Kardec e a "desmaterialização" dos Espíritos. Um texto esquecido da escala espírita na primeira edição de O Livro dos Médiuns

Acabou de ser lançado no site Jornal de Estudos Espíritas - JEE um trabalho muito bem elaborado por duas importantes personalidades do nosso movimento espírita atual: o prof. Silvio Seno Chibeni  (Campinas-SP) e Luciana Farias (Brasília-DF), que neste artigo resgatam e analisam três parágrafos referentes à Escala Espírita, que constavam na primeira edição de O Livro dos Médiuns, mas que foram suprimidos nas versões subsequentes. Segundo os autores do artigo, estes parágrafos são de "significativa relevância para a teoria espírita", razão pela qual eles se propuseram a fazer esse resgate.

Sendo de interesse geral, reproduzimos aqui o mencionado trabalho, que também pode ser lido na publicação original do JEE por este link.


Kardec e a "desmaterialização" dos Espíritos. Um texto esquecido da escala espírita na primeira edição de O Livro dos Médiuns


I - INTRODUÇÃO. UM POUCO DA HISTÓRIA DA ESCALA ESPÍRITA

Um esboço do importante texto de Allan Kardec denominado “Escala espírita” pode ser encontrado já na primeira edição de O Livro dos Espíritos (1857), nas questões 54 a 57 do capítulo IV da primeira parte, “Mundo espírita ou dos espíritos”. Essas questões são apresentadas no resumo dos assuntos do capítulo como sendo relativas às “Diferentes ordens de espíritos”. Nelas, indica-se que se trata de uma escala com ordens a percorrer, ao longo do processo de aperfeiçoamento dos Espíritos, propondo-se uma divisão em três ordens. Em rápido desenvolvimento da proposta, Kardec apresentou uma versão mais completa e explícita da Escala no artigo que abre a Revista Espírita de fevereiro de 1858 (pp. 37 a 44), intitulado “Diferentes ordens de Espíritos”. [1] Ele consiste de uma introdução, de cerca de duas páginas, seguidas por um texto bem mais extenso denominado “Escala espírita”. Nele, aparecem as mesmas três ordens propostas em O Livro dos Espíritos, agora subdivididas em classes.

Uma segunda versão dessa Escala apareceu pouco tempo depois, no livro Instrução Prática sobre as Manifestações Espíritas (1858). [2] Nela, o texto introdutório foi significativamente modificado em relação ao da Revista Espírita. A apresentação da Escala em si é igual, exceto pelo parágrafo acrescentado ao final na descrição da primeira ordem. Os quatro últimos parágrafos, que descrevem os estados possíveis para um Espírito – encarnado, errante e definitivo – foram eliminados.

Em 1860, na segunda edição de O Livro dos Espíritosapareceu outra versão da Escala, que podemos considerar a definitiva. Ela foi inserida no primeiro capítulo, “Dos espíritos”, do segundo livro, ou parte, “Mundo espírita ou dos Espíritos”. As questões 96 a 99, que integram a seção intitulada “Diferentes ordens de Espíritos”, guardam semelhança com as questões sobre o mesmo assunto da primeira edição do livro. Na seção “Escala espírita”, questões 100 a 113, tem-se o texto principal, com a introdução e a descrição das classes e ordens.

Nessa versão da Escala, que é a mais conhecida do público espírita, Allan Kardec aproveitou boa parte da introdução que consta na primeira versão, a da Revista Espírita, com alguns ajustes, descartando as alterações promovidas na versão de Instrução Prática (a segunda versão da Escala). Apenas três segmentos de texto da introdução da Escala na Revista Espírita não foram reintroduzidos na segunda edição de O Livro dos Espíritoso primeiro e o quarto parágrafos e um trecho do último. Detenhamo-nos um pouco sobre eles. O primeiro parágrafo destaca a importância, para a doutrina espírita, de se saber as diferenças entre os Espíritos, do ponto de vista intelectual e moral, ao longo de seus diferentes graus de desenvolvimento. O quarto parágrafo explica a formação da Escala: Kardec diz que os elementos que a compõem foram obtidos dos ensinamentos dos Espíritos, enquanto que sua disposição foi uma iniciativa dele mesmo. O trecho não aproveitado do último parágrafo, que também consta em Instrução Prática, ressalta a “importância pessoal” da Escala para todos, mesmo para os encarnados:

Além disso, [a Escala] nos interessa pessoalmente, porque, por nossa alma, pertencemos ao mundo espírita, para o qual voltamos ao deixar a vida corpórea, mostrando–nos o caminho a seguir a fim de chegar à perfeição e ao bem supremo. [3]

A novidade trazida nesta versão de O Livro dos Espíritos é a classe dos Espíritos Batedores e Perturbadores, introduzida na terceira ordem, como sexta classe. O restante do corpo da Escala é igual ao da Revista Espíritaexceto pela supressão do parágrafo final da descrição da classe dos Espíritos Levianos.

