O castigo divino numa visão kardecista: 160 anos de 'O Céu e o Inferno'


Para uns, Deus não castiga ninguém; para alguns outros, a punição é consequente e automática, conforme a justiça natural; para os mais extremistas, a Divindade há de ser implacável e cruel; para Kardec... Vamos analisar isso melhor.

A propósito, este ano de 2025 traz a marca do 160º aniversário de lançamento de O Céu e o Inferno, da autoria de Allan Kardec e dito a quarto livro fundamental da Codificação Espírita; então, em comemoração a esta marca especial, propusemo-nos a analisar a questão aqui apresentada, visto se tratar de um ponto crucial para uma melhor compreensão do mecanismo natural da Justiça Divina, segundo o Espiritismo, conforme, aliás, se compõe o título completo do livro ora homenageado. Além disso, tal questão vem sendo há tempos objeto de discussões e controvérsias dentro e fora do meio espírita, fazendo valer um esforço a mais no sentido de interpretarmos a revelação espírita e o seu codificador. Eis a contribuição deste ensaio.


Versões controversas

A tradição judaica estabeleceu a imagem de Deus com as feições de um soberano terrível, ciumento e vingativo, conforme a interpretação literal da Torá (por exemplo: Naum 1: 2), aliás, vista com exclusividade em prol dos judeus. Por sua vez, o cristianismo convencional, embora proclamado em nome do Cristo Jesus — peremptoriamente caracterizado pela mansidão —, muitas vezes se assume mais judeu do que cristão e não desfaz aquela primeira imagem, levando ao extremo certas falas do nazareno, como quando ele diz: “Toda planta que meu Pai celestial não plantou será arrancada.” (Mateus, 15: 13)

Em ambas essas tradições, prevalece a ideia do privilégio dos “eleitos”: primeiro o povo hebreu, depois os batizados; a consequência disso é a admissão de que os “pagãos” sejam os inimigos do Senhor, “merecidamente passíveis da ira divina”, isto é, o aniquilamento completo, segundo a crença comum hebraica, ou a eternidade das chamas infernais, segundo a igreja erguida em nome do Homem de Nazaré.

À margem da ortodoxia, alguns teólogos modernos e livres-pensadores ponderaram sobre a possibilidade de se conceber que não haja castigo diretamente oriundo das mãos da Divindade, tendo como sustentação básica dois pressupostos alegados, a saber: 1) sendo infinitamente bom, como Deus deve ser, não parece nada lógico que ele faça mal a quem quer que seja — mesmo ao mais profanador dos seus filhos; 2) uma vez tendo configurado a sua Criação, Deus não mais interfere pessoalmente nos eventos, que, desde então, deve obedecer à regulação da máquina universal autônoma, habilmente dotada dos processos necessários para estabelecer uma justiça automática.

Todas essas visões acanhadas podem ser facilmente desordenadas a partir de refutações filosóficas elementares, resultando assim numa imprecisão teológica e até no próprio ateísmo; na melhor das hipóteses, caso se admita a hipótese da existência de Deus, este é relegado a um papel de mero observador do Universo, sem ação efetiva — mais ou menos como na tese do “relojoeiro cego”, de Richard Dawkins. Mas tais teorias são acanhadas porque se fundamentam puramente nos valores terrenos, na ideia da unicidade da vida, ignorando as leis da natureza espiritual, que somente o Espiritismo conseguiu reunir a contento para oferecer um novo modelo teológico, consistente e lógico, no qual sobressaem a lei de reencarnação e o princípio de causa e efeito. E precisamente por também não compreenderem profundamente esse modelo, é que vemos também entre nossos confrades espíritas óticas controvertidas a respeito do castigo divino.


Etimologia de castigar

Uma análise etimológica do termo castigar nos ajudará a refutar a alegação de que Deus não pode castigar — como alguns acham.

