Artigo: "O estupro da menina de 10 anos e o aborto assistido", por Ery Lopes
Conforme prometido, voltamos a falar sobre o caso polêmico que agitou o cenário midiático nacional em agosto deste 2020, envolvendo um processo de aborto assistido cuja grávida era uma menina de 10 anos que, segundo a apuração das autoridades, era vítima de abuso sexual já há pelo menos três anos, sendo o estuprador o próprio tio da menina, que aliás acabou preso (ver aqui o post anterior). A polêmica se deu exatamente em torno da discussão sobre a legitimidade ou não de se operar aí o aborto, que no caso foi efetivado em um hospital da rede pública do Estado de Pernambuco. Segundo o portal de notícias G1, "A menina precisou ir ao Recife para interromper a gravidez porque, no estado de origem [Espírito Santo], os médicos do hospital em que ela foi atendida afirmaram que não tinham capacidade técnica para fazer o procedimento." (ver reportagem).
A complicada ocorrência, que envolve dois elementos gravíssimos: estupro de vulnerável e aborto, muito lamentável inclusive, bem poderia ser peça de um debate aproveitável entre especialistas e autoridades no sentido de daí se extrair medidas práticas para evitar situações semelhantes, que toca essencialmente no âmbito da educação, mas sem ideologismos. Aconteceu, no entanto, que partidos diversos tomaram o drama emprestado como pano de fundo para ativismos irracionais e fanatizados, trazendo-o ora para o viés político, ora para o viés religioso, só que no mais baixo nível de Política e Religião – matérias honoráveis e não merecem tais comportamentos.
O primeiro post publicado aqui sobre este caso (ver aqui) também suscitou muitas críticas, embora, felizmente, bem mais sensatas do que as argumentações gerais que circulavam por aí, por exemplo, nas redes sociais. Diante disso, e como era previsível, preparamo-nos para melhores aprofundamentos das questões envolvidas, exatamente como foi prometido naquele post. Ei-las, sem a pretensão de fechar o caso e estabelecer a "verdade absoluta" e a "justa sentença", pois que estas escapas da esfera humana; apenas oferecemos nossas reflexões, para que se juntem às reflexões de todos e daí cada qual possa tirar suas conclusões. Norteamos nossas reflexões de acordo com nosso entendimento espírita, sem, contudo, pretendermos falar pelo Espiritismo, que também é de esfera superior.
Estupro de vulnerável
Se o atentado de violência por motivação sexual já é algo nojento demais, ainda mais grave se configura em se tratando de uma vítima nas condições observadas pela lei como "vulneráveis", figurado na Lei Federal 12.015 de agosto de 2009, do Código Penal Brasileiro (ver texto oficial), sendo no caso em questão flagrante, dado a vítima ter tão somente 10 anos de idade.
A propósito, a "preocupação" com a aplicação do aborto nesse episódio acabou ofuscando e muito o ato criminoso de que o drama resultou; na verdade, como o processo de justiça no nosso país é bastante falho em todos os sentidos, acaba que um ato abominável como esse passa quase desapercebido, banalizado, tal fosse uma contravenção comum, enquanto cada ato de estupro deveria ser severamente apurado e motivasse uma reação enérgica da sociedade na direção de erradicar – ou pelo menos minimizar – essa mal absurdo do nosso meio.
A persistência desse tipo de violência só demonstra o quão primitiva e materializada é a cultura geral de nossa gente; cultura essa que só pode ser combatida pela espiritualização do nosso povo, ou seja, pela fomentação da consciência dos valores espirituais, como a moral, a valorização da vida, a fraternidade, o bom uso das potencialidades do afeto e da sexualidade, etc. É preciso então despertar as pessoas do hipnotismo em que se vive, pela ilusão da matéria, do exagero dos gozos carnais, da libertinagem generalizada.
