Roustainguismo: uma análise espírita mais aprofundada e menos apaixonada


O programa Mundo Maior em Debate da TV Mundo Maior abordou na edição do dia 15 do último mês o tema "Roustainguismo", cujos vídeos estão liberados para o público geral e aqui os trazemos para a apreciação de todos. Em razão de — com todo o respeito aos envolvidos — considerarmos dessa debate fraco, conforme explicaremos na sequência deste post, pensamos em aproveitar o ensejo para abrirmos uma discussão mais aprofundada e para a qual também convidando os nossos confrades a participarem opinando cordial e livremente:

Parte 1:


Parte 2:


Parte 3:



Um pouco sobre Roustaing

O termo Roustainguismo é derivado de Roustaing (nome próprio) + ismo (sufixo grego que exprime a ideia de um movimento, de natureza diversa, por exemplo, uma corrente política, uma doutrina religiosa, uma teoria científica, uma tendência ideológica, etc.), neste caso, um movimento entorno da obra espiritualista de autoria de Jean-Batpiste Roustaing (1805-1879), um conceituado advogado e jurisconsulto francês, bastonário da Ordem dos Advogados de Bourdeaux.

Diz-se ter nascido em família humilde e que chegou à formação acadêmica não com pouco esforço. Contudo, pela suas capacidades, também muito cedo alcançaria reconhecimento profissional (era reputado um dos mais brilhantes juristas de seu tempo) e, por conseguinte, uma carreira consagrada e boa estabilidade financeira.

Já estabelecido socialmente, Roustaing então é acometido de grave enfermidade, o que o leva a se interessar mais por assuntos espirituais, valendo-se da curiosidade para perscrutar os intrigantes fenômenos das Mesas Girantes e a febre do movimento conhecido como Espiritualismo Moderno. Inclinado às evidências da mediunidade, ele vai então se debruçar sobre as obras de Allan Kardec e enfim se declarar espírita. Sobre O Livro dos Espíritos, especificamente, ele comentou:
"(…) uma moral pura, uma doutrina racional, de harmonia com o espírito e progresso dos tempos modernos, consoladora para a razão humana; a explicação lógica e transcendente da lei divina ou natural, das leis de adoração, de trabalho, de reprodução, de destruição, de sociedade, de progresso, de igualdade, de liberdade, de justiça, de amor e de caridade, do aperfeiçoamento moral, dos sofrimentos e gozos futuros."
Roustaing (Os Quatro Evangelhos, 5ª edição, FEB, vol. I, página 58)
Roustaing põe-se a campo: participa ativamente de reuniões mediúnicas experimentais no grupo formado na família de Émile A. Sabò (que mais tarde fundaria a Sociedade Espírita de Bourdeaux, de onde sairia para Paris e ser secretário particular de Kardec). Decidido a ser um ativo servidor do Espiritismo, corresponde-se com o codificador espírita, pelo que exprime em certas linhas:
"Depois de ter estudado e compreendido, eu conhecia o mundo invisível como conhece Paris quem a estudou sobre o mapa. Pela experiência, trabalho e observação continuada, conheci o mundo invisível e seus habitantes como quem a percorreu, mas sem ter ainda penetrado em todos os recantos desta vasta capital. Não obstante, desde o começo do mês de abril, graças ao conhecimento que me proporcionastes, do excelente sr. Sabò e de sua família patriarcal, todos bons e verdadeiros espíritas, pude trabalhar e trabalhei constantemente todos os dias com eles ou em minha casa, e na presença e com o concurso de adeptos de nossa cidade, que estão convictos da verdade do Espiritismo, embora nem todos sejam ainda, de fato e praticamente, espíritas."
Roustaing (Revista Espírita, Allan Kardec - junho de 1861: "Carta do Sr. Roustaing")
Eis que o célebre advogado se torna um grande divulgador espírita em Bordeaux. Quando Kardec vai visitar a sociedade espírita daquela cidade, em 1861, o orador anfitrião (Dr. Bouché de Vitray) discursou:
Hoje, o reconhecimento me obriga a inscrever nesta página o nome de um de meus bons amigos, que me abriu os olhos à luz, o do Sr. Roustaing, advogado distinto e, sobretudo, consciencioso, destinado a representar um papel marcante nos fastos do Espiritismo. Devo esta homenagem passageira ao reconhecimento e à amizade.
(Revista Espírita, Allan Kardec - nov. de 1861; "O Espiritismo em Bordeaux")
Estaria Roustaing a representar um papel importante para a prosperidade do Espiritismo? Muito provavelmente sim! Porém, em dado momento ele pretendeu mais do que um posto coadjuvante: ele se propôs protagonista de uma nova e bem mais grandiosa fase daquela doutrina, que denominaria "a revelação da revelação".

