O fim da Livraria Leymarie e sua ligação com a História do Espiritismo


Chegou ao seu fim a centenária Livraria Leymarie, em Paris, cuja ligação histórica com o Espiritismo é marcada por questões polêmicas, mas que, por fim, resultou num capítulo positivo para o nosso movimento, dentro de um contexto que assinala um importe resgate historiográfico que estamos vivendo desde especialmente a segunda década deste século XXI.

Antes de entrarmos nos detalhes, vale lembrar que já fizemos aqui uma postagem a respeito desta loja, por ocasião de uma confusão historiográfica que começou com uma campanha de uma blogueira brasileira para "salvar a livraria de Kardec", mas que, apesar dos seus equívocos, acabou por mobilizar um maior interesse nos documentos originais do codificador espírita, donde surgiu o Museu AKOL, de falaremos a seguir. Veja aqui a referida postagem.



Agora, contando com a colaboração do nosso confrade Wanderlei dos Santos, do site Autores Espíritas Clássicos, vamos mergulhar fundo na origem da histórica Librairie Leymarie, valendo-nos dos novos dados colhidos das últimas pesquisas a propósito.


Leymarie, o fundador da livraria

A loja em questão traz o sobrenome do seu fundador, Pierre-Gaëtan Leymarie, que foi um compatriota e contemporâneo de Allan Kardec, além de colega de doutrina, inclusive um dos médiuns da Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas (instituição fundada e presidida pelo codificador do Espiritismo).

Mas não é só isso...

Pierre-Gaëtan Leymarie (1827 - 1901)

Com o falecimento de Kardec, Leymarie foi escolhido pela viúva Kardec (Amélie Boudet) para dirigir a Sociedade Anônima Espírita, que era a instituição central administrativa dos negócios relacionados aos bens da família Kardec em prol do Espiritismo, a quem pertencia ainda a Livraria Espírita, outro empreendimento criado para ajudar disseminar a doutrina; esta "empresa" acabaria recebendo os direitos legais das publicações de Kardec e tudo mais da herança do casal Rivail e Amélie. Com efeito, Leymarie se tornou o substituto do mestre pioneiro espírita.

O "problema" é que a gestão Leymarie foi muito aquém do que se podia esperar; na verdade, ele duramente contestado por outros grandes ativistas espíritas — especialmente Berthe Fropo, Gabriel Delanne e Henri Sausse, que até por conta disso se viram forçados a criar a União Espírita Francesa e o jornal O Espiritismo (Le Spiritisme) justamente para "combater" os alegados desvios doutrinários de Leymarie.

Fora isso, Pierre Leymarie tomou posse de todos os arquivos físicos de Allan Kardec: biblioteca, diários, manuscritos e pastas e pastas de outros registros que o mestre estava guardando na intenção de formar um grande museu espírita, com o acervo histórico da origem da Doutrina Espírita. E o que aconteceu com isso tudo?


O legado dos arquivos kardequianos

Em dado momento a Sociedade Anônima Espírita (que inclusive havia mudado de nome) abriu falência!!! E pior: o que sobrou do legado de Kardec tornou-se propriedade pessoal de Pierre Leymarie, que continuou dirigindo a Revista Espírita de uma maneira bem desconectada do restante do movimento espírita, usufruindo  também dos direitos autorais dos livros kardequianos e da outra empresa kardecista: a Sociedade da Livraria Espírita, que em dezembro de 1895 seria transferida da Rua de Lile nº 7 para seu último endereço: o número 42 da Rua Saint-Jacques, pertinho do famoso Colégio de França e da universidade internacionalmente respeitada Sorbonne — portanto, um local privilegiadíssimo!



A propósito, lá passou a funcionar ao mesmo tempo o escritório editorial da Revista Espírita.

E quanto aos arquivos pessoais do codificador? Eles foram parar nas prateleiras do novo empreendimento familiar de Leymarie; quer dizer, a "Livraria Leymarie", instalada na Rua Saint-Jacques nº 42; ou seja: este novo negócio estava de fato substituindo a Livraria Espírita, e vendo a quem bem quisesse — e pudesse pagar — pelos manuscritos e outros documentos que haviam sido reservados para fundar o museu espírita.