Em 1861, na primeira edição de O Livro dos Médiunsfoi publicada uma quarta versão da Escala Espírita. Em tese, o texto da Escala, capítulo VI da primeira parte, deveria ter sido uma mera reprodução da versão da segunda edição de O Livro dos Espíritos (terceira versão da Escala), conforme Kardec explica nesta nota de rodapé:

Embora este capítulo esteja em O Livro dos Espíritos, acreditamos que ele deva ser reproduzido aqui, porque é útil tê-lo à disposição nas manifestações. [4]

Na verdade, e de forma surpreendente, nesta nova obra, Kardec replicou o texto da Instrução Prática (a segunda versão da Escala), revertendo praticamente todas as mudanças feitas na versão imediatamente anterior, a da segunda edição de O Livro dos Espíritos, exceto pela classe dos Espíritos batedores, que foi revisada e reposicionada como oitava. Além disso, ao final da introdução, foram incluídos três parágrafos que tratam da desmaterialização dos Espíritos. O objetivo específico do presente artigo é analisar estes parágrafos, já que eles são de significativa relevância para a teoria espírita e são em geral desconhecidos do leitor espírita médio, visto que Kardec suprimiu inteiramente a Escala a partir da segunda edição do livro, de 1862, conforme explicado em sua Introdução (p. VIII):

Como lhe acrescentamos [a O Livro dos Médiuns] muitas coisas e muitos capítulos inteiros, suprimimos alguns artigos, que ficariam em duplicata, entre outros o que tratava da Escala espírita, que já se encontra em O Livro dos Espíritos. [5]

Com a supressão da última versão da Escala espírita, os três parágrafos sobre a desmaterialização de Espíritos ficaram inacessíveis para a virtual totalidade dos leitores. Felizmente, as pesquisas históricas empreendidas recentemente por diversos estudiosos da obra de Kardec redescobriram e tornaram acessíveis a primeira edição de O Livro dos Médiuns, entre tantas outras edições de interesse histórico e filosófico. É hora, pois, de empreender seu cuidadoso estudo. [6]


II - ESBOÇO DE UMA ANÁLISE HISTÓRICA E FILOSÓFICA DA “DESMATERIALIZAÇÃO DO ESPÍRITO”

O texto de Kardec que motivou a composição deste artigo não é sobre materialização de Espíritos (ou algo que possa ser o seu “inverso”), no sentido usual desta expressão no meio espírita, semiespírita, ou mesmo antiespírita. Da materialização de Espíritos, nesse sentido comum, Allan Kardec não tratou – não com essa denominação. Ele reconheceu e analisou, sim, o que chamou de “aparições tangíveis”. [7] Mas esse é outro assunto. O que Kardec examinou em muito maior extensão foi o conceito de “desmaterialização do Espírito” no sentido discutido no texto da primeira edição de O Livro dos Médiuns; mais especificamente, nos referidos três parágrafos finais da introdução da Escala. Sua leitura preliminar já deixa claro que, neles, a expressão não denota nada diretamente ligado às polêmicas “materializações”. O termo ‘desmaterialização’ constou no Vocabulário Espírita da primeira edição de O Livro dos Médiuns e a definição remetia à leitura da Escala Espírita, tal era a importância desse texto. Antes de ensaiarmos um estudo mais detalhado do texto, é útil acompanhar um pouco da história da expressão “desmaterialização de Espíritos” e suas congêneres (por exemplo, “Espírito desmaterializado”, “grau de desmaterialização” do Espírito, etc.).