Em dezembro daquele mesmo ano de 1861, o entusiasmado espírita reencontraria a médium belga Émilie Collignon, que ele havia conhecido numa reunião do grupo do Sr. Sabò. Nesta ocasião, na residência dela, a médium lhe transmite uma inusitada mensagem psicográfica: o nobre advogado era concitado pela espiritualidade a uma tarefa missionária revolucionária, qual seja a de copilar as novas e superiores revelações que ela receberia sob inspiração dos quatro evangelistas (Mateus, Marcos, Lucas e João) assistidos por Moisés (o profeta judaico receptor dos Dez Mandamentos), cujo trabalho resultou no lançamento do livro Os Quatro Evangelhos - Espiritismo Cristão, ao qual o copilador adicionou o subtítulo "ou Revelação da Revelação", sendo os volumes I e II publicados em 5 de abril de 1866 e o volume III em 5 de maio do mesmo ano.


Folha de rosto da 1ª edição de Os Quatro Evangelhos (1866)


Os Quatro Evangelhos de Roustaing


Só para constar, a folha de rosto da obra traz a denominação "Espiritismo Cristão ou Revelação da Revelação" (espécie de classificação do movimento que a obra inaugura, ou seja, uma nova fase do Espiritismo); contendo o epíteto "Os Quatro Evangelhos seguidos dos mandamentos explicados em Espírito e em Verdade pelos Evangelistas assistidos pelos apóstolos e Moisés recebidos e ordenados por J.-B. Roustaing, advogado na antiga Corte Imperial de Bordeaux, antigo bastonário". Trata-se de um calhamaço dividido em 3 tomos: 494 páginas no primeiro volume, 703 no segundo e mais 654 páginas no derradeiro; portanto, um total de 1851 folhas.

Mas, enfim, o que há de revolucionário nesse calhamaço?