Essa palavra vem do latim castigare, e corresponde a châtier no francês de Kardec, do qual deriva châtiment = castigo. A aplicação de castigar é exatamente a mesma do verbo punir, homônimo na língua francesa e igualmente originário do latim, em cuja grafia é punire. Dessa raiz temos punição (punition, para os francófonos). E a associação desses dois vocábulos numa mesma significação tem uma particularidade que convém evidenciarmos.

O conceito primordial de castigar é tornar casto, quer dizer, puro (purus, em latim), imaculado, santificado. É, portanto, sinônimo de purificar, isto é, tornar puro, bem como de punir, pois a punição também objetiva a mesma finalidade: dar pureza mediante uma sanção, ou seja, uma força coativa, uma medida de lei (religiosa ou civil) tomada no sentido de promover aquela finalidade pretendida. Acrescente-se a essa lista outro vocábulo bastante comum nas obras de Allan Kardec e em harmonia com o mesmo contexto: depurar (dépurer, no francês).

Vale a pena saber ainda que o termo latino castigare foi inspirado no grego: χτυπώ, transliterado chtypó, enquanto punire, purus, purificare e depurare têm ligação com a raiz da palavra grega πυρ, pyr = fogo. Ora, esta ligação linguística não é fortuita: ela tem o seu contexto histórico, envolvendo certos rituais antigos de purificação, que eram processados exatamente a partir do uso do fogo — mas não tão antigos assim, porque, na Era Medieval, as fogueiras da Inquisição queimavam os hereges vivos sob o pretexto de “purificar” o mundo das suas ditas heresias. A crença do inferno como um local tomado pelas labaredas brota dessa relação entre fogo e sofrimento, como o próprio Kardec contextualizou:

“Sendo impotente para descrever com sua linguagem a natureza desses sofrimentos, o homem não encontrou comparação mais enérgica do que a do fogo, pois para ele o fogo é o tipo do tormento mais cruel e o símbolo da ação mais enérgica. É por isso que a crença no fogo eterno data da mais alta antiguidade, e os povos modernos a herdaram dos povos antigos. É por isso também que o homem diz, na sua linguagem figurada: o fogo das paixões; queimar de amor, de ciúme etc.”
O Livro dos Espíritos – comentário da questão 974-a


Sofrimento e aprimoramento

A premissa suprema no contexto em voga é que o sofrimento constitui um meio válido, eficaz e imprescindível para o aprimoramento do ser — o que não é nada estranho para a codificação espírita, mas ao contrário: em muitas passagens da obra kardequiana somos instruídos sobre a necessidade de sofrer para nos depurarmos, e mais especialmente sobre o sofrimento como punição para o infrator da lei divina, como diz Kardec neste recorte:

“Os sofrimentos que decorrem disso são para ele uma advertência de que agiu mal e lhe dão experiência, fazendo-lhe sentir a diferença entre o bem e o mal, assim como a necessidade de se melhorar, para evitar posteriormente aquilo que para ele foi uma fonte de amarguras; sem isso, ele não teria motivo algum para se emendar; confiante na impunidade, ele retardaria o seu avanço e, por conseguinte, a sua felicidade futura.”
O Evangelho segundo o Espiritismo – cap. V, item 5

Nessas circunstâncias, o castigo parece muito natural e, longe de ser considerado um mal, acaba sendo um bem à vista das carências evolutivas do Espírito; nas palavras de Um Espírito Amigo, na bela mensagem ‘A Paciência’, “é uma bênção que Deus envia aos seus eleitos...” (O Evangelho segundo o Espiritismo, Allan Kardec – cap. 9, item 7). Não despropositadamente, Léon Denis, o grande filósofo e apóstolo kardecista da primeira geração pós-Kardec na França, dedicou uma obra específica para essa temática: O Problema do Ser, do Destino e da Dor, na qual, em dado ponto ele vai dizer:

“Suprimi a dor e suprimireis, ao mesmo tempo, o que é mais digno de admiração neste mundo, isto é, a coragem de suportá-la.”
O Problema do Ser, do Destino e da Dor, Léon Denis – cap. XXVI

