domingo, 29 de outubro de 2017

Biografia de Berthe Fropo pelo artigo "A mulher que denunciou irregularidades no Movimento Espírita Francês" por Adriano Calsone


Caros amigos e confrades, apresentamos a seguir um conteúdo inédito e histórico para o Movimento Espírita, trabalho garimpado pelo dedicado pesquisador Adriano Calsone, autor dos livros Madame Kardec e Em Nome de Kardec (que já comentamos aqui). Trata-se de um achado extraordinário, como todos verão adiante.

Neste mês de outubro, lançamos a obra Muita Luz, tradução de Beaucoup de Lumière de Madame Berthe Fropo (clique aqui para baixar), que consideramos um livro de grande valor para a historiografia do Espiritismo, mas, à época, como confessado, sem que tivéssemos muitas informações sobre a autora. Ocorreu, no entanto, que a anunciada tradução correu o mundo (pelas mensagens que recebemos) e chegou — coisa incrível, essa — ao conhecimento de um familiar (sobrinho de terceiro grau) da própria Berthe Fropo, que então, por iniciativa pessoal, entrou em contato com Calsone, via rede social, interessado em colaborar com as nossas pesquisas e disposto a dar informações mais detalhadas sobre a nobre ativista espírita, inclusive — o que nos deixou radiantes de alegria — cedendo cópias de fotografias de seu acervo familiar, envolvendo a autora de Beaucoup de Lumière.

E, portanto, ainda encantados com esse salutar contato, compartilhamos com todos nossos apurados acerca da biografia de Berthe Fropo, através desse artigo que Adriano Calsone escreveu para este nosso canal de divulgação espírita.

Segue o artigo e as fotos inéditas de Berthe Fropo:


"A mulher que denunciou irregularidades no Movimento Espírita Francês"
por Adriano Calsone

Parece soar mentira quando afirmarmos que existiu há 133 anos atrás alguém que foi capaz de denunciar abusos, irregularidades, corrupção e incoerências doutrinárias que se avolumaram no movimento espírita francês do século 19, mais especificamente depois da morte de Allan Kardec. Impensável ainda constatarmos que esse delator fora uma mulher espírita, amiga íntima da esposa de Kardec. Sim, uma importante mulher que esteve completamente apagada da historiografia espírita mundial!

No mês de outubro do corrente (mês de Kardec), nossos amigos Ery Lopes, Rogério Miguez e Jorge Hessen publicaram a tradução (do francês) de Beaucoup de Lumière (Muita Luz), brochura espírita com 76 páginas de autoria da nunca ouvimos falar, Madame Berthe Fropo. O opúsculo, bilíngue, com tiragem de 1200 exemplares, foi publicado de forma independente na Paris de 1884, e agora pode ser lido grátis por meio do competente Portal Luz Espírita.

Pelo menos para mim, como pesquisador espírita do pós-Kardec francês, trata-se de lançamento dos mais relevantes do ano para a Literatura Espírita, pois nos ajuda a compreender, direto do original, o que se passou com o movimento espírita logo após a desencarnação do codificador do Espiritismo: “Fropo então vai denunciar os desvios de conduta daqueles que se encarregaram de conduzir a Sociedade Espírita e demais atividades institucionais iniciadas por Kardec, por exemplo, a edição da Revista Espírita. Esses desvios, segundo Fropo, eram de ordem doutrinária e moral”, conforme explicação do Sala de Leitura.

Em verdade, o que nos leva a costurar esse artigo biográfico não fora apenas a ideia de ressaltar, novamente, a feliz iniciativa do nosso amigo e parceiro Ery Lopes, justamente ao traduzir e divulgar gratuitamente Muita Luz. O que nos trouxe aqui foi um francês chamado Nicolas Fropo... Fropo?

Logo após a circulação online da tradução de Muita Luz, um artista plástico chamado Nicolas Fropo entrou em contato conosco pelo Facebook, afirmando ser um distante sobrinho de Madame Berthe Fropo. Ulálá!

Para a nossa perda de chão, disse-nos inbox: “Monsieur, eu não falo espanhol, infelizmente! Eu sou o sobrinho de Berthe Fropo. Minha família tem, em sua posse, um retrato de Berthe Thierry de Maugras jovem, bem como uma foto dela no final da vida. Se você precisar de informações biográficas sobre a minha tia, eu posso comunicá-las a você. Atenciosamente Nicolas Fropo.”