Vamos nos limitar aqui à história dos textos até a publicação da primeira edição de O Livro dos Médiuns, ou seja, janeiro de 1861. Temos, portanto, que examinar, além da própria obra, a primeira edição de O Livro dos Espíritos (1857), a Instrução Prática sobre as Manifestações Espíritas (1858), a primeira edição de O Que É o Espiritismo (1859), a segunda edição de O Livro dos Espíritos (1860) e os fascículos da Revista Espírita dos anos de 1858, 1859 e 1860. Sob pena de nos desviarmos do foco específico que elegemos, não vamos contar detalhes dessa interessante história, acompanhando as muitas referências que encontramos nesses textos (70 ocorrências da expressão, no total). Vamos nos ater apenas às mais úteis para a compreensão do texto da primeira edição de O Livro dos Médiuns ora em análise.

Em ordem cronológica e textual, a primeira ocorrência do termo ‘desmaterializados’ (dématérialisés) é justamente a mais relevante de todas: está na “Introdução ao estudo da doutrina espírita”, da primeira edição de O Livro dos Espíritos. Ao contrário do que ocorre na segunda edição, esse texto original não foi dividido em parágrafos.

A passagem relevante está na p. 20 do original francês; na segunda edição, está no item XII, em um trecho que não sofreu nenhuma alteração, e que é o seguinte:

Somente os Espíritos que atingiram certo grau de purificação se acham libertos de toda influência corporal. Quando ainda não estão completamente desmaterializados (é a expressão de que usam) conservam a maior parte das ideias, dos pendores e até das manias que tinham na Terra, o que também constitui um meio de reconhecimento, ao qual igualmente, se chega por uma imensidade de fatos minuciosos, que só uma observação atenta e prolongada pode revelar. [8]

A primeira coisa a notar aqui é que Allan Kardec atribui a expressão “[Espíritos] desmaterializados” aos próprios Espíritos. Como já notamos, passará a empregá-la em todas as suas obras, pelo menos até a primeira edição de O Livro dos Médiuns (1861), que é o período ao qual o presente estudo se limita.

Depois, o trecho já deixa bem demarcado o núcleo da noção de desmaterialização, que é a associação entre desmaterialização e adiantamento espiritual. Em outras passagens, incluindo-se, claro, o texto da primeira edição de O Livro dos Médiuns em análise, Kardec irá detalhar que aspectos do adiantamento (ou “evolução”, como diríamos mais comumente hoje) espiritual são os mais relevantes nessa associação. Aqui ele explicita dois deles: a “purificação” e a “libertação da influência corporal”. Ora, a palavra purificação deve, naturalmente, ser entendida em dois sentidos, tanto como o efeito físico de redução de “densidade” do perispírito como a superação de nossas “impurezas”, ou melhor, imperfeições espirituais, de caráter moral.

Vemos o primeiro sentido nesse trecho da definição de ‘Espírito’ no Vocabulário Espírita da primeira edição de O Livro dos Médiuns, que infelizmente foi retirado da edição seguinte:

Apesar de sua natureza etérea, o perispírito não é imaterial; ao contrário, é uma substância, ainda que sutil, que dispõe, até certo ponto, de algumas das propriedades da matéria, embora não possa ser submetido à investigação por nossos meios de análise. Sua densidade, se assim se pode expressar, varia de acordo com o grau de depuração do Espírito; nos Espíritos inferiores, é mais grosseira, e torna-se para eles a fonte de impressões mais ou menos penosas, que diminuem à medida que o Espírito se purifica ou, o que equivale à mesma coisa, desmaterializa-se. [9]

O segundo sentido de purificação vai junto com a gradual superação das “influências corporais”, ou “materiais”, como descrito na continuação da definição de Espírito:

Devemos dizer que essas impressões só existem para Espíritos de uma ordem muito inferior, que estão de tal forma sob a influência da matéria que alguns deles acreditam que são ainda deste mundo. A situação é muito diferente para os Espíritos desmaterializados; todas essas causas de ansiedade não mais existem para eles, que rejubilam-se por se encontrarem isentos das necessidades da vida; um infinito bem-estar os penetra, pois têm o sentimento de sua libertação. [10]