Fachada da antiga Livraria Leymarie

E assim, as relíquias kardecistas passaram da mão de Leymarie para a sua viúva, Marina Duclos Leymarie, e dela para o seu filho, Paul Leymarie.

Leymarie, sua esposa Marina e seu filho Paul

Saiba mais sobre Leymarie pela Enciclopédia Espírita Online.


O que sobrou do acervo histórico espírita

É provável, pois, que muitos registros originais do acervo histórico espírita tenham se perdido nesse período. Felizmente, uma boa parte foi preservada e acabou sendo dividida em três grandes lotes: o primeiro deles foi diretamente da Livraria Leymarie, ainda na época da administração Paul Leymarie, pelo pesquisador espírita brasileiro Canuto Abreu, que o trouxe para o Brasil; o segundo foi resgatado pelo filantropo espírita Jean Meyer e depois repassado para seu sucessor, Hubert Forestier; o terceiro lote permaneceu "jogado" no depósito da Livraria Leymarie, até começar a ser oferecido ao público pela nova gestão da loja; um século se passaria e esse lote daria vida ao Museu AKOL.

Esses três acervos hoje fazem parte do Projeto Allan Kardec, da Universidade Federal de Juiz de Fora - MG. Saiba mais sobre Leymarie pela Enciclopédia Espírita Online.


O paradeiro da Livraria Leymarie

Paul, o filho de Leymarie, herdou e tocou o negócio da livraria da família, bem como a direção da Revista Espírita, vendida depois para Jean Meyer em 1916. Quanto à loja da Rua Saint-Jacques, depois da morte de Paul Leymarie, em 1955, esta passou a pertencer a Michael Chigot, conforme os registros de 1956, que, não apenas ficou com o mesmo ponto comercial e o estoque de livros e documentos da Livraria dos Leymarie, mas também manteve a razão social do negócio — Livrarie Leymarie — e de quebra ainda continuou usando o sobrenome dos "herdeiros de Kardec", apresentando-se então como "Michael Leymarie".

Estratégia para "manter a identidade" do negócio? — Isso nós ignoramos. O fato é que o herdeiro de Michael também fez o mesmo: Philippe Chigot assumiu a direção da livraria centenária em 2015, também se apossando da alcunha "Leymarie".



A partir daí, "Philippe Leymarie" começou a anunciar nas redes sociais a venda de documentos originais de Kardec, dos quais o Museu AKOL adquiriu quase que toda a coleção e a trouxe para o Brasil.

Após isso, o negócio da livraria não vingou mais e finalmente foi fechada em 2022.

As imagens a seguir, são do interior da Livraria Leymarie ainda sob a direção de Philippe Chigot, vulgo Philippe Leymarie, e antes da aquisição do Museu AKOL:







Soubemos do falecimento de Philippe Chigot, ocorrido em 11 de setembro de 2024, conforme nota do site Libra Memoria, também constando na página de homenagens póstumas Dans nos Coeurs.

E então, tudo acabou em um café: segundo informações do Google Maps, o local da antiga Livraria Leymarie hoje é uma bela cafeteria no estilo vintage chamada Saint Pearl ("Santa Pérola").


Um descaso com Kardec e com o Espiritismo

Correndo o risco de sermos injustos com Leymarie e família — porque pode até ser que não houvesse nenhuma outra opção melhor para "substituir" Allan Kardec —, mas o fato é que o movimento espírita desandou na França imediatamente após a desencarnação do mestre pioneiro.

Especialmente, podemos falar do descaso com o acervo espírita que o codificador havia guardado com tanto carinho, dando-lhe a maior importância, a fim de que futuramente um museu pudesse preservar as fontes primárias da História da codificação espírita, como certa vez ele afirmou:

“É preciso que as gerações futuras saibam a quem deverão um justo tributo de reconhecimento; é preciso que consagrem a memória dos verdadeiros pioneiros da obra regeneradora e que não haja glórias usurpadas. O que dará a essa história um caráter particular é que, em vez de ser feita, como muitas outras, dos anos ou dos séculos fora do tempo, com fé na tradição e na lenda, ela se faz à medida que os eventos acontecem, baseando-se em dados autênticos, o mais vasto e completo arquivo existente no mundo, que possuímos, proveniente de correspondência incessante, vinda de todos os países onde se implanta a doutrina. Sem dúvida o Espiritismo, em si mesmo, não pode ser atingido pelas alegações mentirosas de seus adversários, com o auxílio das quais procuram deturpá-lo; contudo, poderiam dar falsa ideia de seus primórdios e de seus meios de ação, desnaturando os atos e o caráter dos homens que nele tiverem cooperado, se não se desse a contrapartida oficial. Esses arquivos serão, para o futuro, a luz que dissipará todas as dúvidas, a mina onde os comentadores futuros poderão colher com certeza. Como vedes, senhores, esse trabalho é de grande importância no interesse da verdade histórica...”
Revista Espírita, Allan Kardec – maio, 1864: 
Sociedade Espírita de Paris - Discurso de abertura do sétimo ano social’

A importância desses arquivos também fica evidenciada numa carta de Kardec aos confrades de Lyon, que o haviam convidado para uma celebração:

“As 500 assinaturas que subscrevem o convite que tivestes a bondade de me enviar representam uma manifestação contra essa tentativa, e há muitas outras que terei o prazer de aí ver. Aos meus olhos é mais que simples fórmula. É um compromisso de marchar pelo caminho que nos traçam os bons Espíritos. Eu as conservarei preciosamente, porque um dia constituirão os gloriosos arquivos do Espiritismo.”
Revista Espírita - set., 1862: ‘Resposta ao convite dos espíritas de Lyon e de Bordeaux’

Kardec observava, assertivamente, que a conservação de fontes primárias, dentre outros benefícios, ajudaria a preservar o contexto histórico da doutrina nas mais variadas frentes de atuação, por exemplo, para a solução de questões doutrinárias:

“Essa espontânea concentração de forças dispersas deu lugar a uma amplíssima correspondência, monumento único no mundo, quadro vivo da verdadeira história do Espiritismo moderno, onde se refletem ao mesmo tempo os trabalhos parciais, os sentimentos múltiplos que a doutrina fez nascer, os resultados morais, as dedicações, os desfalecimentos; arquivos preciosos para a posteridade, que poderá julgar os homens e as coisas através de documentos autênticos. Em presença desses testemunhos inexpugnáveis, a que se reduzirão, com o tempo, todas as falsas alegações da inveja e do ciúme?”
A Gênese, os Milagres e as Predições segundo o Espiritismo, Allan Kardec – cap. I, nota no item 52

E também no enfretamento das adversidades impostas ao movimento espírita:

É útil, entretanto, que mais tarde se saiba de que armas se serviram para combater o Espiritismo. Infelizmente, os artigos de jornais são fugidios como as folhas que os contêm; as próprias brochuras têm uma existência efêmera e em alguns anos os nomes dos mais fogosos e dos mais biliosos antagonistas provavelmente estarão esquecidos.
“Só há um meio de prevenir este efeito do tempo: é colecionar todas as diatribes, venham de que lado vierem, e fazer um arquivo que não será uma das páginas menos instrutivas da história do Espiritismo. Não me faltam documentos para tal trabalho, e lamento dizer que são as publicações feitas em nome da religião que até hoje lhes têm fornecido o mais forte contingente.”
Revista Espírita, Allan Kardec – set. 1863: ‘Segunda carta ao Padre Marouzeau’

È bem verdade que algumas das composições inéditas de Kardec foram publicadas por Pierre Leymarie no livro Obras Póstumas, de 1891, além de alguns raros artigos aqui e acolá dispersos na Revista Espírita pós-Kardec; porém isso foi muito pouco, pelo valor que todo o conjunto tem.

Felizmente, como sabemos, nem tudo se perdeu e hoje nós dispomos do Projeto Allan Kardec, que reúne o que sobrou dos arquivos kardequianos.

Nota complementar de Ery Lopes: de viagem à Paris em 2017, em três ocasiões que fomos até o endereço, infelizmente encontramos a livraria fechada e não pudemos adentrar no local; mas constatamos uma coisa curiosa: no andar de cima da loja, uma placa de anúncio de serviços: "Ocultismo Leymarie". Nada de estranhar, aliás, porque a referida livraria, desde os tempos da família fundadora, já não era genuinamente espírita, mas sim espiritualista, vendendo todo tipo de artigos místicos. E é realmente uma pena que o Espiritismo kardecista não tenha fincado raízes tão fortes mesmo nos seus primeiros seguidores!!!

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