Pouco menos de dois meses do lançamento dos primeiros dois tomos e um menos de um mês após o lançamento do terceiro, Allan Kardec vai comentar suas primeiras impressões sobre a obra do seu "confrade" na revista espírita de junho daquele 1866. Pelo tamanho absurdo de Os Quatro Evangelhos e pelas múltiplas atividades do codificador espírita, é de se supor que ele não tenha tido tempo o suficiente para apreciar todas as ideias de Roustaing com a profundidade cabível, e dessa leitura superficial, até então, ele concluiu que ela não estaria em nenhum ponto em contradição com os fundamentos espíritas; limitou-se a criticar a sua prolixidade (repetições, verborragia, textos em excesso, sem proveito e sem clareza) e a total credulidade do autor na competência de uma única fonte (a mediunidade de Émile Collignon e seus guias), mas observou com estranheza a proposição de que Jesus teria usado na Terra um corpo fluídico, e, portanto, não tivesse nascido e vivido de fato como um homem encarnado — o que passou a ser a questão mais espinhenta no debate entre kardecistas e roustainguistas. Vejamos o que Kardec disse:
Esta obra compreende a explicação e a interpretação dos Evangelhos, artigo por artigo, com a ajuda de comunicações ditadas pelos Espíritos. É um trabalho considerável e que tem, para os espíritas, o mérito de não estar, em nenhum ponto, em contradição com a doutrina ensinada em O Livro dos Espíritos e em O Livro dos Médiuns. As partes correspondentes às que tratamos em O Evangelho segundo o Espiritismo o são em sentido análogo. Aliás, como nos limitamos às máximas morais que, com raras exceções, geralmente são claras, elas não poderiam ser interpretadas de diversas maneiras; por isso jamais foram assunto
de controvérsias religiosas. Foi por esta razão que por aí começamos, a fim de ser aceito sem contestação, esperando, quanto ao resto, que a opinião geral estivesse mais familiarizada com a ideia espírita.
O autor desta nova obra julgou dever seguir outro caminho; em vez de proceder por gradação, quis atingir o fim de um salto. Assim, tratou certas questões que não tínhamos julgado oportuno abordar ainda e das quais, por consequência, lhe deixamos a responsabilidade, bem como aos Espíritos que as comentaram. Consequente com o nosso princípio, que consiste em regular nossa marcha pelo desenvolvimento da opinião, até nova ordem não daremos às suas teorias nem aprovação, nem desaprovação, deixando ao tempo o cuidado de as sancionar ou as contraditar. Convém, pois, considerar essas explicações como opiniões pessoais dos Espíritos que as formularam, opiniões que podem ser justas ou falsas, e que, em todo o caso, necessitam da sanção do controle universal, e, até mais ampla confirmação, não poderiam ser consideradas como partes integrantes da Doutrina Espírita.
Quando tratarmos destas questões, fá-lo-emos categoricamente. Mas é que então teremos recolhido documentos bastante numerosos nos ensinos dados de todos os lados pelos Espíritos, a fim de poder falar afirmativamente e ter a certeza de estar de acordo com a maioria; é assim que temos feito, toda vez que se trata de formular um princípio capital. Já dissemos cem vezes: Para nós a opinião de um Espírito, seja qual for o nome que traga, tem apenas o valor de uma opinião individual; nosso critério está na concordância universal, corroborada por uma lógica rigorosa, para as coisas que não podemos controlar com os próprios olhos. De que nos serviria dar prematuramente uma doutrina como verdade absoluta se, mais tarde, devesse ser combatida pela generalidade dos Espíritos?
Dissemos que o livro do Sr. Roustaing não se afasta dos princípios de O Livro dos Espíritos e de O Livro dos Médiuns. Nossas observações assentam sobre a aplicação desses mesmos princípios à interpretação de certos fatos. É assim, por exemplo, que ele dá ao Cristo, em vez de um corpo carnal, um corpo fluídico concretizado, tendo todas as aparências da materialidade, e dele faz um agênere. Aos olhos dos homens que então não tivessem podido compreender sua natureza espiritual, deve ter passado em aparência, expressão incessantemente repetida no curso de toda a obra, para todas as vicissitudes da Humanidade. Assim se explicaria o mistério de seu nascimento: Maria não teria tido senão as aparências da gravidez. Este ponto, posto como premissa e pedra angular, é a base sobre a qual ele se apóia para a explicação de todos os fatos extraordinários ou miraculosos da vida de Jesus.
Sem dúvida nada há nisso de materialmente impossível para quem quer que conheça as propriedades do invólucro perispiritual. Sem nos pronunciarmos a favor ou contra essa teoria, diremos que ela é, pelo menos, hipotética, e que se um dia fosse reconhecida errônea, faltando a base, o edifício desabaria. Esperamos, pois, os numerosos comentários que ela não deixará de provocar da parte dos Espíritos, e que contribuirão para elucidar a questão. Sem a prejulgar, diremos que já foram feitas sérias objeções a essa teoria, e que, em nossa opinião, os fatos podem perfeitamente ser explicados sem sair das condições da humanidade corporal.
Estas observações, subordinadas à sanção do futuro, em nada diminuem a importância desta obra, que, ao lado de coisas duvidosas, em nosso ponto de vista, encerra outras incontestavelmente boas e verdadeiras, e será consultada com proveito pelos espíritas sérios.
Se o fundo de um livro é o principal, a forma não é para desdenhar e também concorre com algo para o sucesso. Achamos que certas partes são desenvolvidas muito extensamente, sem proveito para a clareza. A nosso ver, se a obra se tivesse limitado ao estritamente necessário, poderia ter sido reduzida a dois, ou mesmo a um só volume, com isso ganhando em popularidade.