A felicidade foi tanta que nem nos importamos de ser confundidos com um espanhol; nem nos aborrecemos com o fato de que, talvez, franceses ainda possam achar que brasileiros sejam espanhóis hablantes numa geleia geral latino-americana, diante de um tudo a mesma coisa, oh Monsieur! Nicolas, talvez, para amenizar a gafe digital de nos confundir com los hermanos, disse depois com a quentura atípica de um francês: “Je suis heureux pour vous”... e ficamos felizes juntos e por todos, como irmãos espanhóis ou não...

O que mais nos intrigou mesmo foi constatar que, dois anos depois de localizarmos a brochura Muita Luz na Biblioteca Nacional da França, em 2015, surgiu agora desse “éter internético” um francês parente disposto a nos abrir os arquivos familiares dessa inquieta mulher Fropo que fez subir, no pico estratosférico da sinceridade, a temperatura do movimento espírita francês do pós-Kardec, trazendo à tona verdades para lá de inconvenientes.

Assim sendo, nós pedimos a Nicolas Fropo que pudesse nos repassar impressões biográficas de sua tia espírita, lamentavelmente tão desconhecida do Espiritismo mundial. O competente artista [1] aquiesceu ao nosso pedido e nos brindou com duas fotos berthísticas e laudas de próprio punho, recheadas com detalhes históricos da família Fropo, além de novas e merecidas informações sobre a nossa femme forte.

Dirá o atencioso sobrinho: “Caro Adriano, aqui está, como prometido, o artigo-testemunho que escrevi sobre Berthe, a partir dos arquivos da minha família" [2]:


“— Figura do Espiritismo francês, Berthe Thierry de Maugras é uma daquelas humanistas que marcaram o seu século por sua independência de espírito, sua cultura, seu espírito de aventura, tal qual Alexandra David-Néel, a exploradora que chegou à China; tal qual baronesa Almaury de Maistre, compositora e autora de peças para coros e orquestras; exatamente como Eugénie de Guérin, mulher de letras para Berthe Morisot, célebre pintora. Essas mesmas que, como Berthe, foram amantes da liberdade numa sociedade de época em grande parte dominada por homens.

Berthe-Victoire-Alexandrine Thierry de Maugras nasceu em 4 de outubro de 1821, em Sarreguemines, Lorraine [3]. É filha de Honoré-Louis Thierry de Maugras [4], diretor do Hospital Militar de Sarreguemines, e de Frederika Rowenhagen, natural de Luxemburgo.


Teve irmãos e irmãs: Henri Thierry de Maugras, nascido em 1817, médico militar, oficial da Legião de Honra; Louise-Wilhelmine Thierry de Maugras, nascida em 1819, e Camille Thierry de Maugras nascida em 1824, médica militar, também oficial da Legião de Honra.

Originária de Fontainebleau, a família de Thierry de Maugras pertenceu à nobreza, e deu à França muitos cavalheiros da Vénerie [5], assim como tenentes policiais gerais e conselheiros do rei. Entre os antepassados de Berthe Thierry de Maugras, há vários pintores do rei, incluindo Charles de Maugras, Ambroise Dubois (1543-1615), que fez um retrato de Gabrielle d'Estrées, amante de Henri IV, obra que tem lugar atualmente no castelo de Fontainebleau.

Por conta das atribuições militares de seu pai, mademoisselle Berthe viverá sucessivamente em Rocroi, em Lille, depois em Briançon, nos Alpes e, finalmente, em Calais, essa última localidade em 1836 [6].

Ela recebe uma educação perfeita como qualquer jovem da boa sociedade. Sabemos que teve uma boa voz e aprendeu canção lírica...


Então, brutalmente, a miséria cai sobre a família Fropo: Honoré-Louis Thierry de Maugras, seu pai, é demitido do exército em 1837, sob o reinado de Louis-Philippe. À medida que sua pensão de aposentadoria entra em atraso, a sua esposa Frederika se sente obrigada a escrever uma petição ao Ministro da Guerra. Ela redige, nestes dramáticos termos: ‘Nossa posição é horrível, não temos nada, Senhor Ministro, que possa fazer sobreviver nossos quatro filhos, que estão sem um futuro [...].’