Voltando à bibliografia kardequiana, são fartos os exemplos sugeridos para a reciprocidade entre a infração e o sofrimento reparador, como nesta passagem:

“Muitas vezes, os sofrimentos pelas causas anteriores são — como aqueles pelas faltas atuais — a consequência natural do erro cometido; isso significa que, por uma justiça distributiva rigorosa, o homem sofre o que fez sofrer aos outros; se foi duro e desumano, ele poderá, por sua vez, ser tratado duramente e com desumanidade; se foi orgulhoso, poderá nascer em condição humilhante; se foi avarento, egoísta ou se fez mau uso da sua fortuna, poderá ficar privado do necessário; se foi mau filho, poderá sofrer com seus filhos etc.”
O Evangelho segundo o Espiritismo – cap. V, item 5

Obviamente que não nos compete generalizar os casos e tampouco automatizar as sentenças; não é o caso, por exemplo, de supor que todo cego de nascença esteja sendo punido por ter furado o olho de alguém, nem que um autor de dez assassinatos careça ser assim ferido uma dezena de vezes: a chave da questão não consiste em devolver o sofrimento da vítima para o seu algoz, mas em usar a dor similar como instrumento de conscientização e reparação.

A propósito disso, o pioneiro espírita explica:

“Nem todas as faltas acarretam um prejuízo direto e efetivo; nesse caso, a reparação se realiza assim: fazendo o que se devia fazer e não foi feito, cumprindo os deveres que negligenciou ou incompreendeu, as missões em que fracassou; praticando o bem ao contrário do que fez de mal: isto é, tornando-se humilde se foi orgulhoso, dócil se foi duro, caridoso se foi egoísta, benevolente se foi malvado, laborioso se foi preguiçoso, útil se foi inútil, prudente se foi dissoluto, de bom exemplo se deu maus exemplos etc. É assim que o Espírito progride, tirando proveito do passado.”
O Céu e o Inferno – 1ª parte, cap. VII, 17º item do ‘Código penal da vida futura’

Mas é incontestável, segundo a codificação espírita e como ratificação à doutrina do Cristo Jesus, que a expiação é inexorável para a purificação do ser — por menor que tenha sido a infração contra a lei divina:

“Toda falta cometida, todo mal realizado, é uma dívida contraída que deverá ser paga; se não for paga numa existência, será paga na próxima ou nas seguintes, porque todas as existências são solidárias uma com as outras.”
O Céu e o Inferno – 1ª parte, cap. VII, 9º item do ‘Código penal da vida futura’


Exemplos de castigo na lei divina

Chame do que quiser: castigo, punição, pena, expiação, purificação etc.; o que nos interessa é que as obras fundamentais do Espiritismo apontam uma infinidade de casos em que tal medida é aplicada como reação a uma má ação mais ou menos consciente. Verificando o termo Expiação no ‘Vocabulário Espírita’ editado por Kardec, temos a seguinte definição:

Expiação - castigo que os Espíritos sofrem em punição pelas faltas cometidas durante a vida corporal. A expiação, como sofrimento moral, ocorre no estado errante; como sofrimento físico, ela ocorre no estado corporal. As vicissitudes e as tormentas da vida corporal são ao mesmo tempo provações para o futuro e uma expiação para o passado.”
Instrução Prática sobre as Manifestações Espíritas - ‘Vocabulário espírita’

Como já mencionado, a inversão da posição social numa reencarnação subsequente é um dos exemplos práticos de castigo:

“[...] Um senhor que tenha sido duro para seus escravos poderá, por sua vez, tornar-se escravo e sofrer os maus tratos que ele tenha infligido. Aquele que em certa época exerceu o comando pode, numa nova existência, ter que obedecer àqueles mesmos que curvaram sob a sua vontade. Isso será uma expiação, que Deus pode lhe impor, se aquele senhor tiver abusado do seu poder...”
O Livro dos Espíritos - questão 273

Outra demonstração prática, observa o pioneiro espírita como se dá a pena do talião, pela justiça divina, inspirada no "olho por olho, dente por dente" do antigo código babilônico de Hamurabi (1770 a.C):