Tal tarefa não é fácil, certamente, mas é precisamente a meta da Doutrina Espírita: quebrar essa cultura materialista, da ilusão da vida material, tirar as pessoas da caverna – como diria Platão. E cabe a nós, espíritas, mais do que qualquer outros, porque temos recebido a mensagem espiritual esclarecedora e estimuladora. Se, passados 150 anos da Revelação Espírita, ainda o mundo é bastante materializado em sua cultura, vejamos se não estamos sendo omissos ou fracos demais; vejamos se não poderíamos fazer mais do que fazemos para mudar essa realidade perversa; vejamos se também nós não estamos sendo passivos demais ou até coniventes com as apelações sexuais via música, filmes e séries que consumimos. A cultura geral não inocenta os criminosos estupradores, mas alimenta a sua banalização. É muito provável que não estaríamos sujeitos ao estupro e a outras abominações se desses males estivéssemos totalmente depurados, pois, do contrário, poderíamos culpar a Deus pelos nossos sofrimentos.
Legitimidade ou não do aborto
Sendo ponto mais ou menos pacífico que o abuso sexual do referido caso deva ser tratado com rigor (e, de fato, a polícia foi diligente o bastante para prender o dito responsável), passemos a refletir sobre a questão do aborto dentro do referido episódio.
Mas atenção: a coisa é complexa, não tem respostas simples, e exige certo esforço racional e controle emocional para encarar as reflexões. Rogamos que o leitor conserve essa advertência.
Primeiramente, vamos recobrar o postulado espírita sobre tal prática. Segundo a codificação kardequiana, a instrução dos Espíritos superiores é a de que o aborto só pode ser considerado legítimo conforme a Lei Natural instituída por Deus quando – e somente quando – a sobrevivência física da mãe está em risco (o que é legalmente amparado pelo nosso Código Penal, Lei n° 2.848, de 7 de dezembro de 1940). Isto está em sintonia com o princípio fundamental do primeiro dos direitos humanos: a vida, pelo que, "ninguém tem o de atentar contra a vida de seu semelhante, nem de fazer o que quer que possa comprometer-lhe a existência corporal" (O Livro dos Espíritos, Allan Kardec - questão 880). E no caso, a vida começa na concepção, quando os laços perispirituais do Espírito reencarnante começa a se ligar ao embrião. Estabelecida a gravidez, pode-se dizer que aí começa a reencarnação. O problema, no entanto, é que, para o entendimento comum da legislação humana, o indivíduo só existe após o parto: o cidadão só se constitui após nascer.
Mas, veja-se que as instruções espirituais são postas como normas gerais, portanto, considerando a generalidade das situações. Contudo, não se poderia admitir particularidades outras que escapem a essas regras gerais? Verifiquemos...
O fato é que a protagonista do episódio evidenciado estava grávida, quer dizer, já trazia em seu ventre um embrião, um projeto orgânico de um corpo humano. Logo, a violação fatal - acidental ou provocado - desse organismo definitivamente caracterizaria o aborto físico; nos moldes da biologia, ali havia um ser vivo individualizado que então morreria.
Todavia, o aborto físico implica diretamente num aborto espiritual?
Noutras palavras: toda gravidez (dizemos da estrutura física) contém necessariamente um processo de reencarnação? Ou, ainda, todo embrião está diretamente ligado a um Espírito reencarnante?
Não. Por isso, não se pode dizer que todo aborto físico corresponde a um aborto espiritual. De acordo com a codificação espírita, há casos de gestação para cujo corpo em formação não está designado nenhum Espírito, havendo aí somente a "máquina orgânica", um órgão físico que obviamente resultará um natimorto, porque a vida está no Espírito e não no corpo físico (ver O Livro dos Espíritos, questões 356 e as duas seguintes). Daí pode-se indagar: qual o propósito dessa fecundação? E a resposta pode ser a mesma para os casos de aborto natural e acidental: provação e expiação para os envolvidos. Em todas essas adversidades há que se compreender as lições necessárias para a nossa evolução espiritual. Com isso, em se sabendo da impossibilidade de o corpo nascer, poder-se-ia considerar salutar interromper essa gravidez. Mas, que tem ciência para tanto?
Detalhe: pode ocorrer ainda de o próprio reencarnante provocar o aborto, dado que "(...) os laços que o prendem ao corpo são ainda muito fracos, rompem-se facilmente e podem se quebrar por vontade do Espírito, se este recua diante da prova que escolheu. Porém, em tal caso a criança não nasce." (O Livro dos Espíritos - questão 345). Nesse caso, seria uma espécie de suicídio, cuja responsabilidade fica a cargo do Espírito.
