terça-feira, 13 de agosto de 2013

A Vida, A Morte e a Música

Filomusicologia
Artigo publicado no Blog Filomusicologia (http://filomusicology.blogspot.com.br) que julgamos interessante para a apreciação dos nossos amigos.

O artista é profeta da vanguarda, em sua ímpar mensagem subliminar, e a Música — primeira das artes — desenvolve esse papel superiormente.

O compositor alemão Johannes Brahms (1833-1897) já era consagrado e estava um tanto desmotivado para novas composições — faltava-lhe inspiração, alegou. Porém, em decorrência do falecimento, um tanto trágico, do amigo e conterrâneo Anselm Feuerbach, Brahms voltou-se para os questionamentos acerca da espiritualidade. Em memória do amigo, ele compôs uma verdadeira obra-prima, não apenas pela sofisticação melódica, mas pelo tema empregado na canção.

Em tempos de Inquisição, quando questionar os dogmas romanos era risco de vida, Brahms absteve-se da mesmice dos temas fúnebres, especialmente em torno das promessas clássicas do céu e inferno — extraídas da interpretação clássica sobre as escrituras bíblicas —, e inovou, ao mesmo tempo em que provocou, considerando outras ópticas, remontadas a partir da mitologia grega, em alusão direta a mais abissal inquietação dos pensadores: o destino pós-morte.

No réquiem Nänie (canção fúnebre), de 1881, sobre o poema homônimo de Friedrich Schiller, ele exalta a morte — por exemplo, quando diz "Mesmo a beleza deve perecer". Brahms deixa então sua concepção de que o destino dos homens é indefinido. Morte, fim, recomeço, continuação…?


Em outro opus, Schicksalslied (Canção do Destino), sobre o poema de Friedrich Hölderlin, Brahms polemizar sobre a sina dos homens, como míseros mortais, frente aos deuses, que gozam da infinitude.

A indefinição deixada por Brahms abre brecha para que se perscrutasse sobre o destino — da morte e do sentido da vida — com mais liberdade, de forma mais intimista, apurando conclusões pessoas entre a racionalidade das coisas terrenas e as emoções que a sepultura nos provoca. É, portanto, uma heresia, uma afronta à Igreja, que toma para si a prerrogativa de ditar o destino da humanidade. Em Brahms, ousamos questionar nossa própria sina, bem como a da Humanidade. E, num ato lúcido, uma conclusão primordial se apresenta desde pronto: se a escrita não está legível, prevalece a dúvida.

Mais tarde, os musicólogos vão encontrar uma versão bem plausível para a dúvida do destino, na música de em Ludwig van Beethoven (1770 - 1827), especialmente em uma sinfonia, a quinta — exatamente a mais famosa deste compositor. Na verdade, não seria preciso ouvir mais do que as quatro primeiras notas desta obra para se compreender a sua ideia central. As três primeiras — notas curtas e num ritmo bem marcado — representam o ritmo frenético e instintivo da vida terrena, na trilha quase mecânica pela sobrevivência carnal. A quarta nota — de duração mais longa — representa a morte e a continuação da nossa existência, portanto, a espiritualidade. Percebe-se então, no transcorrer da composição, uma série combinada de quatro notas, correspondendo àquela chave inicial, continuando três notas curtas e uma quarta nota mais acentuada. E para demonstrar a pujança da vida espiritual, Beethoven encerra a quinta sinfonia — que começa com uma expressão tanto dramática — com uma fanfarra, para conotar um momento festivo, tal como é o plano superior.



Talvez como em mais nenhum outro personagem, em Beethoven os ingredientes VidaMorte e Música têm uma dramaticidade indizível: ainda com 28 anos de idade o compositor começa a perder a audição,. A surdez é progressiva e ele com apenas 46 anos já está totalmente surdo. Para qualquer pessoa, uma deficiência física é uma horrenda tragédia; para um músico qualquer, é uma morte prolonga. Por um momento, o gênio alemão se vê como que perdido, mas, felizmente, a Música o faz renascer.
"Devo viver como um exilado. Se me acerco de um grupo, sinto-me preso de uma pungente angústia, pelo receio que descubram meu triste estado. E assim vivi este meio ano em que passei no campo. Mas que humilhação quando ao meu lado alguém percebia o som longínquo de uma flauta e eu nada ouvia! Ou escutava o canto de um pastor e eu nada escutava! Esses incidentes levaram-me quase ao desespero e pouco faltou para que, por minhas próprias mãos, eu pusesse fim à minha existência. Só a arte me amparou!" (Ludwig van Beethoven, in Testamento de Heilingenstadt, a 6 de Outubro de 1802)


Beethoven renunciou àquele destino vulgar que lhe foi imposto e continuou musicando — e, pode-se dizer, cada vez melhor. A magistral 9ª Sinfonia, finalizada em 1822, dentre outras obras, foi composta já sem os recursos comuns do órgão auditivo. Destarte, ele personifica a vivacidade da arte musical com reflexo prático e direto à própria existência, pois se se considera como superiora a espiritualidade, seu alimento (o pão espiritual) há sobrepujar toda e qualquer manifestação fisiológica e mesmo psicológica — por exemplo, o desejo de auto-aniquilamento, em razão da humilhação de não se estar fisicamente completo.

A relação entre os temas Vida, Morte e Música são, em suma, intrínsecos, seja pelo fator técnico — por exemplo, a alternância do som (notas musicais) e silêncio (pausas) —, seja pelo teor subjetivo das composições. A mitologia clássica cuidou de pôr em relevo essas três potências no drama de Orfeu, que se utilizou do encanto musical foi resgatar sua amada — Eurídice — do reino da morte — o Hades.



Nessa trinca de potências, vê-se um ciclo em voga, em que a Música celebra a Vida, enquanto em vida, e que a Morte, rompendo essa primeira ligação (Música-Vida), acaba por reinventar tudo, pois que ela, a Música, é uma potência espiritual, enquanto que essa Vida e essa Morte de que falamos — e que bem melhor grafados ficam com os sinônimos encarnação e desencarnação — são compassos relativos à dimensão terrena.
Ery Lopes

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