terça-feira, 22 de setembro de 2020

Projeto Allan Kardec: "Rascunho de carta para o senhor Edoux - 15/04/1864"


Prosseguindo nossos estudos sobre os manuscritos que estão sendo publicados pelo Projeto Allan Kardec (saiba mais aqui), estudos esses que iniciamos analisando o documento "Evocação - 1860" (ver aqui) e que agora destaca o "Rascunho de carta para o senhor Edoux", datado de 15 de abril de 1864, oriundo do acervo particular do Dr. Canuto Abreu, que foi entregue à FEAL e agora foi disponibilizado pela Universidade Federal de Juiz de Fora, estando acessível no site oficial do referido projeto.

Vamos contextualizar o documento com a ajuda dos metadados de Carlos Seth da fanpage CSI do Espiritismo.

Como o próprio título evidencia, trata-se de um rascunho, escrito por Allan Kardec, de uma correspondência para o Sr. Edoux, ressaltando que era uma prática do codificador espírita guardar em seus arquivos uma cópia das cartas que ele remetia, claro, para fins de controle pessoa e para servir de fontes de pesquisas futuras, no intuito de se compreender o contexto daquilo que se estava tratando ali.

O correspondente de Kardec, Evariste Edoux era médium e diretor do jornal La Vérité, de que temos algumas referências na Revista Espírita (ver aqui). Ver também mais alguns detalhes sobre ele na página 75 do Almanach spirite pour 1865 (disponível online aqui). O periódico que ele dirigia, em Lyon, cuja coleção está disponível no site da Gallica e também no portal IAPSOP, teve sua estreia em 22 de fevereiro de 1863, publicado semanalmente e custava 15 centavos. Mais tarde mudou seu título para La Tribune Universelle, journal de la libre conscience et de la libre pensée. conforme nota de Kardec na Revista Espírita de Abril de 1867 (conferir aqui).


Vamos então ao manuscrito:


A transcrição do documento, em francês:

Paris 15 avril 1864.

Mon cher Monsieur <Edoux>,

J’ai lu avec beaucoup d’intérêt les derniers n.os de La Vérité, et celui surtout où vous réfutez l’abbé Barricand. En vous remerciant bien sincèrement de ce que vous y dites à mon sujet, je vous félicite de la modération que vous avez apportée dans votre polémique, et ne saurais trop vous engager à persévérer dans cette voie ; c’est celle qui contrarie évidemment le plus nos adversaires, car ils voudraient nous voir sortir des bornes et font tout ce qu’ils peuvent pour nous entraîner sur leur terrain. C’est à nous de ne pas nous laisser prendre au piège. Comme vous le dites avec <avec> beaucoup de justesse, en discutant le Spiritisme au point de vue exclusivement doctrinal, M. l’abbé Barricand <il> est dans son droit, et puisqu’il prend à partie La Vérité, il est permis de lui répondre ; il est du devoir surtout de relever les erreurs volontaires ou involontaires qu’il pourrait commettre, tout en restant dans la limite des convenances, lors même qu’il s’en écarterait ; c’est le meilleur moyen de mettre le bon droit de votre côté.

J’ai adressé à Lyon par le courrier d’hier un certain nombre d’exemplaires de mon nouvel ouvrage : L’Imitation de l’Évangile. Il y en a un pour vous qui vous sera remis par M.r Villon auquel j’ai adressé le paquet. Vous y trouverez je pense des éléments pour réfuter M.r Barricand.

Des inadvertances de l’imprimeur ont nécessité la réimpression de certaines parties, ce qui a causé un retard imprévu dans la mise en vente.

Courage, mon cher Monsieur, et croyez à mon bien sincère dévoûment,

A.K.


A tradução para o nosso português:

Paris, 15 de abril de 1864.

Meu caro senhor <Edoux>,

Li com muito interesse os últimos números de La Vérité, e principalmente aquele em que o senhor refuta o abade Barricand. Agradecendo-lhe muito sinceramente o que nele o senhor disse a meu respeito, felicito-o pela moderação que imprimiu à sua polêmica, e não poderia insistir demais em pedir-lhe para perseverar nesse caminho. É assim que se mais contraria os nossos adversários, pois eles gostariam de nos ver sair dos nossos limites, e fazem tudo o que podem para nos arrastar ao terreno deles. Cabe a nós não nos deixarmos cair na armadilha. Como o senhor disse com muita justeza, o senhor abade Barricand, ao discutir o Espiritismo do ponto de vista exclusivamente doutrinário, está no seu direito e, visto como se refere à La Vérité, é permitido lhe responder. É sobretudo um dever mostrar os erros voluntários ou involuntários que ele possa ter cometido, tudo dentro do limite das conveniências, mesmo quando ele delas se afaste; é o melhor meio para ter a razão do seu lado.

Remeti a Lyon, pelo correio de ontem, um certo número de exemplares de nossa obra mais recente: A Imitação do Evangelho. Um deles é para o senhor e lhe será entregue pelo senhor Villon, a quem enviei o pacote. Penso que o senhor encontrará nela elementos para refutar o senhor Barricand.

Alguns descuidos do impressor exigiram a reimpressão de certas partes, o que causou uma demora imprevista para o lançamento da obra.

Coragem, meu caro, e acredite no meu sincero devotamento,

Allan Kardec

Clique aqui para ver o manuscrito no Portal Allan Kardec.