Encontramos Berthe Thierry de Maugras na Paris de 1846 quando conheceu um jovem cirurgião militar, Augustin-Joseph Fropo, nascido em 1820 e natural de Saint-Omer. Augustin fora brilhante estudante de medicina, defendendo sua tese de doutorado aos 23 anos de idade. Além disso, Augustin Fropo fora iniciado e se tornou maçon d’Amis Réunis de l'Orient de Lille (Amigos Reunidos do Oriente de Lille), em dezembro de 1845. Essa loja (surgida em junho de 1776) esteve no ano seguinte já vinculada à Grande Oriente da França. Somos totalmente ignorantes das atividades maçônicas de Augustin Fropo, mas não é impossível que a militância espírita de sua esposa Berthe, mais tarde com o Espiritismo, tenha a ver com a filiação de seu marido na franco-maçonaria.


Ambos testemunharam uma grande liberdade de espírito, isso enquanto pertenceram à tradição católica. Mas não enxerguemos isso como uma contradição: os aristocratas franceses, sejam nobres ou burgueses, costumam praticar a arte do paradoxo! O fato é que a Igreja Católica não terá palavras suficientes para condenar a maçonaria e criticar o Espiritismo. Por outro lado, os protestantes serão mais tolerantes. Não esqueçamos que as primeiras lojas maçônicas apareceram na Escócia e depois na Inglaterra, no solo anglicano.


Mas é graças à Charles-Henri Thierry de Maugras, que se torna um grande amigo desde seus estudos médicos, que Augustin Fropo encontra sua irmã-esposa Berthe. Nativos da província de Artois, no norte da França, a família Fropo descende, pelas mulheres, dos condes de Flandre. E o casamento católico de Augustin Fropo e Berthe Thierry de Maugras foi celebrado no dia 1º de setembro de 1846, na igreja de Saint-Jacques-du-Haut-Pas, em Paris. [...]

Depois de anos passados na Argélia, pós-campanha italiana de 1859, Augustin Fropo foi nomeado, em 1863, médico do Regimento de artilharia da Guarda Imperial de Paris. Por conta disso, o casal se muda para a Avenida Duquesne, nº 40, não muito longe da Rua dos Inválidos. Eles também tiveram uma casa em Sceaux, comuna francesa perto de Paris.

Casal Fropo, nesta época de ditadura napoleônica, levava uma vida material de acordo com os costumes da boa sociedade do Segundo Império, mas Berthe não se contenta em receber amigos ou ir a qualquer recepção ou exposição. Ela compromete-se com a associação de luta contra o abuso de tabaco.


Curiosamente participa, como artista, de um concerto oferecido pela Marechal Regnault de Saint-Jean-d'Angély, na capela da Escola Militar de Paris. O stabat mater [7] da Baronesa Almaury de Maistre é oferecido no momento em que Berthe Fropo canta um dos solos, e sua apresentação foi realizada em benefício dos pobres.

Mas o Império declina e a guerra explode em 1870... Os prussianos ocupam Paris, o Imperador abdica.

Augustin Fropo é médico-chefe do Hospital Militar de Versalhes e é, por esta razão, que em 1871 defenderá os feridos da Comuna contra os maus tratos infligidos contra esses. Ele é nomeado Comandante da Legião de Honra e Adolphe Thiers, Presidente do Governo Provisório dá-lhe a condecoração. A República é proclamada...

Foi durante esses anos que Berthe Fropo-Thierry de Maugras se iniciou no Espiritismo [8]. Ela se tornou amiga de Amélie Boudet, esposa de Allan Kardec, e foi vice-presidente da União Espírita Francesa. É muito provável que seu marido, que terminará sua carreira militar como inspetor médico com o cargo de general de brigada, apoiará a esposa em sua militância espírita. Augustin Fropo morreu em 1885...

Autora de Beaucoup de Lumière (Muita Luz), Berthe Fropo morre em 9 de novembro de 1898, em sua casa parisiense. Foi por meio dos escritos da Crônica da família Fropo, documento que existe [9] de 1532 até o presente, que redescobri a vida de Berthe Fropo-Thierry de Maugras; que redescobri o seu engajamento no movimento espírita.

Finalmente, aqui está a minha linha de parentesco com esta mulher excepcional: o seu sobrinho, o coronel Louis-Augustin Fropo (1857-1939) terá como filho Maurice-Jean Fropo (1890-1974), que é meu avô [10]."
Nicolas Frobo de Habart



Notas:

[1] Para saber mais sobre Nicolas Fropo de Habart, artista francês talentosíssimo, veja o seu vídeocurrículo-poético, acessando: https://vimeo.com/97887319. Site do Nicolas: www.fropo-dehabart.com. Nicolas Fropo vive em Nîmes, no sul da França.

