"Espiritismo, religião do livro" — o que isso quer dizer?



Acabou de ser publicado no portal oficial da UNICAP - Universidade Católica de Pernambuco, a tese aprovada para o curso de Doutorado em Ciências da Religião: 'Espiritismo, de doutrina filosófica à religião do livro: entre controvérsias, livros e cânone', da autoria do nosso confrade espírita Luís Jorge Lira Neto. O que isso significa e como o seu autor chegou a essa conclusão?

É sobre o que falaremos a seguir.

De antemão, disponibilizamos aqui o link para ler e baixar a tese na íntegra.

Com efeito, a referida tese foi apresentada no dia 19 de setembro de 2025, como parte dos requisitos para a obtenção do título de Doutor em Ciências da Religião pelo Programa de Pós-graduação em Ciências da Religião da Universidade Católica de Pernambuco. O candidato foi arguido pela banca examinadora e, após a deliberação, o trabalho foi aprovado.

O resumo da obra já responde a algumas questões básicas. Ei-lo:

"Esta pesquisa verificou a trajetória do Espiritismo, um caso particular do Espiritualismo Moderno, movimento espiritualista iniciado nos Estados Unidos da América em 1848. Aqui analisado como um fato sociocultural e transnacional. Em trânsito pelo Ocidente chega à França e é recepcionado por uma cultura imersa no ideal iluminista tardio. Ressignifica como Doutrina Filosófica em 1857, a proposta conciliatória de Allan Kardec para o dilema da modernidade entre fé e razão. De retorno ao continente americano, aporta no Brasil e se defronta com uma sociedade de religiosidade singular, sincrética, mística e receptiva ao espiritual. Toma, então, características de uma Religião Cristã, processo imerso em controvérsias e discussões se o Espiritismo é religião ou não e, ademais, sob pressões externas, do Estado, da Igreja e da classe médica. Com o intuito de analisar as transmudações socioculturais do Espiritismo, esta tese objetiva demonstrar o processo de transformação do Espiritismo em Religião do Livro, na linha judaico-cristã, frente às narrativas dos grupos espíritas em controvérsias doutrinárias e a transformação das obras fundamentais espíritas em Cânone sacralizado. E em específico, mostrar a evolução histórico-cultural do Movimento Espírita Francês, contextualizado como um fato social; identificar as causas que levaram o Espiritismo no Brasil a ter características de Religião Cristã e suas singularidades frente à matriz francesa; apresentar os principais grupos espíritas em controvérsias no Brasil, identificando os argumentos que embasam suas disputas, sob a perspectiva da Teoria de Campo Religioso de Pierre F. Bourdieu, além de identificar o contexto e; verificar os fatores que caracterizam o Espiritismo como uma Religião do Livro, entendido como um sistema articulado com base em um livro profético, sacralizado num Cânone, uma religião de referência e uma comunidade de seguidores. O aporte metodológico está ancorado em pesquisa bibliográfica e documental, em fontes primárias e secundárias das obras espíritas e no acervo do Projeto Allan Kardec da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), que deram condições de mapear as configurações do Espiritismo em culturas e sociedades diferenciadas. Identificada a centralidade no Livro e nos Evangelhos intrínsecos ao Espiritismo, foi aplicado modelo de análise de formação de Cânone de religião letrada, adaptado de José S. Croatto e Aldo N. Terrin para verificar o sistema de crenças e de práticas espíritas, resultando na constatação da configuração do Espiritismo na França como Religião Filosófica e Letrada, identificada com a secularidade, enquanto no Brasil apresentou configuração de Religião Cristã do Livro, de identidade de mística letrada, porém, ambas situadas na modernidade."

Bem, explicando de maneira simples, o campo acadêmico trato, o conceito de "Religião do Livro" como sendo uma categoria utilizada para classificar as tradições religiosas que têm um texto sagrado central e fundamental para a sua doutrina, práticas e identidade. O Judaísmo, o Cristianismo e o Islamismo são demonstrações clássicas de religiões que se enquadram nessa categoria, cada qual se fundamentando numa obra literária considerada sacra, divina, a saber:
  • Judaísmo: cujo texto sagrado central é o Tanakh (que inclui a Torá);
  • Cristianismo: que se baseia na Bíblia (Antigo e Novo Testamento);
  • Islamismo: cujo livro sagrado é o Alcorão.
Todavia, o próprio conceito de "Religião do Livro" também é objeto de debate e crítica dentro da academia; alguns estudiosos argumentam que pode haver anacronismo (erro conceitual de atribuir um valor de um tempo a algo que não pertence a este determinado tempo) ou simplificação excessiva ao descrever a diversidade de práticas, mesmo dentro dessas tradições, que nem sempre focam exclusivamente no texto escrito.

Discussão conceitual à parte, o que nos interesse aqui é averiguar se a conclusão da tese do Dr. Luís Jorge Lira Neto é plausível; isto é: O Espiritismo é uma religião do Livro? Ele tem, de fato, um livro — ou um conjunto de livros  considerado "sagrado" e que norteia seus "fiéis"?

"Absolutamente não!" — diria Allan Kardec, de pronto! E é bem verdade que o próprio codificador espírita rejeitou diversas vezes a ideia de que a codificação do Espiritismo por ele empreendida encerrasse a Revelação Espírita; ao contrário, ele sempre enfatizou que a "verdade" é progressiva, contínua.

A questão é que, segunda a terminologia acadêmica, não vale uma pessoa só dizer isso ou aquilo para que tudo se conduza com tanta simplicidade; os desdobramentos religiosos seguem um dinamismo que escapa do controle até mesmo do "fundador" da respectiva doutrina — podendo até se processar à revelia desteE é neste sentido que nosso confrade tenta demonstrar que, estivesse ou não dentro da programação de Kardec, o que se sucedeu foi que a Doutrina Espírita deu vida sim a uma religião (e não somente a partir do movimento espírita brasileiro, como muitos sugerem, mas já desde a França contemporânea do pioneiro espírita) e que esta religião se fundamentou em livros (a produção literária kardequiana) que foram absorvidos dentro de uma certa sacralidade. Afinal, não é verdade que em geral as controvérsias doutrinárias espíritas acabam evocando falas do tipo "Kardec disse isso..." ou "Kardec não disse isso...", no que se pode dizer que os livros kardequianos formam uma espécie de "Bíblia Espírita"?

Hum, isso dá pano pra muita manga, não é mesmo?

Então, por hora, vamos deixar que os amigos leiam a tese e se inteirem dos argumentos do Dr. Lira Neto, para então voltarmos a conversar sobre sua conclusão com mais profundidade.

Novamente, aqui está o link da tese.

Leiam e deixem seus comentários.

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