Allan Kardec (Revista Espírita - junho de 1866; "Os Evangelhos explicados pelo Sr. Roustaing')
Desatenção de Kardec? Excesso de elegância e respeito pelo confrade? Prevenção de polêmica desnecessária? Bem, o fato é que, além da espinhenta questão do corpo fluídico de Jesus, a obra de Roustaing consagra uma ruptura com alguns conceitos fundamentais do Espiritismo ainda mais graves que a suposta "encenação do Cristo". Dentre outras proposições esdrúxulas, Os Quatro Evangelhos defende que o princípio básico da reencarnação — que no Espiritismo é uma condição natural para a evolução intelectual e moral de todos os Espíritos  seria estritamente por expiação, uma punição aos Espíritos que faliram (por exemplo, pelo ateísmo, orgulho, egoísmo, etc.), isso porque a aquisição das capacidades espirituais, bem como o livre-arbítrio, seriam graças recebidas pelo Espírito prontamente de Deus  enquanto que no conceito espírita estas capacidades são conquistas individuais, gradativas correspondentes às experimentações reencarnatórias. Ora, o princípio básico proposto por Roustaing é místico e heteronômico (dependência externa para a "salvação"), uma espécie de reinvenção do dogma do "pecado original" de Adão e Eva e a expiação da humanidade descendente daí, ao passo que o Espiritismo funda-se no racionalismo lógico e na autonomia espiritual para que cada indivíduo possa alcançar a perfeição a que lhe cabe alcançar. Vejamos:
Quando se vos falou do Espírito no estado de infância, no estado, por conseguinte, de ignorância e de inocência; quando se vos disse que o Espírito era criado simples e ignorante, tratava-se,está bem visto, da fase de preparação do Espírito para entrar na humanidade. Fora inconsequente, então, dar esclarecimentos sobre a origem do Espírito. Notai que ela foi deixada na obscuridade. Ainda hoje seria cedo para desenvolver esse ponto. Utilizai-vos, porém, do que vos dizemos, porquanto, ao tempo em que este vosso trabalho aparecer aos olhos de todos, os Espíritos encarnados já se acharão mais dispostos a receber o que então, e mesmo hoje tomariam por uma monstruosidade, ou por uma tolice ridícula.
Atingindo o ponto de preparação para entrarem no reino humano, os Espíritos se preparam, de fato, em mundos ad-hoc, para a vida espiritual consciente, independente e livre. É nesse momento que entram naquele estado de inocência e de ignorância. A vontade do soberano Senhor lhes dá a consciência de suas inocência e faculdades e, por conseguinte, de seus atos, consciência que produz o livre arbítrio, a vida moral, a inteligência independente e capaz de raciocínio, a responsabilidade.
Chegado deste modo à condição de Espírito formado, de Espírito pronto para ser humanizado se vier a falir, o Espírito se encontra num estado de inocência completa, tendo abandonado, com os seus últimos invólucros animais, os instintos oriundos das exigências da animalidade.
(Os Quatro Evangelhos - Mateus, cap. I, v. 1-17)

O movimento roustainguista

Pelo que se pôde apurar, é que, num primeiro momento, a obra de Roustaing não teve a menor repercussão no movimento espírita; não influenciou em nada na conceituação do Espiritismo e não convenceu a praticamente ninguém com as suas "revelações".



Por outro lado, a obra de Kardec só crescia: dois anos depois da publicação do calhamaço do nobre jurista de Bordeaux, vem à lume A Gênese, o livro que sacramentou de vez o Espiritismo como uma doutrina racional e lógica, excluindo absolutamente qualquer chance de se admitir o misticismo, o sobrenatural, o maravilhoso e tudo quanto for afim do espetaculoso.

E não por acaso, este livro começa já tratando no primeiro capítulo do caráter da uma revelação:
A característica essencial de qualquer revelação tem que ser a verdade. Revelar um segredo é tornar um fato conhecido; se a coisa é falsa, já não é um fato e por consequência não existe revelação. Toda revelação desmentida por fatos deixa de ser revelação; se for atribuída a Deus, como Deus não mente e nem se enganar, ela não pode vim dele; ela deve ser considerada produto de uma concepção humana.
Allan Kardec (A Gênese - cap. I, item 3)
Enfatizando a segurança do controle universal do ensino dos Espíritos — em oposição à pronta aceitação de uma revelação por uma única fonte —, o último livro publicado por Kardec vai analisar a origem e desenvolvimento do Universo sempre em sintonia com a solidez das leis naturais de Deus  perfeitas, portanto, imutáveis — dentre as quais a autonomia do Espírito para alcançar a sua perfeição, após seu nascimento em estado de simplicidade e inocência. E, de quebra, volta a tratar da tal tese do corpo fluídico de Jesus proposta por Roustaing, desta vez, concluindo o raciocínio deixado em aberto lá atrás e afirmando: Jesus, como qualquer pessoa, teve um corpo carnal durante sua estadia na Terra confirmado pelos fenômenos físicos que marcaram sua vida (cap. XV, itens 64 a 68).


Pierre-Gaëtan Leymarie

Ocorre que um ano depois do lançamento de A Gênese, 1869, Kardec desencarna e o Movimento Espírita toma novos rumos (veja aqui). Sob a direção de Pierre-Gaëtan Leymarie, a Revista Espírita — o jornal de ensaios teóricos doutrinários e divulgação do Espiritismo fundado por Kardec — passaria a abrir espaço para ideias alheias à codificação kardequiana, dentre as quais, as proposições roustanguistas.


