O fim da Livraria Leymarie e sua ligação com a História do Espiritismo
Chegou ao seu fim a centenária Livraria Leymarie, em Paris, cuja ligação histórica com o Espiritismo é marcada por questões polêmicas, mas que, por fim, resultou num capítulo positivo para o nosso movimento, dentro de um contexto que assinala um importe resgate historiográfico que estamos vivendo desde especialmente a segunda década deste século XXI.
Antes de entrarmos nos detalhes, vale lembrar que já fizemos aqui uma postagem a respeito desta loja, por ocasião de uma confusão historiográfica que começou com uma campanha de uma blogueira brasileira para "salvar a livraria de Kardec", mas que, apesar dos seus equívocos, acabou por mobilizar um maior interesse nos documentos originais do codificador espírita, donde surgiu o Museu AKOL, de falaremos a seguir. Veja aqui a referida postagem.
Agora, contando com a colaboração do nosso confrade Wanderlei dos Santos, do site Autores Espíritas Clássicos, vamos mergulhar fundo na origem da histórica Librairie Leymarie, valendo-nos dos novos dados colhidos das últimas pesquisas a propósito.
Leymarie, o fundador da livraria
A loja em questão traz o sobrenome do seu fundador, Pierre-Gaëtan Leymarie, que foi um compatriota e contemporâneo de Allan Kardec, além de colega de doutrina, inclusive um dos médiuns da Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas (instituição fundada e presidida pelo codificador do Espiritismo).
Mas não é só isso...
Com o falecimento de Kardec, Leymarie foi escolhido pela viúva Kardec (Amélie Boudet) para dirigir a Sociedade Anônima Espírita, que era a instituição central administrativa dos negócios relacionados aos bens da família Kardec em prol do Espiritismo, a quem pertencia ainda a Livraria Espírita, outro empreendimento criado para ajudar disseminar a doutrina; esta "empresa" acabaria recebendo os direitos legais das publicações de Kardec e tudo mais da herança do casal Rivail e Amélie. Com efeito, Leymarie se tornou o substituto do mestre pioneiro espírita.
O "problema" é que a gestão Leymarie foi muito aquém do que se podia esperar; na verdade, ele duramente contestado por outros grandes ativistas espíritas — especialmente Berthe Fropo, Gabriel Delanne e Henri Sausse, que até por conta disso se viram forçados a criar a União Espírita Francesa e o jornal O Espiritismo (Le Spiritisme) justamente para "combater" os alegados desvios doutrinários de Leymarie.
Fora isso, Pierre Leymarie tomou posse de todos os arquivos físicos de Allan Kardec: biblioteca, diários, manuscritos e pastas e pastas de outros registros que o mestre estava guardando na intenção de formar um grande museu espírita, com o acervo histórico da origem da Doutrina Espírita. E o que aconteceu com isso tudo?
O legado dos arquivos kardequianos
Em dado momento a Sociedade Anônima Espírita (que inclusive havia mudado de nome) abriu falência!!! E pior: o que sobrou do legado de Kardec tornou-se propriedade pessoal de Pierre Leymarie, que continuou dirigindo a Revista Espírita de uma maneira bem desconectada do restante do movimento espírita, usufruindo também dos direitos autorais dos livros kardequianos e da outra empresa kardecista: a Sociedade da Livraria Espírita, que em dezembro de 1895 seria transferida da Rua de Lile nº 7 para seu último endereço: o número 42 da Rua Saint-Jacques, pertinho do famoso Colégio de França e da universidade internacionalmente respeitada Sorbonne — portanto, um local privilegiadíssimo!
A propósito, lá passou a funcionar ao mesmo tempo o escritório editorial da Revista Espírita.
E quanto aos arquivos pessoais do codificador? Eles foram parar nas prateleiras do novo empreendimento familiar de Leymarie; quer dizer, a "Livraria Leymarie", instalada na Rua Saint-Jacques nº 42; ou seja: este novo negócio estava de fato substituindo a Livraria Espírita, e vendo a quem bem quisesse — e pudesse pagar — pelos manuscritos e outros documentos que haviam sido reservados para fundar o museu espírita.
E assim, as relíquias kardecistas passaram da mão de Leymarie para a sua viúva, Marina Duclos Leymarie, e dela para o seu filho, Paul Leymarie.
Saiba mais sobre Leymarie pela Enciclopédia Espírita Online.