Tocamos aqui um ponto filosófico sensível, que requer alguns esclarecimentos. O Espiritismo adota, desde o seu livro fundante, aquilo que em filosofia se chama de “dualismo”. É a tese metafísica segundo a qual haveria no mundo dois tipos de “substâncias”: “matéria” e “espírito”. Todos esses termos foram criados pelos filósofos, na Antiguidade Grega (em seus correspondentes gregos). Como qualquer tese metafísica (e a metafísica é uma das áreas fundamentais da filosofia), ela se refere a um nível de realidade distante daquilo que é “positivo” (outro termo filosófico), ou seja, apreensível de forma direta pelos nossos sentidos. Como consequência, a tese em questão tem sido, há milênios, objeto de muitas discussões e divergências entre os filósofos. Ao dualismo se opõem as concepções ditas “monistas”, que admitem apenas um tipo de substância, bem como, é claro, o posicionamento cético, que consiste em suspender-se o juízo acerca dessa questão. De monismo, há dois tipos: o monismo materialista, segundo o qual tudo o que existe é matéria, e o espiritualista (ou idealista), para o qual tudo o que existe é espírito. Todas essas quatro posições (dualismo, materialismo, espiritualismo e ceticismo) foram defendidas de forma muito inteligente por grandes figuras da filosofia, em todos os tempos, desde a Antiguidade clássica.

Sem dar detalhes, a versão do dualismo proposta pelo Espiritismo, já em O Livro dos Espíritos, pode ser vista como tendo relações de semelhança próxima com aquela famosamente articulada por um dos fundadores da filosofia moderna, René Descartes, no século XVII. Dado o contexto cultural em que Kardec viveu, talvez isso não seja coincidência. O que há de novo, na abordagem espírita desse tema metafísico clássico, é o fato de ela ter surgido justamente da constatação empírica (outro termo filosófico, sinônimo aproximado de “experimental”) da sobrevivência do homem à morte corporal. Ora, dado esse fato básico, sobre o qual todo o edifício do conhecimento espírita erigido por Kardec se assenta, tornou-se natural a adoção de uma perspectiva dualista sobre o homem. As mais incisivas observações de Kardec sobre esse ponto se encontram no comentário à resposta à questão 28 da segunda edição de O Livro dos Espíritosque é útil rever agora:

Um fato patente domina todas as hipóteses: vemos matéria destituída de inteligência e vemos um princípio inteligente que independe da matéria. A origem e a conexão dessas duas coisas nos são desconhecidas. Se promanam ou não de uma só fonte; se há pontos de contato necessários entre ambas; se a inteligência tem existência própria, ou se é uma propriedade, um efeito; se é mesmo, conforme à opinião de alguns, uma emanação da Divindade, ignoramos. Elas se nos aparecem como sendo distintas; daí o admitirmo-las como formando os dois princípios constitutivos do Universo. [11]

Esse pouco estudado texto deixa patente a compreensão acurada que ele tinha do complexo assunto filosófico em pauta. Há referência ao nível empírico (“um fato”) sobre o qual não havia mais dúvida (“vemos matéria destituída de inteligência e vemos um princípio inteligente que independe da matéria”), e ao nível metafísico, hipotético, especulativo, sobre o qual estritamente não temos conhecimento certo (”origem e a conexão dessas duas coisas nos são desconhecidas”). Como conclusão, Kardec faz opção sensata de “admitir” o dualismo como a hipótese preferencial a ser adotada. Ele de fato a adotou e desenvolveu em toda sua obra, de forma sistemática e original, sem, no entanto, voltar ao ponto filosófico profundo desse comentário, provavelmente prevendo que o leitor médio não o entenderia.[12] Dada essa opção, Kardec passou a tratar do corpo e do ser pensante como os dois “elementos gerais do universo” (na frase que dá título ao cap. II da primeira parte da segunda edição de O Livro dos Espíritos). Filosoficamente, a noção de “elemento” é a daquilo a que algo se reduz metafisicamente, em última instância; na linguagem mais usual entre os filósofos modernos, seriam as duas “substâncias” das quais os corpos (inclusive os humanos) e os seres pensantes (inclusive os humanos) são “formados” (na frase da questão 79 dessa mesma obra).

Agora, embora metafisicamente distintos, espírito e matéria interagem, isto é, influenciam-se mutuamente. Isso ocorre em especial no homem “encarnado”. Filosoficamente, têm sido milenarmente debatidas – especialmente no período dito “moderno” (séculos XVII e XVIII) – as questões de como essa interação seria possível, e de como ela se daria. Nenhuma solução unânime jamais foi alcançada. Isso, todavia, é típico das questões metafísicas, e não deve nos inquietar, nem como filósofos nem como espíritas. A regra da filosofia é seguir estudando, analisando isentamente propostas e argumentos.