Berthe Fropo

Segundo as anotações de Berthe Fropo — uma defensora invariável da obra kardecista (saiba mais aqui, Roustaing tinha pretensões de ocupar o lugar de Kardec na chefia do Espiritismo e não poupou esforços e nem dinheiro para isso. Em sua brochura Muita Luz (saiba mais aqui)  ela denuncia que Leymarie teria recebido "incentivos financeiros" para fazer apologia ao "roustanguismo".
Sr. Leymarie, para agradar ao Sr. Guérin, por quatro anos, nos tem enchido os ouvidos de seus Evangelhos de Roustaing, seja na Bélgica, seja na França. Ele não sabe falar da profundidade dessa obra. Meu Deus, para os espíritos sem juízo, tudo que é obscuro parece profundo! Assim foi que ele deu os endereços de todos os assinantes da Revista e então que o Sr. Guérin, o executor testamentário do Sr. Roustaing, pôde nos enviar essa lamentável elucubração.
Como se poderia recusar os endereços a um espírita que doou cem mil francos à Sociedade e cinco mil francos para conferências? Um prêmio de três mil francos pelo melhor trabalho espírita. Certamente, Sr. Guérin está muito feliz por ser milionário, porém isso não é uma razão, apesar de seus benefícios, para que deixemos a doutrina desviar-se de seu caminho e insultar o Mestre.

Berthe Fropo (Muita Luz - "Como o Espiritismo é redigido")
Ao contrário de Kardec, que nunca precisou investir em propaganda para divulgar o Espiritismo, Roustaing — segundo Madame Fropo — teria destinado uma fortuna para que seu assessor (Sr. Guérin) gastasse na propagação da "Revelação da Revelação", inclusive na própria Revista Espírita ou em folhetins anexos a esta.



Apesar de todo esses esforços — e investimentos financeiros , a verdade é que o tal movimento roustainguista não floresceu na França. E de Jean-Baptiste Roustaing, não sobrou nem sequer uma fotografia para a História.

Porém, eis que no Brasil...


Espiritismo tupiniquim e o Roustainguismo redivivo

Se o profeto Roustaing não recebeu na sua própria terra o reconhecimento que almejava, aqui no Brasil, por outro lado, ele fez escola — e semeou muitas discordâncias no movimento espírita brasileiro. Aliás, o modelo inaugural do Espiritismo no Brasil é bastante questionável por seu viés tendenciosamente religioso (ver Revista Espírita - nov. de 1869: "Bibliografia: O Eco de Além-Túmulo"), inclusive pela contribuição da obra roustainguista. Os principais grupos espíritas da primeira hora estavam divididos — e em constante litígio — entre dois polos um tanto extremos: os religiosos (chamados também de "místicos") e os cientificistas, cada qual caracterizado exatamente por seu título.

Ora, muitos dos vultos da História do Espiritismo no Brasil iniciaram seus estudos doutrinários precisamente pelos Quatro Evangelhos de Roustaing e então fundamentaram suas "convicções espíritas" pelo binômio Roustaing-Kardec. Assim foi que grupos espíritas renomados (como o Grupo Familiar de Espiritismo, de Luiz Olympio Telles de Menezes na Bahia, e: Grupo Confúcio, Grupo dos Humildes e Grupo Ismael, no Rio de Janeiro) e periódicos como Eco de Além-Túmulo e Reformador sustentaram o roustainguismo em terras tupiniquins e o imprimiram na basa da instauração da FEB - Federação Espírita Brasileira em 1884. Sob a presidência do Dr. Bezerra de Menezes,  já na sua segunda gestão (1895), a FEB formalizou estatutária e legalmente a obrigatoriedade do estudo e divulgação das "revelações" coordenadas pelo profeta de Bordeaux. Os Quatro Evangelhos de Roustaing, traduzida primeiramente por Francisco Raimundo Ewerton Quadros (presidente inaugural da FEB, de 1884 a 1888), foi então publicada integralmente os três volumes pela FEB (o jornal Reformador já havia iniciado sua publicação em série) em 1900. Em 1920, agora traduzida por Guillon Ribeiro (presidente da FEB entre 1920 e 1921 e novamente entre 1930 até seu falecimento em 1943).

Dr. Bezerra de Menezes
A presença de Roustaing nos fundamentos da FEB sempre foi algo contestável e suscetível de muita contenda entre dirigentes espíritas brasileiros — e permanece até os dias de hoje. Com efeito, Leopoldo Cirne, um antigo roustainguista e discípulo de Bezerra de Menezes, a quem sucedeu na presidência da FEB em 1900, ousou remover a paridade que Roustaing detinha com Kardec na daquela federação quando da renovação dos estatutos (1902). Cirne dirigiu a FEB até 1913, quando perdeu o pleito pelo qual tentava a reeleição. Ele então se afasta da instituição e torna-se um ferrenho crítico de seus colegas e do modo como o Movimento Espírita Brasileiro (MEB) estava sendo conduzido. Em 1935, através de seu livro Anticristo, Senhor do Mundo (saiba mais aqui), cujo subtítulo é "O Espiritismo em decadência", ele declara que influências malévolas se apoderaram do MEB e o desviaram dos seus propósitos originais. Sobre Roustaing e sua obra, diz Cirne tratar-se de um plano originalmente traçado pela espiritualidade, mas que teria sofrido uma suspeita interferência oculta.