[2] Em francês, pela mensagem de Nicolas: “Cher Adriano, voici comme promis l'article-témoignage que j'ai écrit au sujet de Berthe, à partir des archives de ma famille.”

[3] Esta localidade francesa fica há quase 500 quilômetros de Paris. Num primeiro momento, analisando esse retrato tardio da então viúva Berthe Fropo, (elegantemente vestida com trajes de luto e foto do marido em retrato oval abaixo do pescoço – tradição das enlutadas à época) curiosamente observamos que ela não possui muitos traços franceses. Talvez porque sua família materna seja de Luxemburgo, estado belga vizinho entre a Alemanha e a França? Esse rosto com expressão doce, serena, reveste uma espírita perscrutadora, valente e corajosa, que defendeu a coerência doutrinária até o fim de seus dias.

[4] Por inbox, Nicolas nos dirá que o pai de Fropo fora “oficial administrativo de Napoleão”.

[5] Grupos masculinos que praticavam um modo de caça ancestral que consiste em capturar um animal (tradicionalmente cervo, veado, raposa ou lebre) por meio de uma matilha de cães, até que esse seja abatido e morto.

[6] Como visto no mapa, Nicolas Fropo relata em detalhes as localidades francesas em que a menina e adolescente Berthe Fropo viveu – antes de desembarcar definitivamente na Paris de 1846.

[7] A expressão religiosa Stabat Mater refere-se a um hino do século 13, em honra à Maria, mãe de Jesus, atribuído ao franciscano Jacopone da Todi ou ao papa Inocêncio III.

[8] Não há dúvidas que Dr. Augustin Fropo fora espírita convicto e o casal, militante do Espiritismo. A afirmação de Nicolas Fropo, a de que o casal Fropo inicia sua militância espírita no início da década de 1870, soa muito estranha pra nós, principalmente por conta de um trecho de depoimento publicado no jornal Le Spiritisme, em dezembro de 1883, em que Fropo vai admitir grande carinho que nutria pelo casal Kardec: “Alguns poucos amigos e eu, lhe restamos fiéis, e é para mim a maior glória da vida ter sido amada até o último suspiro, por esses dois grandes Espíritos.” Isso deixa a entender que ela pode ter conhecido, convivido e foi amada (também) por Allan Kardec. Por essas e por outras declarações, acreditamos que o casal Fropo pode ter se tornado espiritista antes mesmo de 1869.

[9] Isso prova o quando nós brasileiros somos negligentes com registros históricos de nossas próprias famílias; como somos displicentes com as nossas árvores genealógicas; como somos esquecidos de que os nossos antepassados também são importantes e merecem registro e preservação de nossa parte. Que os franceses, nesse aspecto de preservação historiográfica, nos sirvam de exemplo!

[10] Em inbox, Nicolas nos comenta que o casal Fropo não teve filhos e que, além do coronel Louis-Augustin Fropo, ficou como herdeiro direto do espólio outro sobrinho de nome, Auguste  Fropo (1858-1945), advogado da República francesa, sob a jurisdição de Túnis.

8 comentários:

  1. Maravilha!!!Agradeço o envio das informações.

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  2. Que espetacular. Tem como conseguir o livro ao invés de baixar? Muita luz

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    1. Olá, Lili. O referido livro não foi lançado no formato impresso. Mas você pode baixá-lo e imprimi-lo livremente.
      Abraço fraterno.

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  3. Olá, Fernando. O referido livro não foi lançado no formato impresso. Mas você pode baixá-lo e imprimi-lo livremente através do link http://luzespirita.org.br/index.php?lisPage=livro&livroID=158.
    Abraço fraterno.

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  4. Excelente trabalho de investigação ! A partir deste trabalho, quanto necessitamos, todos compreender por onde teve início o desvirtuamento ... penso que tal trabalho deva ser divulgado amplamente, oportunizando o quanto antes uma reação proativa de reformulação no que fazem no Espiritismo !

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  5. Tres heureuse de ta reussite mon cher Adriano! Que contentamento em ler esta publicaçao sobre Madame Fropo Adriano! Os caminhos se abrem para quem tem a intençao de acertar. Abraços Alcione Albuquerque

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