terça-feira, 28 de novembro de 2023

Projeto Allan Kardec: Anotações sobre o pseudônimo "Allan Kardec"


Mais um manuscrito original disponibilizado pelo Museu AKOL ao acervo do Projeto Allan Kardec da Universidade Federal de Juiz de Fora - UFJF-MG: uma anotação do codificador do Espiritismo a respeito do seu pseudônimo, cujo contexto denota que ele estaria preparando uma resposta às críticas que lhe estavam sendo dirigidas exatamente por adotar um apelido ao invés de usar seu verdadeiro nome: Hippolyte Léon Denizard Rivail.

Graças à recuperação desses documentos originais, temos então mais uma oportunidade de conferir como Allan Kardec tratava questões dessa natureza, com a precisão de quem deve ser sincero e assertivo nas suas convicções, mas não grosseiro.

Saiba mais sobre o Projeto Allan Kardec.

Primeiro, vamos conferir o conteúdo da carta, depois faremos a contextualização dos assuntos tratados:

Fotocópia do manuscrito original
Fonte: Projeto Allan Kardec da UFJF


Transcrição (em francês)

Deux mots encore sur le pseudonyme. Je dirai d’abord qu’en cela j’ai suivi [...] avec cette différence que la plupart prennent des noms de fantaisie, tandis que celui d’Allan Kardec a une signification et que je puis le revendiquer comme mien au nom de la doctrine. Je dis plus: il confirme tout un enseignement que je me réserve de faire connaître plus tard. J’ai d’ailleurs [...] pour agir ainsi au début des motifs sérieux: une fois connu sous ce nom, je dois le conserver, le quitter maintenant serait nuire à toutes mes publications ultérieures. Il y a d’ailleurs une raison qui domine tout: je n’ai point pris ce parti sans consulter les Esprits, puisque je ne fais rien sans leur avis. Je l’ai fait à plusieurs reprises et par différents médiums. Or ils ont non seulement autorisé mais approuvé cette mesure. L’essentiel est donc de dire de bonnes choses et peu importe que ce soit sous le nom de Pierre ou de Paul.

Si je n’avais mis aucun nom qu’aurait-on eu à dire ? Quiconque connaît et comprend la doctrine [...] les esprits attachent peu d’importance <à> tout a qui est de pure forme, pour eux le fond est tout puisque sur 100 écrivains il y a les ¾ qui ne sont pas connus sous leur véritable nom.

A mon début dans ce que je puis appeler ma carrière spirite, qui a été pour moi comme une nouvelle existence, j’ai eu des motifs sérieux pour prendre un nom spécial, mes écrits une fois connus sous ce nom, je dois le conserver, le quitter serait nuire a toutes mes publications ultérieures. Parmi ceux qui à défaut d’autres y trouvent un sujet de critique je pourrais citer tel individu qui a sous un nom d’emprunt et cela sans autre motif que celui de se mettre derrière le rideau.

La doctrine serait bien faible si son succès devait dépendre d’une cause aussi futile qu’un nom propre.


Tradução

Mais duas palavras sobre o pseudônimo. Primeiramente, direi que, quanto a isto, eu segui [...] com a diferença de que a maioria assume nomes de fantasia, ao passo que o nome Allan Kardec tem um significado e posso reivindicá-lo como meu em nome da doutrina. Digo mais: ele confirma todo um ensino que me reservo o direito de divulgar mais tarde. Além disso, [...] [tenho] sérios motivos para agir desta forma no início: uma vez conhecido sob esse nome, devo mantê-lo; deixá-lo agora seria prejudicar todas as minhas publicações posteriores. Ademais, há uma razão que prevalece: não tomei esta decisão sem consultar os Espíritos, uma vez que não faço nada sem o seu conselho. Já o fiz em várias ocasiões e através de diferentes médiuns. E não só autorizaram, mas aprovaram essa medida. O essencial é dizer coisas boas, não importando se é sob o nome de Pedro ou Paulo.

Se eu não tivesse adotado nenhum nome, o que teriam a dizer? Quem conhece e compreende a doutrina [sabe que] os Espíritos dão pouca importância a tudo o que é puramente formal; para eles, o fundo é tudo, pois, a cada 100 escritores, 75 deles não são conhecidos pelo seu nome verdadeiro.

No início daquilo que posso chamar de minha carreira espírita, que tem sido para mim como uma nova existência, tive sérias razões para usar um nome especial, e devo mantê-lo, uma vez que meus escritos começaram a ser conhecidos sob esse nome. Abandoná-lo seria prejudicar todas as minhas publicações posteriores. Para aqueles que, na falta de outros, encontram nele motivo de crítica, eu poderia citar um indivíduo que usa um nome fictício sem outra razão senão a de ficar atrás da cortina.

A doutrina seria muito fraca se o seu sucesso dependesse de uma causa tão fútil como um nome próprio.