https://espiritismoemmovimento.blogspot.com/2017/10/cristianismo-espiritismo-e-o-anticristo.html
Leopoldo Cirne
Mais recentemente, Nestor João Masotti (presidente da FEB entre 2001 e 2013, afastado por problemas de saúde) tentou retirar Roustaing dos estatutos da federação, porém, foi vencido por força judicial mediante uma medida cautelar impetrada por Luciano dos Anjos (ver sua biografia na Wikipédia; recomendamos ainda sua entrevista ao Instituto André Luiz) para barrar a assembleia geral que estava prontinha para excluir o estudo obrigatório de Os Quatro Evangelhos do bastonário de Bordeaux (veja aqui). O impetrante alegou que o estatuto da FEB limita a sua reforma somente para as questões administrativas, "vedando os artigos de natureza básico-doutrinárias", apontando que a "cláusula Roustaing" seria uma cláusula pétrea "intocável". A liminar foi cumprida e a assembleia geral não conseguiu o seu objetivo naquele momento, mas o processo correu, com a FEB recorrendo para ter direito a remodelar seu estatuto; o caso foi até a instância superior, sendo a decisão final contrária às pretensões de Luciano e, portanto, favorável à FEB. Ou seja, não havia qualquer limitação para a instituição poder sim reformar suas normas estatutárias, quando e como quiser, através de uma assembleia geral. O "problema" é que esse assembleia não foi mais reaberta e Roustaing continua lá.

Mas é bom que se diga onde Roustaing aparece no estatuto da FEB: consta no parágrafo único do artigo primeiro (que define as diretrizes fundamentais da Federação Espírita Brasileira), nos seguintes termos: "Além das obras básicas a que se refere o inciso I, o estudo e a difusão compreenderão, também, a obra de J.-B. Roustaing e outras subsidiárias e complementares da Doutrina Espírita”. E só! Isso porque fazem por aí muito folclore no entorno da influência roustainguista na FEB e nas suas ações frente ao Movimento Espírita Brasileiro.


O saldo de tudo

O que constatamos  com muito pesar, inclusive — é que a essência do Espiritismo, tal qual Allan Kardec o codificou, está longe de ser bem compreendida pelas massas (tanto no Brasil quanto na França, sua terra natal), incluindo aí muitos dirigentes de instituições e ativistas espíritas em geral, sem contar os outros tantos que, ainda que compreendendo-o teoricamente, não conseguem emular os desígnios a que são chamados, pela desventura de orgulho, vaidade e personalismo. Desta feita, como há os que se apegam a certas tendências religiosistas, filosofísticas, ideológicas, cientificistas e personalismos quaisquer, há quem faça do Roustainguismo um monoideísmo para então defendê-lo apaixonadamente — seja como parte integrante da Doutrina Espírita, seja à parte. E a incidência dessa classe de fanáticos resulta naturalmente na incidência de uma outra oposta: os antirroustainguistas, que tomam para si a missão de varrer os seus oponentes (os roustainguistas) do MEB como uma necessidade urgente, numa espécie de obsessão polarizada.

De nossa parte, sem a pretensão de dar a última palavra e nem a de supormos absolutamente convictos de toda essa questão, entendemos que o Roustainguismo não vale toda essa contenda; é uma doutrina praticamente morta, sustentada por um número ínfimo de cabeças cuja influência prática irrisória no MEB e mais ainda de forma autônoma, fora do universo espírita.

Se a FEB ainda conserva lá no seu estatuto que também Roustaing deva ser considerado um subsidio para o estudo do Espiritismo, na prática, hoje em dia, isso resulta em nada. E por mais má vontade que se possa ter contra a FEB, quem pode apontar atualmente campanha febiana para a divulgação das ideias roustainguistas? Quem, especialmente entre os mais jovens, pode dizer que ouviu falar de Roustaing ou foi doutrinado para as "revelações das revelações" através da FEB? Por acaso, alguém aí sabe informar em que evento público da FEB se faz apologia à tal tese do "corpo fluídico de Jesus"? Acesse agora o site oficial da FEB e faça uma busca por Roustaing e veja o que acontece! Pelo menos hoje, como de outras vezes que o fizemos, nada encontramos!