Como um fato, o que agora sabemos é que o homem (encarnado) tem tanto um corpo (formado de “matéria”, se quisermos nos expressar em termos metafísicos) e um espírito, ou alma, ou “eu”, que é o ser pensante. Para os dualistas, esse espírito radicaria não no corpo, mas na substância espiritual; ou, na linguagem de Kardec, no “elemento inteligente” (O Livro dos Espíritos, segunda edição, n. 79). Novamente: tendo bases metafísicas distintas, corpo e espírito são ontologicamente independentes, tanto no nível individual, de cada homem, como num nível mais geral, como aquele envolvido nas questões 84 a 87 da segunda edição de O Livro dos Espíritos. Nelas, não apenas se consigna essa independência, mas também a primazia metafísica do “mundo espírita”. Do ponto de vista do homem, este mundo – ao qual ele “pertence”, na medida em que o ser pensante é essencialmente espírito – é o principal: ele “preexiste e sobrevive a tudo” (O Livro dos Espíritos, segunda edição, n. 85).

Chegamos ao primeiro dos pontos centrais envolvidos no processo de “desmaterialização do Espírito”. Dados os esclarecimentos filosóficos precedentes, essa expressão não faria nenhum sentido se ao invés de ‘Espírito’ a expressão envolvesse a palavra ‘espírito’. Como se sabe, ao  passar da primeira para a segunda edição de seu livro fundamental, Kardec se deu conta de que era necessário demarcar dessa forma uma distinção conceitual absolutamente importante (ver nota à questão 76). Espíritos “são os seres inteligentes da criação”; espírito é um dos “elementos gerais do universo”, que é a essência dos Espíritos, enquanto seres inteligentes, ou pensantes. Ora, na medida em que espírito e matéria sejam entendidos como os filósofos dualistas (e Kardec) propõem, não seria de nenhum modo próprio falar-se em “desmaterialização do espírito”: o que é matéria será sempre matéria, o que é espírito, espírito. Então a frase que nos ocupa neste trabalho foi deliberadamente cunhada e sistematicamente usada para designar um processo que ocorre com os Espíritos, com ‘E’ maiúsculo. Kardec não deixa dúvidas quanto a sua correta compreensão desse ponto, quando estudamos seus textos, e não apenas os percorremos com a vista. Seria um trabalho interessante, porém de dimensões incompatíveis com as deste artigo, examinar cada uma das cerca de sete dezenas de ocorrências da expressão “desmaterialização dos Espíritos” (em suas variantes) nas obras anteriores à primeira edição de Livro dos Médiuns. Não o faremos aqui, portanto. Vamos, em vez disso, apenas identificar os dois aspectos, ou dimensões principais do referido processo de “desmaterialização”, e que aqui numeraremos desta forma:

1. Dimensão moral da “desmaterialização” do Espírito;

2. Dimensão corporal da “desmaterialização” do Espírito.

Tratemos de cada uma delas preliminarmente, agora, para depois, na próxima seção, ver como são explicadas por Kardec no texto principal em análise neste trabalho.

1. Dimensão moral da “desmaterialização” do Espírito. Essa é a dimensão que aparece no citado trecho da Introdução de O Livro dos Espíritos (idêntico em ambas as edições). Nele, o processo está ligado à “purificação” do Espírito, que, como já adiantamos, deve entender-se, primeiro, no sentido de seu despojamento de suas imperfeições ou “defeitos” morais; e depois, no sentido de sua emancipação das “ideias, dos pendores e até das manias que tinham na Terra”. Segundo essa leitura, a “desmaterialização” no sentido moral envolve tanto o reconhecimento e a conquista prática de uma escala de valores morais superiores (como aqueles, paradigmaticamente, propostos por Jesus), como também a libertação de ideias e (pré)conceitos tipicamente condicionados (não porém determinados) pela vida do Espírito encarnado. Ora, estamos aqui simplesmente diante de uma explicitação do que se entende, filosoficamente, quando consideramos o homem como Espírito: um ser moral e intelectual.

As numerosas ocorrências em que Kardec expõe e discute o conceito moral de desmaterialização do Espírito são, pois, nada mais do que o desenvolvimento filosófico bem informado da questão. Convidamos o leitor a examinar por si próprio essas ocorrências, nas referidas obras, e mesmo em suas edições posteriores a 1861, e em outras obras de Kardec, visto que ele continuou analisando o assunto em todas as ocasiões que se apresentaram. Aqui, daremos apenas mais três passagens relevantes.

