um dogma quanto à essência do Espiritismo. Portanto, a ideia continuava evoluindo.

Diz ele na prece que essa ideia caminhava ao encontro de uma concepção religiosa. Certamente, não no sentido de uma religião formalizada, nos moldes das crenças tradicionais, com suas liturgias sacramentadas, hierarquia de consagrados, dogmas e sacrifícios, etc., mas em tipo de religiosidade natural — a que é claramente identificada em toda a codificação: necessidade de adoração ao Criador (não de bajulação, de que Deus não precisa nem quer, mas como exercício de integração com as virtudes divinas e desenvolvimento da sensibilidade).

Evidentemente que naquele século (no qual qualquer ideia de religião era sinônimo de misticismo, ignorância, anticiência) admitir-se religioso era um ato desafiador; considerar a face religiosa do Espiritismo custaria muito caro, tanto que Kardec, na referida prece, vai até mesmo considerar a possibilidade de exilar-se de seu amado país, França, já cogitando um local para se retirar: Locarno, na Suíça, divisa com a Itália; esta preferência se explica pelo objetivo: melhores condições para dar continuidade aos projetos espíritas, ou seja, tranquilidade para seguir o rumo doutrinário que se devia tomar, pelo que ele vai apelar, nesta prece, o auxílio dos bons Espíritos.

Finalmente, vemos Kardec compenetrado na tarefa de compor aquele que seria seu livro derradeiro nesta encarnação: A Gênese, os Milagres e as Predições segundo o Espiritismo, que seria lançado dois anos depois desta prece; livro este que trata em pontos cruciais da doutrina, mergulhando em questões religiosas, inclusive em controvérsias clássicas, por exemplo, os milagres de Jesus e profecias, trazendo então, com ricos detalhes, a predição da transição planetária  de nosso orbe, cuja culminância o advento do Espiritismo vem marcar seu início (capítulo XVIII: "Os tempos são chegados").

Para saber mais sobre a relação entre Espiritismo e religião, ver o livro Religião e Espiritismo - análise de novas fontes de documentos, disponível na nossa Sala de Leitura.


Confira outras contextualizações feitas:
  • Manuscrito "Evocação", datado de 1860 - Acessar.
  • "Rascunho de carta para o senhor Edoux - 15/04/1864", em que Kardec comenta as zombarias feitas do Espiritismo - Acessar.
  • Carta "O retorno da fé em Deus do Sr. H. Georges", evidenciando o valor da nossa doutrina contra o materialismo - Acessar.
Não deixe de visitar o portal do Projeto Allan Kardec.

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