O que sobrou do acervo histórico espírita
É provável, pois, que muitos registros originais do acervo histórico espírita tenham se perdido nesse período. Felizmente, uma boa parte foi preservada e acabou sendo dividida em três grandes lotes: o primeiro deles foi diretamente da Livraria Leymarie, ainda na época da administração Paul Leymarie, pelo pesquisador espírita brasileiro Canuto Abreu, que o trouxe para o Brasil; o segundo foi resgatado pelo filantropo espírita Jean Meyer e depois repassado para seu sucessor, Hubert Forestier; o terceiro lote permaneceu "jogado" no depósito da Livraria Leymarie, até começar a ser oferecido ao público pela nova gestão da loja; um século se passaria e esse lote daria vida ao Museu AKOL.
Esses três acervos hoje fazem parte do Projeto Allan Kardec, da Universidade Federal de Juiz de Fora - MG. Saiba mais sobre Leymarie pela Enciclopédia Espírita Online.
O paradeiro da Livraria Leymarie
Paul, o filho de Leymarie, herdou e tocou o negócio da livraria da família, bem como a direção da Revista Espírita, vendida depois para Jean Meyer em 1916. Quanto à loja da Rua Saint-Jacques, depois da morte de Paul Leymarie, em 1955, esta passou a pertencer a Michael Chigot, conforme os registros de 1956, que, não apenas ficou com o mesmo ponto comercial e o estoque de livros e documentos da Livraria dos Leymarie, mas também manteve a razão social do negócio — Livrarie Leymarie — e de quebra ainda continuou usando o sobrenome dos "herdeiros de Kardec", apresentando-se então como "Michael Leymarie".
Estratégia para "manter a identidade" do negócio? — Isso nós ignoramos. O fato é que o herdeiro de Michael também fez o mesmo: Philippe Chigot assumiu a direção da livraria centenária em 2015, também se apossando da alcunha "Leymarie".
A partir daí, "Philippe Leymarie" começou a anunciar nas redes sociais a venda de documentos originais de Kardec, dos quais o Museu AKOL adquiriu quase que toda a coleção e a trouxe para o Brasil.
Após isso, o negócio da livraria não vingou mais e finalmente foi fechada em 2022.
As imagens a seguir, são do interior da Livraria Leymarie ainda sob a direção de Philippe Chigot, vulgo Philippe Leymarie, e antes da aquisição do Museu AKOL:
Soubemos do falecimento de Philippe Chigot, ocorrido em 11 de setembro de 2024, conforme nota do site Libra Memoria, também constando na página de homenagens póstumas Dans nos Coeurs.
E então, tudo acabou em um café: segundo informações do Google Maps, o local da antiga Livraria Leymarie hoje é uma bela cafeteria no estilo vintage chamada Saint Pearl ("Santa Pérola").
Um descaso com Kardec e com o Espiritismo
Correndo o risco de sermos injustos com Leymarie e família — porque pode até ser que não houvesse nenhuma outra opção melhor para "substituir" Allan Kardec —, mas o fato é que o movimento espírita desandou na França imediatamente após a desencarnação do mestre pioneiro.
Especialmente, podemos falar do descaso com o acervo espírita que o codificador havia guardado com tanto carinho, dando-lhe a maior importância, a fim de que futuramente um museu pudesse preservar as fontes primárias da História da codificação espírita, como certa vez ele afirmou:
A importância desses arquivos também fica evidenciada numa carta de Kardec aos confrades de Lyon, que o haviam convidado para uma celebração:
Kardec observava, assertivamente, que a conservação de fontes primárias, dentre outros benefícios, ajudaria a preservar o contexto histórico da doutrina nas mais variadas frentes de atuação, por exemplo, para a solução de questões doutrinárias:
E também no enfretamento das adversidades impostas ao movimento espírita:
È bem verdade que algumas das composições inéditas de Kardec foram publicadas por Pierre Leymarie no livro Obras Póstumas, de 1891, além de alguns raros artigos aqui e acolá dispersos na Revista Espírita pós-Kardec; porém isso foi muito pouco, pelo valor que todo o conjunto tem.
Felizmente, como sabemos, nem tudo se perdeu e hoje nós dispomos do Projeto Allan Kardec, que reúne o que sobrou dos arquivos kardequianos.
Nota complementar de Ery Lopes: de viagem à Paris em 2017, em três ocasiões que fomos até o endereço, infelizmente encontramos a livraria fechada e não pudemos adentrar no local; mas constatamos uma coisa curiosa: no andar de cima da loja, uma placa de anúncio de serviços: "Ocultismo Leymarie". Nada de estranhar, aliás, porque a referida livraria, desde os tempos da família fundadora, já não era genuinamente espírita, mas sim espiritualista, vendendo todo tipo de artigos místicos. E é realmente uma pena que o Espiritismo kardecista não tenha fincado raízes tão fortes mesmo nos seus primeiros seguidores!!!
Parabéns! Importantes informações para quem estuda o espiritismo.
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