“Portanto, se alguém é afligido com a perda da visão, é que a visão foi para ele uma causa de queda; quem sabe alguém tenha ficado cego pelo excesso de trabalho que lhe foi imposto por ele, ou por consequência de maus-tratos, pela falta de cuidados etc., e agora ele sofre pela pena de talião” 
O Evangelho segundo o Espiritismo – cap. VIII, item 21

A expiação também pode ser aplicada com relação à mediunidade: Espíritos podem ser proibidos de se comunicarem e os médiuns podem ter seus dotes mediúnicos suspensos ou extinguidos caso não façam bom uso deste recurso:

Os médiuns podem perder a sua faculdade?
“Isso acontece às vezes, qualquer que seja o gênero dessa faculdade; mas também, frequentemente não passa de uma interrupção momentânea, que cessa junto com a causa que a produziu.”
O Livro dos Médiuns - 2ª parte, item 220

Segundo a codificação kardequiana, a morte prematura é outro caso exemplar de expiação — seja para o Espírito da criança que falece, seja para seus pais (O Livro dos Espíritos, questão 199).

Espíritos recalcitrantes no mal e que não acompanham o progresso geral de um determinado planeta, como penalidade, podem sofrer o exílio, sendo transferidos para mundos inferiores (A Gênese, os Milagres e as Predições segundo o Espiritismo, cap. XVIII). Note-se bem: exílio, a contragosto mesmo, expulsos à força e lançados a um lugar que para eles será equivalente a um inferno, “um lugar de ranger os dentes”, como dizia Jesus, e não é sobre outra coisa de que falam as profecias do Apocalipse.

Podem ser punições igualmente o prolongamento da erraticidade (O Livro dos Espíritos, questão 224-b) e a reencarnação compulsória:

Quando o Espírito desfruta do seu livre-arbítrio, a escolha da existência corporal dependerá sempre exclusivamente de sua vontade, ou essa existência bem pode lhe ser imposta pela vontade de Deus, como expiação?
“Deus sabe esperar, não apressa a expiação. Todavia, Deus pode impor uma existência a um Espírito, quando este — pela sua inferioridade ou má vontade — não está apto a compreender o que poderia lhe ser mais proveitoso, e quando vê que tal existência pode servir para a purificação e o avanço do Espírito, ao mesmo tempo em que ele encontre nela uma expiação.”
O Livro dos Espíritos - questão 262-a

E mais: Espíritos criminosos podem ser constrangidos a permanecer no local do ato praticado como punição, para que “constantemente tenham esse crime diante dos olhos” (O Livro dos Médiuns - 2ª parte, cap. IX, item 132, questão 9); noutros casos, o instrumento da sentença pode ser o campo aberto para a obsessão (Idem - 2ª parte, cap. XXIII, item 252); há, inclusive, os mundos especialmente voltados para processos expiatórios:

“Há Espíritos que jamais podem se comunicar; são aqueles que, por sua natureza, ainda pertencem aos mundos inferiores à Terra. Muito menos os que estão nas esferas de punição, a menos que com uma permissão superior, que não é concedida a não ser para uma utilidade geral.”
O Livro dos Médiuns - 2ª parte, cap. XXV, item 282, perg. 3ª

Finalmente, temos a demonstração do que ocorre muitas vezes nos flagelos destruidores da natureza, que além de serem um meio “para fazer as coisas chegarem mais rapidamente a uma ordem melhor”, servem como corretivo para o homem mal, para “castigá-lo em seu orgulho e fazê-lo sentir sua fraqueza” (O Livro dos Espíritos – questões 737 e 738). Também faz bem lembrarmos que a natureza não é uma máquina automática ou de eventos fortuitos: todos os fenômenos naturais são gerados e gerenciados por inteligências, Espíritos agentes da vontade de Deus, que agem “em massas incontáveis” para agitar, acalmar ou direcionar os eventos (O Livro dos Espíritos – questões 536 a 540).