Em todo o caso, preservemos então o entendimento que a gravidez daquela menina era passível de conter ali um Espírito reencarnante, um cidadão em potencial e a intervenção nesse processo implica na admissão de um aborto ilegal aos olhos das leis espirituais, salvo uma justificativa plausível.
Esta justificativa poderia ser o que os mentores da codificação do Espiritismo apontam na instrução geral: o risco da sobrevivência física da mãe. Neste caso, a equipe médica especializada poderia avaliar, especialmente considerando as condições de uma menina de só 10 anos de idade. E diante de um tal parecer profissional, isento de contestação profissional, só caberia a todos os juízes e comentaristas aceitarem. Porém, o fato é que, pelo que sabemos, tal parecer não foi emitido.
A gravidez de crianças é extremamente arriscada para a sobrevivência da mãe, especialistas apontam (ver BBC News), como parece óbvio. Mas, ainda assim, seria o caso de se dizer que todas as gestações de meninas de 10 anos de idade devam ser abortadas com base nessa justificativa? Pensamos que não, pois, concretamente falando, sabe-se de muitos partos bem sucedidos de crianças com idades até inferiores; há um caso registrado de uma criança de 5 anos que deu a luz a um bebê, e ambos cresceram saudáveis (ver no R7). Além disso, certos especialistas afirmam que o processo de aborto pode ser ainda mais perigoso que a própria gravidez precoce.
Mas a justificativa mais recorrente para os ativistas pró-abortistas no caso da nossa menina capixaba não era esse, de risco físico para a mãe, mas sim o da "integridade psicológica", visto que, segundo eles, a continuação da gestação seria "extremamente danosa" para a saúde mental da menina. Será?...
Em nossa humilde opinião, consideramos que o dano maior já estava concretizado: a violência sexual sofrida pela menina, um dano irreversível, inapagável para a biografia dos envolvidos. Desta maneira, no que o processo desse aborto poderia contribuir? Vamos analisar...
Felizmente, a operação foi concluída sem maiores danos físicos para a menina; ou seja, pelo que foi noticiado, a ela resistiu bem ao procedimento e estava sendo preparada para receber alta e retornar ao seu Estado de origem. Mas então, o que mudará na vida dela doravante? Ela esquecerá a violência sofrida pelo tio? Esquecerá que um dia foi paciente de um processo de aborto e pretexto para as discursões de extremistas e comentaristas ativistas de correntes ideológicas diversas? Efetivamente, no que esse aborto pode ter servido para ela?
Para ponderarmos sobre essas questões, devemos levar em conta não apenas os desdobramentos da vida física, mas também as consequências vistas sob o ponto de vista espiritual - que, obviamente, quem não tem o conhecimento espírita sobre as leis espirituais será incapaz de assimilar. Por isso, é justo que eles indaguem, com braveza: "por que Deus permitiu que essa inocente fosse violentada e dessa barbárie fecundasse um projeto de vida?"
Os espíritas mais conscientes sabem da nossa necessidade de evoluir, para o que as diversas existências terrenas são absolutamente necessárias a fim de adquirirmos a experiência de vida, também a fim de pormos à prova nossas aquisições e assim fortalecer as virtudes, bem como ensejos de ajustes reencarnatórios, ditos expiações das faltas cometidas. Mediante isso, estar na Terra nas condições do nosso progresso atual significa nos sujeitarmos às mais diversas ocorrências - inclusive o do estupro. Em suma, seja por prova, expiação ou missão (oportunidade de enfrentar um desafio para servir de bom exemplo para os semelhantes), qualquer um de nós na Terra está sob o risco de ser, pessoalmente ou ter alguém muito próximo, "vítima" de uma violência dessa natureza. A partir daí, cabe o exercício de cada qual se colocar no lugar daquela menina de 10 anos, ou no lugar da sua avó, que foi quem teve que tomar a decisão de abortar a gravidez, igualmente sopesando as circunstâncias dessa vida carnal atual frente as circunstâncias espirituais futuras, porque nem sempre o que se apresenta ser conveniente agora se verifica a melhor escolha.
Se é para pensarmos na saúde mental da menina capixaba, teremos que pensar qual o impacto psicológico que ele poderá sentir, ainda nesta encarnação, se lhe vier à consciência que ela interrompeu o advento neste mundo de uma alma? Tal remorso, sem data de validade, não lhe poderá ser muito mais nocivo do que o sacrifício de completar a gestação e, quem sabe, doar o bebê para alguém criá-lo (procedimento legalmente estabelecido)? Claro, não foi ela quem tomou essa decisão, mas sua avó. Mas ela também terá condições psicológicas para distinguir isso?