O fato é que Kardec lê, "com muito interesse", os últimos números do jornal editado pelo Sr. Edoux, e principalmente aquele em que este refuta o abade Barricand. Este assunto foi comentado na Revista Espírita de maio de 1864, em "Cursos públicos de Espiritismo em Lyon e Bordeaux" (ver aqui). Eis um trecho do artigo de Kardec, que também nos introduz um pouco da personalidade sacerdotal citada:
O Padre Barricand, professor na Faculdade de Teologia de Lyon, começou no Petit-Collège uma série de lições públicas sobre, ou melhor, contra o magnetismo e o Espiritismo. O jornal la Vérité, em seu número de 10 de abril de 1864, analisa uma sessão consagrada ao Espiritismo e levanta várias asserções do orador. Promete manter os leitores ao corrente da continuação, ao mesmo tempo em que se encarrega de refutá-las, o que, não temos dúvida, fará maravilhosamente, a julgar por seu começo. O decoro e a moderação de que deu provas até hoje em sua polêmica nos dão a certeza de que não mudará nesta circunstância, mesmo que o seu contraditor mude,
Ou seja, temos em Lyon um clérigo (Pe. Barricand) lecionando um curso antiespírita e antimagnetismo e o jornal La Vérité, do Sr. Edoux, em defesa do Espiritismo e do Magnetismo, de forma tão amigável que, antes de qualquer crítica, cuidou de dialogar diretamente com o sacerdote, tal como ele explica:
“À saída do curso, tivemos ligeira conversa com o Padre Barricand que, aliás, nos recebeu de maneira muito cortês. Nosso objetivo era oferecer-lhe uma coleção do Vérité, para facilitar-lhe meios de falar dele à vontade.”
Como se poderia esperar, o debate doutrinário não teve continuidade e o Pe. Barricand passou a ser ainda mais feroz em suas pregações contra a Doutrina Espírita. Daí é que Allan Kardec vai escrever parabenizando o empenho do confrade na refutação ao mesmo tempo em que o estimula à perseverança na defesa dos postulados espíritas, ressaltando a moderação nesse intento e anotando que os seus adversários ficam muito contrariados, "pois eles gostariam de nos ver sair dos nossos limites, e fazem tudo o que podem para nos arrastar ao terreno deles", diz Kardec, acrescentando que "não podemos nos deixar cair na armadilha" deles.

A propósito, nRevista Espírita de julho de 1864 publica uma carta do Abade Barricand, a seu pedido, queixando-se de que o Sr. Edoux teria "fantasiado e desfigurado" o tal Cursos públicos de Espiritismo em Lyon e Bordeaux, do sacerdote. Por sua vez, o editor de La Vérité vai responder a essa crítica na mesma Revista Espírita, agora na edição de agosto de 1864, em "Correspondência" (ver aqui), 

Em suma, o documento que veio à lume agora com o Projeto Allan Kardec é mais uma peça de ensinamento para todos nós espíritas, frequentemente alvos de zombarias e provocações: para que tenhamos moderação em face dessas situações, jamais descendo ao nível baixo ao qual o fazem muitos dos contestadores da nossa doutrina.

* * *

Fora isso, temos uma nota na carta de Kardec informando o Sr. Edoux do atraso no lançamento do livro mais recente, Imitação do Evangelho segundo o Espiritismo, que mais tarde seria renomeada e reconhecida como uma das obras básicas da codificação espírita como O Evangelho segundo o Espiritismo"Alguns descuidos do impressor exigiram a reimpressão de certas partes, o que causou uma demora imprevista para o lançamento da obra", diz Kardec, o que provocou a reflexão do nosso colega pesquisador Carlos Seth: "Se alguns descuidos exigiam a reimpressão, imaginemos mais de 1.500 alterações de A Gênese...; mesmo que fossem só algumas, depois de iniciada a impressão definitiva em fevereiro de 1869, seria necessário reimprimir grande parte da obra devido à reformatação das páginas!". Para entender melhor essa reflexão, vide O caso A Gênese.

* * *

Por fim, o documento em pauta cita ainda um terceiro personagem: o Sr. Villon, destinatário de uma remessa do livro Imitação do Evangelho e então encarregado de entregar um exemplar dessa obra ao Sr. Edoux.

Villon é mencionado na Revista Espírita de fevereiro de 1862, artigo "Resposta à mensagem de ano novo dos Espíritas lioneses", no qual Kardec, impossibilitado de estar presente em Lyon, referencia Villon naquela cidade como sendo um representante seu, "cujo zelo e devotamento — diz Kardec — são do vosso conhecimento, tanto quanto a pureza de seus sentimentos", também aditando: "Além disso, sua posição independente lhe dá mais folga para a tarefa de que se quer encarregar. É tarefa dura, mas ele não recuará. O grupo por ele formado em sua casa o foi sob os meus auspícios e conforme as minhas instruções, quando de minha última viagem. Ali encontrareis excelentes conselhos e salutares exemplos. É com viva satisfação que verei todos os que me honram com sua confiança a ele se ligarem, como a um centro comum." (ver aqui)

Revista Espírita de maio de 1862 reproduz a bela dissertação espírita "As duas lágrimas", recebida no grupo familiar do Sr. Villon, através da médium Sra. Boulland e assinada pelo Espírito denominado Cárita (ver aqui).

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