Isto rebate categoricamente a opinião dos ignorantes que negam a Providência Divina em nossa vida diária e na ordem das coisas físicas, negação essa que normalmente tem por móvel o orgulho do próprio saber humano:

“Essa tendência de se acharem acima de tudo muito frequentemente os leva a negar aquilo que, estando acima deles, poderia rebaixá-los — negando até mesmo a Divindade; ou, se eles consentem em admiti-la, contestam um de seus mais belos atributos: sua ação providencial sobre as coisas deste mundo, convencidos de que eles são suficientes para bem governá-lo.”
O Evangelho segundo o Espiritismo – cap. VII, item 2


Modus operandi da justiça divina

Dada a complexidade da natureza espiritual e a nossa pouca evolução, podemos dizer que não sabemos quase nada do modo de operação do Universo; ainda assim, a partir de alguns elementos já fornecidos pela Revelação Espírita, é possível cogitarmos como funciona, em geral, o processo expiatório na Terra, operado pela espiritualidade.

Ainda que o processo todo em si resulte num benefício geral e se baseie no princípio de reeducação, ao invés de um penalidade vingativa, permanece o problema do modo de operação da justiça natural, ou divina: para executar esse dispositivo evolutivo — mormente nos casos de expiação —, faz-se preciso infligir a pena, sendo ela necessariamente dolorosa, a fim de impor o sofrimento capaz de repercutir no entendimento do sujeito a expiar, para levá-lo a um recondicionamento moral; noutras palavras, é preciso fazer com que um “mal” recaia sobre ele; daí, a questão sobre quem opera esse infortúnio.

Debalde argumentar que a Divindade esteja alheia a este processo: se ele é operado em nome da justiça divina, tendo como seus agentes diretamente envolvidos os Espíritos devidamente autorizados, em última instância, sempre haverá aí o dedo de Deus, que é o agente supremo; desta feita, se um dos seus ministros executa uma determinada tarefa dentro da conjuntura de sua justiça, então podemos dizer que é Deus agindo propriamente — mesmo que por via de representação.

Dessa maneira, seria admissível supormos que Deus ou algum dos seus encarregados force uma eventualidade para fazer com que um mal atinja aquele a quem está prevista uma determinada expiação? Numa suposição mais concreta: se for preciso um homicida expiar seu crime da mesma forma, quem será, dentre os agentes responsáveis pelo tribunal divino, o executar que — literalmente — cuidará de providenciar o homicídio daquele criminoso? Porventura, Deus, Jesus ou qualquer Espírito bom insuflaria o pensamento de um encarnado com a ideia de executar tal sentença?...

Não, absolutamente, porque isto sim seria praticar um mal — o que não é próprio da justiça divina. Mas, enfim, aqui entra o papel do anjo guardião de cada um, dentro de uma conjuntura sabiamente elaborada, que respeita o livre-arbítrio dos indivíduos e o princípio da responsabilidade individual, como veremos a seguir.


O papel dos anjos guardiões

Fora aquele sofrimento comum proveniente das provações e expiações — e que nós vimos que não constitui verdadeiramente um mal — existe o ato maligno que os Espíritos imperfeitos são capazes de praticar. Em suma, Deus não criou o mal em si, o que equivaleria a praticar uma maldade; mas, desde quando se fez necessário conceder o livre-arbítrio às inteligências, ele criou a possibilidade do mal; destarte, o mal em si não é obrigatório, mas sim facultativo: não é preciso que alguém faça o mal, mas é mister que haja essa possibilidade, para que o Espírito tenha o mérito de ter renunciado às tentações, e, caso o pratique, adquira o mérito de ter se purificado do mal.

Entretanto, o livre-arbítrio do homem não lhe é dado por completo, mas alcançado gradativamente, na proporção de seu discernimento sobre as coisas — o que implica na responsabilidade pessoal. Até que os homens estejam razoavelmente aptos a arcar com as consequências de seus atos, eles são regidos instintivamente pelos seus guias espirituais; é por esta razão que se diz que os Espíritos não apenas influenciam nossos pensamentos e atos, como também “frequentemente são eles que nos dirigem” (O Livro dos Espíritos – questão 459).