Pesquisa no site da FEB sobre Roustaing

Alguém contestar, porém, que na Livraria online da instituição estão á venda os três volumes de Os Quatro Evangelhos. Muito bem, condene-se a federação por isso, contudo, sem a intenção de advogar em favor da FEB e tampouco defendê-la por equivalência de erro, não seria mais preocupante para nós kardecistas o número assustadoramente excessivo de supostas obras ditas espíritas e que, a bem da verdade, são muito mais místicas, antiespíritas (doutrinalmente falando) e bem mais perniciosas para o MEB por exercer uma influência substancialmente mais efetiva entre os ditos "praticantes espíritas"?

Além do mais, devemos reconhecer que a obra de Roustaing, se é falha em certos pontos, pode ter a sua serventia para tantos outros propósitos, notadamente no que diz respeito ao seu escopo original que é fomentar a Boa Nova do Cristo nas virtudes espirituais reinterpretando os textos evangélicos. Pode-se dizer que isso é desnecessário, uma vez que Kardec já nos legou O Evangelho segundo o Espiritismo; no entanto, que direito temos de censurar quem deseja se valer também de Os Quatros Evangelhos de Roustaing?

Sabe quem mais faz propaganda de Roustaing, da ideia do corpo fluídico de Jesus e da celeuma histórica entre espíritas e roustainguistas? — Errou quem disse "os roustainguistas"; acertou quem disse "os antirroustainguistas". Uma amostra bastante evidente disso é que no debate da TV Mundo Maior aqui trazido não faltou quem dissesse que jamais ouviu falar dessas coisas. E se fizéssemos uma pesquisa com os espíritas perguntando-lhes sobre nomes de ativistas roustainguistas, provavelmente pouca gente saberia mencionar um só nome, e talvez a lista de antirroustainguistas fosse bem maior.

Além de ser um desperdício de energia, a campanha antirroustainguismo — ainda que por inconformismo em relação à posição da FEB frente a essa questão — é também uma ação de marketing reversa, como diria o próprio Kardec. Aliás, convém lembrar que tantas vezes o codificador aconselhou os espíritas a não alimentarem contendas, pelo exemplo contrário dado pelos adversários do Espiritismo: quanto mais eles atacavam a doutrina, mais ela se expandia.

Allan Kardec
Quando dissemos que o debate promovido pela TV Mundo Maior era "fraco", foi exatamente no sentido de que, sendo superficial — até em razão do tempo limitado — enseja mais dúvidas e intrigas do que esclarece. Seria mais ou menos sobre o que diz o ditado popular: "mexer no que está quieto". Quem não conhecia o roustainguismo e assistiu ao programa doravante se verá diante de mais essa "preocupação".

Somos do entendimento de que o MEB está muito fraco, bem aquém dos propósitos traçados para a renovação da nossa sociedade. Infelizmente, a representatividade do Espiritismo nas questões do nosso cotidiano é insignificante, senão pela tão propagada ação assistencial — talvez muito mais assistencialista do que assistencial. É como se os espíritas só o fossem dentro dos centros espíritas. Falta-nos sermos mais atuantes na vida real, propagando os conceitos elevados que a revelação espírita nos legou.

E se é para cuidarmos de casa, bem mais preponderante e pernicioso que o Roustainguismo, em defesa da pureza doutrinária, temos hoje um sincretismo muito forte, desde as influências católicas, umbandistas, esotéricas, místicas, pseudocientíficas e por aí vai. Daí se vê uma padronização de uma prática dita "espírita", mas cunhada em comportamentos que beiram o sacramentalismo (distribuição a torto e a direito de passes e águas fluidificadas), assistencialismo espiritual (desde supostos procedimentos para "afastar obsessores" aos apelativos tratamentos de cura física e negligência quanto aos valores espirituais) e a ilusão de "ganhar bônus horas" para ir para o Nosso Lar e escapar do umbral (o purgatório, ou mesmo o inferno numa versão espírita).

Parece-nos mais produtivo, ao invés de prolongar contendas desnecessárias, concentrarmo-nos em como melhor nos educar nos conceitos fundamentais do Espiritismo e disseminarmos um ânimo comum no entorno dessas disposições, reanimando-nos nessa missão regeneradora, da qual cremos que Jean-Baptiste Roustaing também era partidário.