Afinal, qual teria sido a programação reencarnatória dessa menina? Dessa avó, que assumiu a responsabilidade da decisão? A decisão tomada, levando em conta os interesses imediatos, estará ajustada com as pretensões traçadas?
Ignoramos. Porém, se antes havia um drama no caso: o atentado sexual, hoje há dois: aquele e a decisão do aborto.
As lições que ficam
Usamos o caso para daí tirar reflexões, mas é bom não nos determos no exemplo particular, senão para vibrarmos positivamente para todos os envolvidos, sem julgamentos condenatórios.
Por outro lado, sabemos que o caso foi amplamente explorado pelas ideologias, dentre as quais uma verdadeira indústria interessada na legalização do aborto e, pior, com o patrocínio do Estado. Essa indústria não tem os olhos voltados para a problemática envolvendo as pessoas, mas os interesses comerciais dessa prática. Donde todos nós temos que estar atentos às artimanhas para justificar essa campanha. É patente que uma sociedade que esforça-se para erradicar o aborto, o suicídio, a eutanásia, o estupro e a violência, esta caminha para o progresso e a prosperidade, ao passo que aquela que ignora, negligencia ou até facilita tais práticas, esta fica mais distante do bem comum.
O que queremos dizer, finalmente, é que não devemos nos prender nas ocorrências particulares, de que nosso entendimento é mínimo em face de tantos detalhes que não estão ao nosso alcance, mas no exame aprofundado das questões inerentes a esses dramas. Ao invés de ficarmos opinando sobre ocorrências e julgamentos de determinadas pessoas, devemos cuidar de estudar os princípios e, feitas as conclusões, efetivamente contribuir para uma melhor conduta geral, para erradicarmos da nossa sociedade os males como a ilusão da matéria, a violência e a exploração da sexualidade, semeando as virtudes espirituais.
Esta a finalidade da Revelação Espírita.
Ery Lopes
P. S. Sugestão de leitura: O Livro dos Espíritos, Allan Kardec.
Acima da legislação humana sobrepõe-se a de Deus, visto que esta é Eterna e rege todas as coisas ao passo que a primeira, ainda longe de refletir-lhe a grandeza, abrange tão somente o que a nossa ainda curta compreensão pode alcançar. Tal Lei abarca todo o Universo e não há uma única criatura que à ela não esteja submetida e a ela, cedo ou tarde, não venha prestar contas. A bondade, a misericórdia e a JUSTIÇA de Deus a todos alcança e ninguém é vítima, mas antes, devedores. Não existe acaso. Não existe eventualidade. Existe Deus, e tudo acontece com a Tua permissão. Escandalizar-se com isso é mostrar-se orgulhoso.
ResponderExcluirDeus, como descrito nos Livros de Allan Kardec, é fruto de uma reflexão filosófica. Reflexão. Portanto, não cabe aos espíritas imputar a Deus estas questões, como a do aborto, entre outras, que são nossas, das sociedades humanas. A moral cristã citada por Kardec ao fazer a introdução do Evangelho Segundo o Espiritismo é a de que se trata de uma regra de bem viver em fraternidade, com tolerância, igualdade de oportunidades e direitos. É disto que a explanação dele trata e ela pode ser ampliada quando trata do ser humano como cidadão responsável. Responsável. Não é aceitável legitimar posições pessoais, critérios, julgamentos, valores, que são de nossa alçada, da sociedade, à Deus ou aos espíritos superiores. Não é razoável. É fanatismo, ignorância. A questão do aborto e de outros crimes devem ser consideradas pelas sociedades em função do que eles representam na vida social e nas vidas das pessoas em cada momento, em cada circunstância. Não é uma questão religiosa, mas civil, de direito no âmbito da Justiça Humana e não divina, pois cada sociedade, cada povo tem a sua religião e a sua compreensão da divindade. O aborto, assim como outros crimes, devem, sim, serem amplamente discutidos para atender às necessidades da sociedade em cada época. Não é uma questão religiosa e está sendo tratada por pessoas que se consideram kardecistas como se religiosa fosse.
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