Disso resulta que, de certa forma, qualquer má intenção que se tenha e que se deseja levar a efeito — seja contra si, seja contra outrem —, a sua realização fica subordinada ao consentimento dos Espíritos que dirigem a humanidade. De outra forma, poderíamos dizer que fica subordinada à vontade de Deus. Se for contra si mesmo, o sujeito tem em sua defesa pelo menos o seu protetor pessoal; se for contra uma terceira pessoa, aí já há um duplo controle, porque esse alguém também tem o seu próprio anjo guardião. E a verdade é que, sem exagero nenhum, todo santo dia os nossos mentores invisíveis têm efetuado autênticos milagres, ou nos livrando do mal externo ou dos nossos próprios males.

Contudo, os livramentos não são absolutos, e por vezes nossos guardiões precisam deixar que façamos nossas coisas más, ou que coisas más provindas dos outros nos aconteçam — como provação ou castigo. Na realidade, há uma terceira possibilidade: como circunstância dentro de uma missão; mas nem vale a pena discorrermos sobre isso agora, porque, para sermos sinceros, nós estamos muito longe de sermos Espíritos missionários.

Ora, como estamos num planeta especialmente caracterizado ainda como mundo de expiações e de provas, conquanto já em transição para mundo de regeneração, a possibilidade do mal está em cada esquina, quando não na nossa casa mesmo. Não há nenhum recurso peremptório para nossa total segurança neste mundo: a todo o instante e em qualquer parte podemos ser alvos de um ladrão, um abusador ou de um assassino; se não for um protetor espiritual para nos livrar do mal diário, ninguém mais!

Portanto, para o cumprimento da justiça divina, não se faz preciso que nenhum agente divino crie ou promova o mal; basta-lhe apenas afrouxar a guarda, já que o espírito maligno está ao nosso redor. É nesse sentido que o mensageiro Lacordaire escreve, em advertência a uma jovem, para que ela não deixe no abandono o seu anjo guardião:

“Conserve-se pura aos olhos de Deus, se não quiser que o teu anjo guardião volte para ele, cobrindo o rosto com as suas brancas asas e te deixando com os teus remorsos, sem guia, sem amparo neste mundo, onde você ficaria perdida, esperando ser punida no outro mundo.” (Lacordaire)
O Evangelho segundo o Espiritismo – cap. VII, item 11

Concretamente, a obra kardequiana descreve o papel dos anjos guardiões e nos informa que por vezes eles nos deixam por nossa conta própria:

“Ele se afasta quando vê que seus conselhos são inúteis e que a vontade de se submeter à influência dos Espíritos inferiores é mais forte. Entretanto, nunca o abandona completamente e sempre se faz ouvir. Então, é o homem quem tapa os ouvidos. Ele então retorna quando que é chamado...”
O Livro dos Espíritos – questão 495

Eis por que a espiritualidade tanto nos concita a evocarmos nossos anjos guardiões incessantemente, endossando a citação supracitada: “Ah, se vocês conhecessem bem esta verdade! Quanto ela vos ajudaria nos momentos de crise! Quantas vezes vos livraria dos maus Espíritos!”

Quando, porém, é imperativo que um tutelado passe por uma circunstância expiatória, seu guardião afrouxa sua proteção, ensejando assim a aproximação de entidades perversas, que provocarão as “más” eventualidades; estes seres inferiores então servirão de instrumentos para a justiça divina — não por obediência a Deus, mas sim seguindo suas próprias más tendências, inclusive porque eles nem sabem que estão fazendo esse “favor” ao conserto das coisas, e por isso mesmo não ganham nenhum benefício com essa contribuição involuntária, mas, ao contrário, deverão ser punidos pela maldade que fizeram. É daí que vem a fala do Cristo: “É necessário que venha o escândalo, mas ai daquele por quem o escândalo venha.” (O Evangelho segundo o Espiritismo – cap. VIII, item 16)

Todavia — alguém poderá perguntar —, considerando que estejamos bastante sintonizados com nossos mentores espirituais e tenhamos o mérito de seu auxílio, será mesmo que eles têm poder sobre o mal para nos defender? E a resposta não pode ser outra senão que Sim! — que os Espíritos superiores (isto é, os bons Espíritos) possuem uma autoridade “irresistível” sobre os maus Espíritos, por uma ascendência moral que se materializa através de sua força magnética (O livro dos Espíritos – questões 274 e seguinte).