Contextualizando a anotação

Como se sabe, a insígnia "Allan Kardec" é na verdade um pseudônimo; aquele a quem nós conhecemos como o codificador do Espiritismo chamava-se civilmente Hippolyte Léon Denizard Rivail. Aliás, a assinatura "H. L. D. Rivail" não era de tudo estranha, pois várias obras pedagógicas já haviam sido publicadas com esta inscrição; de fato, o Prof. Rivail não era assim nenhuma celebridade, porém não se tratava de um completo anônimo, inclusive porque já havia sido diretor de um instituto educacional em Paris. Até em razão disso, então, era conveniente separar a carreira profissional da tarefa vocacional de conduzir o lançamento da Doutrina Espírita; daí por que Rivail deu lugar a Allan Kardec.

Assim sendo, ao que tudo indica, chegaram até o pioneiro espírita críticas pela utilização do pseudônimo adotado, provavelmente acusando-o de estar "escondendo-se" ou "fantasiando sua missão". Ora, a intenção comum dessas críticas era manchar de alguma forma a imagem do Espiritismo, tomando por pretexto possíveis fraquezas pessoais do seu líder, já que doutrinalmente seus adversários nada encontravam contra. Logo, atacar Kardec era atacar a doutrina, ideologicamente falando; e talvez se não conseguissem minimizar o valor da Revelação Espírita, pelo menos eles tentavam desestabilizar o trabalho do mestre— quem sabe até cansá-lo e desencorajar sua missão.

Que nada! Allan Kardec estava determinado em sua vocação e soube dar a resposta com firmeza e elegância. Para começar, ele vai explicar que sequer teve o trabalho de criar ou "fantasiar" um apelido: bastou adotar seu nome próprio de outra existência carnal — valorizando assim um dos princípios fundamentais da doutrina: a Lei de Reencarnação. Muito emblemático, não é mesmo? É por isso que ele anota: "Allan Kardec tem um significado e eu posso reivindicá-lo como meu". Em seguida, ele diz que só revelaria mais tarde, mas que isso faz parte de um fato que vinha confirmar um certo ensinamento. E que ensinamento era esse? A coincidência de uma revelação feita por diferentes médiuns de que numa determinada vida passada ele era chamado de "Allan Kardec", ou, talvez melhor, que ele seria "Allan" numa e "Kardec" em outra reencarnação; há algumas versões sobre a origem dessa alcunha (Saiba mais pela Enciclopédia Espírita Online).

Diz Kardec nessa anotação que ele não decidiu sozinho usar um pseudônimo, mas que tudo foi combinado com a espiritualidade. Certamente, pois, os mentores espirituais acharam por bem distinguir a biografia do pedagogo Rivail do missionário espírita. Além disso, pelo que nos parece, a intenção de Kardec era que ele próprio não precisasse aparecer em público: bastaria que a doutrina aparecesse e se conservasse sem personalismos, para não caracterizar o Espiritismo pelas pessoas, mas sim pelas ideias doutrinárias. Mas não seria assim, como advertiu um amigo espiritual, dizendo-lhe: "Não suponha que te baste publicar um livro, dois livros, dez livros, para em seguida ficar tranquilamente em casa. Tem que expor a tua pessoa." (Ver Obras Póstumas, 2ª parte: 'Minha missão').

Aconteceu então que o sucesso de O Livro dos Espíritos fez do seu autor um nome famoso e, nestas condições, era preciso que ele apresentasse sua cara. Desta forma, já não seria o caso de trocar de nome novamente, como diz a nota: "uma vez conhecido sob esse nome, devo mantê-lo; deixá-lo agora seria prejudicar todas as minhas publicações posteriores." Então, ficou sendo mesmo Allan Kardec.

Ora, que importa o nome? Afinal, "O essencial é dizer coisas boas, não importando se é sob o nome de Pedro ou Paulo." — diz a anotação. O pseudônimo foi só uma formalidade, e como dizia Kardec, a espiritualidade dá muito pouca importância a isso; para eles, o que conta mesmo é o fundamento doutrinário.

Por fim, é interessante nos darmos conta de que naquele século XIX, como em outros tempos, inclusive na nossa atualidade, era muito comum que alguns autores usassem um "nome artístico" para assinar suas publicações; a propósito disso, Kardec até faz a estimativa desse percentual em seu tempo: "a cada 100 escritores, 75 deles não são conhecidos pelo seu nome verdadeiro.". Dentre os vários pretextos para isso, podemos citar três que eram bastantes comuns: 1) devido o preconceito contra as mulheres, as escritores normalmente usavam um apelido masculino para conseguir efetivar suas publicações; 2) para fugir da censura e perseguição política, muitos autores trocavam de nome: e 3) para se atacar gratuitamente alguém ou uma causa (como o Espiritismo) e se eximir de responder por isso, que é o caso de que Kardec trata ao dizer "ficar atrás da cortina".

Em suma, era um crítica muito rasteira, de quem realmente não tinha o que falar de uma doutrina abençoada como o Espiritismo, donde conclui nosso mestre espírita: "A doutrina seria muito fraca se o seu sucesso dependesse de uma causa tão fútil como um nome próprio."

Ver o registro do manuscrito no portal do Projeto Allan Kardec.

Veja as demais postagens que fizemos contextualizando os documentos disponibilizados pelo Projeto Allan Kardec:
E, é claro, visite também o portal online do Projeto Allan Kardec da UFJF-MG.


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