Por fim, fiquemos com as palavras de Kardec:
Quando uma coisa está certa e é chegado o tempo de sua eclosão, ela marcha a despeito de tudo. A força de ação do Espiritismo é atestada por sua persistente expansão, malgrado os poucos esforços que faz para se expandir. Há um fato constante: os adversários do Espiritismo consumiram mil vezes mais forças para o abater, sem o conseguir, do que seus partidários para o propagar. Ele avança, por assim dizer, só, semelhante a um curso d’água que se infiltra através das terras, abre uma passagem à direita, se o barram à esquerda, e pouco a pouco mina as pedras mais duras, acabando por fazer desabarem montanhas.
(Revista Espírita - jan. de 1867: "Olhar Retrospectivo sobre o Movimento Espírita")
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Comentários

  1. No Livro História das Religiões e a Dialética do Sagrado, p. 538-544 o autor Leonardo Arantes Marques, fala bem próximo deste artigo. Grande Abraço..

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  2. História é história. Não faz mal algum. Purismo na doutrina? Bobagem. A doutrina segue os movimentos culturais. Nos dias de hoje, com os conhecimentos que temos e disponíveis, basta um pouco de razão, não muita, para ler alguma bobagem e logo descartá-la. Corpo fluídico é uma dessas bobagens. Aguá fluidificada é outra, mas já está incorporada às tradições cristãs, é simbólica. Apesar de bobagem, não faz mal algum, desde que se entenda que é um símbolo. O mesmo se aplica a tantas outras coisas. Outra coisa, porém, é a crença no ideal cristão, o qual foi, é e deverá ser a bússola do Espírita.

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  3. Todas as terças feiras às 20 horas é realizado no templo da FEB reunião PUBLICA (isso mesmo!) REUNIÃO PUBLICA de estudo aprofundado dos Quatros Evangelho de Roustaing. Há no parágrao unico do artigo 1o. do estatuto da FEB Obriga a estudar Roustaing... Isso não é pouco não!!!!!!!!!!!!

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  4. A questão de não aparecer "Roustaing" na pesquisa, isso acontece somente na primeira página da FEB, mas na da Livraria já abre opções: http://www.febeditora.com.br/?cat=8%2C10%2C46&s=roustaing&x=31&y=16

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  5. Gostei muito dos esclarecimentos. Sempre tive minhas reservas para ler Roustaing. A verdade precisa ser dita. Precisamos estudar mais. Que Deus abençoe o trabalho desta equipe.

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  6. Caros confrades:
    Consegui há muitos anos, ler integralmente o primeiro volume da obra de Roustaing.
    Quem tem conhecimento doutrinário espírita, descarta tal publicação por inconsistência doutrinária.
    Conheci de perto o Prof. Herculano Pires de saudosa memória, que com muita autoridade moral e doutrinária, colocou fim nessa discussão estéril.
    Ruy

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  7. A FEB finalmente removeu a menção a Roustaing de se estatuto social na assembleia geral realizada no dia 10.08.2019: https://blogabpe.org/2019/08/12/podemos-comemorar-o-fim-do-roustainguismo-na-feb/

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  8. Aunque el post es un poco antiguo me gustaría hacer un breve comentario.
    No hace mucho terminé de leer toda la obra de Roustaing, más como curiosidad y para entender algunas obras que están surgiendo actualmente en el movimiento espírita que por otro motivo, y me parece que el autor de este artículo, cuando afirma que la doctrina de Roustaing está muerta, se equivoca.
    Es verdad que no se habla de Roustaing, pero cuando se lee su obra completa, se identifican claramente muchas ideas que están presentes en la actualidad del movimiento espírita y que tienen como origen ideológico la obra "Los cuatro evangelios". El propio evangelismo, tan extendido en muchos sectores del movimiento espírita no tiene otro origen, pasando de un análisis a la luz del espiritismo de los evangelios, como hizo Kardec, a una subordinación del espiritismo al evangelio.
    Lean la obra de Roustaing y comprobarán cuantas ideas que no están en Kardec y que hoy se admiten sin haberlas sometido a un análisis crítico están vigentes en el movimiento espírita.
    Un saludo.

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  9. A obra "Os Quatro Evangelhos" é luz para o mundo. Uma nova edição vai ser publicada em seguida. Viva Roustaing!! "Examinai tudo e retende o que é bom".

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  10. Artigo claro, bem fundamentado e diplomaticamente concluído.

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  11. Análise tendenciosa das obras de Roustang, tentando tirar suas bases. Roustang não é conhecido nos Centros Espíritas pelo fato de não ser estudado e pelo fato que muitos irmãos do movimento espírita lhe são avessos as idéias ali mencionadas sendo claramente tendenciosos. Da mesma forma sobre as obras de Pietro Ubaldi isso acontece também dentro do chamado movimento espírita brasileiro. A divisão já vem de berço com ideias pré definidas daqueles que dirigem o movimento espírita atual.

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