Conclusão

Fica patente, pois, que sim, Deus castiga! Em nenhum momento da obra kardequiana se lê algo diferente disso; mas que, ao contrário, são numerosos os exemplos de sanções aplicadas aos que desobedecem a Deus — situações às quais os Espíritos inferiores e culpáveis são forçosamente constrangidos a se submeterem. Seja qual for o termo empregado — de castigo, punição, expiação, purificação, depuração etc. — a ideia está bem nítida: toda má ação gera uma consequência mais ou menos penosa, conforme a gravidade daquela ação,  e isso tanto a título de reeducação moral quanto a de reparação a quem ela prejudicou.

Os que pretendem negar esta realidade são aqueles que consciente ou inconscientemente se movem pelo espírito de autossuficiência, de orgulho, por quererem que “o indivíduo — encarnado ou desencarnado — seja a medida de todas as coisas”, quando na verdade a referência absoluta é Deus.

O que definitivamente não existe é o castigo eterno, nem qualquer mal que não possa ser redimido. A propósito, em sintonia com a expressão do apóstolo Pedro: “A caridade cobre uma multidão de pecados.” (I Pedro, 4: 8), o código penal da vida futura, segundo o Espiritismo, diz que a melhor compensação pelo mal praticado é a realização do bem, pois se as más ações acarretam suas devidas consequências, igualmente as boas ações angariam suas correspondentes recompensas:

Não há uma única imperfeição da alma que não traga consigo suas consequências funestas e inevitáveis, assim como não há uma só qualidade boa que não seja uma fonte de uma satisfação. A soma das penas é assim proporcional à soma das imperfeições, da mesma maneira que a dos prazeres está condicionada à soma das qualidades.”
O Céu e o Inferno – 1ª parte, cap. VII, 3º item do ‘Código penal da vida futura’

E que não percamos de vista que até mesmo o mais sincero arrependimento não é o bastante para anular a necessidade de reparação àqueles a quem foi feito algum mal; absolutamente! Todo mal deve ser reparado; no entanto, desde que o Espírito realmente tenha se arrependido, isso significa que ele terá aprendido a lição e recondicionado sua conduta; sendo assim, esta reparação já não será sacrificante para ele, mas ao contrário: será até prazerosa, por ter consciência de que estará pagando seu erro e fazendo um bem aos que foram vítimas de sua má ação.

E findamos com a mensagem do apóstolo Paulo, publicada por Allan Kardec:

“Gravitar para a unidade divina: esta é a meta da humanidade. Para alcançá-la, três coisas são necessárias: justiça, amor e ciência; três coisas são opostas e contrárias a isso: ignorância, ódio e injustiça [...]
“Quem é, de fato, o culpado? É aquele que, por um desvio, por um falso movimento da alma, se afasta do objetivo da criação — que consiste no culto harmonioso do belo, do bem, idealizados pelo exemplo humano, pelo Homem-Deus, por Jesus Cristo. O que é o castigo? A consequência natural, derivada desse falso movimento; uma soma de dores necessárias para fazê-lo desgostar da sua deformidade, pela experimentação do seu sofrimento. O castigo é o aguilhão que excita a alma, pela amargura, a se curvar sobre si mesma e retornar ao terreno da salvação. O objetivo do castigo não é outro que a reabilitação, a redenção.”
O Livro dos Espíritos - questão 1009


Referências:

Veja também as nossas primeiras publicações sobre esta série especial de artigos: 

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