A primeira delas é da primeira edição de O Livro dos Espíritos, texto corrido (coluna da direita) correspondente à questão 231:

Nos Espíritos que ainda não estão completamente desmaterializados, a moralidade nem sempre guarda relação com a ciência. Os conhecimentos que exibem, frequentemente com ostentação, não são um sinal inconfundível de sua superioridade. A inalterável pureza de seus sentimentos morais é, quanto a isso, a verdadeira pedra de toque. [13]

A segunda passagem que também, como tantas outras, exemplifica o sentido moral da desmaterialização, está na Revista Espírita de dezembro de 1858, página 330 do original francês, num artigo que trata da bicorporeidade, assunto que à primeira vista nada teria a ver com o que estamos examinado. Numa evocação de Santo Alfonso de Liguori (um dos casos clássicos de bicorporeidade), ao pedir que o Espírito lhe desse uma explicação do fenômeno, obtém dele uma resposta que começa assim:

[...] O homem, quando se encontra completamente desmaterializado por sua virtude, quando elevou sua alma a Deus, pode aparecer em dois lugares ao mesmo tempo; eis como: [14]

Note-se a expressão eloquente, “desmaterializado por sua virtude”, seguida da referência à elevação da alma a Deus. Por fim, ainda dentro dessa “dimensão” moral, porém sob um ângulo diferente, escolhemos citar uma passagem da Instrução Prática sobre as Manifestações Espíritas, capítulo III, “Comunicações espíritas”, p. 74:

Regra geral: O Espírito é tanto menos perfeito quanto menos desprendido da matéria. Logo, todas as vezes em que reconhecemos nele a persistência de ideias falsas que o preocuparam durante sua vida, quer pertençam à ordem física quer à ordem moral, temos um sinal infalível de que ele não está completamente desmaterializado. (Grifo no original.) [15]

Nesse trecho, Kardec está tratando especificamente do reconhecimento do caráter dos Espíritos comunicantes, no fenômeno mediúnico. Mas evidentemente a regra que propõe é de aplicação geral, pois que diz respeito aos valores e traços morais e intelectuais do ser – que o Espiritismo mostra que é o mesmo, quer esteja ele encarnado ou não. Esse desprendimento das ideias da matéria não deve ser, porém, entendido com ideias da matéria enquanto substância propriamente dita, pois que ela é neutra quanto aos referidos valores morais e ideias. É, sim, o desprendimento de ideias e valores que sejam típicos da vida corporal, e não tenham, portanto, senão uma importância relativa ao estado de encarnação, limitado, passageiro e secundário, perante a vida do Espírito, a longo prazo.

Não podemos, portanto, nem aqui nem em tantas outras passagens em que Kardec faz alusão a esse “desprendimento” da “matéria”, pensar que a matéria, enquanto tal, seja a fonte, ou de algum modo esteja ligada ao aspecto moral negativo, ou inferior, do ser humano. Dizendo de outra forma, o Espiritismo não referenda a tese de que a matéria, ou mais geralmente, o aspecto corporal do homem, possa ser responsabilizado por seus traços negativos de caráter, por sua inferioridade moral. Não.

Ao contrário de certas doutrinas religiosas ou filosóficas ascéticas, que vicejaram em particular na Idade Média, e são comuns ainda hoje, no contexto de diversas perspectivas religiosas, a condição humana neste mundo é parte natural de sua existência, que, se bem vivida, do ponto de vista moral, lhe é altamente proveitosa ao adiantamento espiritual. [16]

2. Dimensão corporal da “desmaterialização” do Espírito. Passando ao que chamamos “dimensão corporal da desmaterialização”, citaremos apenas um exemplo de passagem anterior à publicação de O Livro dos Médiuns em que este significado já estava presente. Não nos alongaremos nessas obras, além deste exemplo, porque o texto de O Livro dos Médiuns a ser transcrito e comentado na próxima seção trata especificamente do caso, de maneira mais extensa e sistemática do que qualquer uma delas. Por ora, vejamos uma passagem de relevante artigo intitulado “Sensações dos Espíritos”, publicado na Revista Espírita de dezembro de 1858, que depois formará, com modificações e acréscimos, a seção do capítulo VI da segunda parte da segunda edição de O Livro dos Espíritos intitulada justamente “Ensaio teórico da sensação nos Espíritos”. A passagem escolhida é idêntica em ambas as obras, e é a seguinte:

Dizendo que os Espíritos são inacessíveis às impressões da matéria que conhecemos, referimo-nos aos Espíritos muito elevados, cujo envoltório etéreo não encontra analogia neste mundo. Outro tanto não acontece tece com os de perispírito mais denso, os quais percebem os nossos sons e odores, não, porém, apenas por uma parte limitada de suas individualidades, conforme lhes sucedia quando vivos. Pode-se dizer que, neles, as vibrações moleculares se fazem sentir em todo o ser e lhes chegam assim ao sensorium commune, que é o próprio Espírito, embora de modo diverso e talvez, também, dando uma impressão diferente, o que modifica a percepção. Eles ouvem o som da nossa voz, entretanto nos compreendem sem o auxílio da palavra, somente pela transmissão do pensamento. Em apoio do que dizemos há o fato de que essa penetração é tanto mais fácil, quanto mais desmaterializado está o Espírito. [17]

Esse trecho começa com uma observação diretamente ligada ao nosso presente assunto: o perispírito, caracterizado por Kardec como o “corpo” que acompanha o Espírito na condição de desencarnado (O Livro dos Espíritossegunda edição, n. 93), sofre, ele próprio, um processo de transformação ao longo da evolução do Espírito, na direção de uma maior “eterização”, ou menor “densidade”. Ora, como esse “corpo” é também caracterizado como “semimaterial” (idem, n. 94), parece justo concluir que, na teoria proposta por Kardec, o adiantamento espiritual, num sentido amplo, se faz acompanhar com uma gradual “desmaterialização” do perispírito. E, como este é parte integrante do que foi caracterizado como Espírito (com ‘E’ maiúsculo), poderíamos dizer que à medida que o Espírito progride ele se “desmaterializa” também neste sentido “corporal”. É justamente essa interligação entre progressão espiritual e desmaterialização que Kardec constata em seus estudos, e apresenta em variados contextos em que seja relevante considerar-se o papel do perispírito. Na passagem que acabamos de transcrever, um desses aspectos é destacado: a capacidade que os Espíritos têm de penetrar nossos pensamentos, independentemente da linguagem ou outros sinais exteriores (Livro dos Espíritos, segunda edição, parte II, cap. IX, primeira seção), é tanto maior quanto mais “desmaterializado” é o Espírito. Convidamos o leitor a pesquisar por si próprio as obras de Kardec para encontrar diversos outros exemplos de referências a essa dependência das faculdades do Espírito relativamente a sua “desmaterialização” perispiritual. Enquanto isso, passemos diretamente ao texto principal em análise neste artigo.


III - O TEXTO DE KARDEC SOBRE “DESMATERIALIZAÇÃO” NA 1ª EDIÇÃO DE LE LIVRE DES MÉDIUMS

O texto a seguir encontra-se nas páginas 143 e 144 da primeira edição de Le Livre des Médiums [18], correspondendo ao antepenúltimo e penúltimo parágrafos introdutórios, antes do começo da escala propriamente dita. [19]

A classificação dos Espíritos baseia-se, portanto, no grau de seu adiantamento, ou seja, no de sua desmaterialização. A desmaterialização é o estado dos Espíritos despojados da influência da matéria. Dizemos que um Espírito está, ou não, desmaterializado, segundo esteja mais ou menos desprendido dos laços corporais. Essa expressão, aplicada aos Espíritos, não deve ser entendida exclusivamente no sentido moral. Nos Espíritos inferiores, o perispírito se aproxima mais da nossa matéria, de onde se segue que têm sensações semelhantes às que tiveram durante a vida; as paixões terrenas neles predominam. À medida que o Espírito se depura moralmente, seu envoltório fluídico se purifica materialmente, tornando-se mais etéreo. As sensações grosseiras cedem lugar a sensações mais delicadas, mais sutis, que não são embotadas pela densidade do perispírito. Poderíamos comparar essa depuração gradual àquela que ocorre com o álcool por efeito de destilações sucessivas: em cada uma delas ele deixa algumas partículas estranhas no fundo do alambique, tornando-se mais puro. Da mesma forma, a cada existência corporal o Espírito se despoja de algumas impurezas, de acordo com os esforços que faça para isso, elevando-se alguns graus, até que tenha alcançado a pureza absoluta.

A desmaterialização reage sobre as faculdades morais e intelectuais do Espírito, ou, melhor dizendo, é consequência do estado de suas faculdades. À medida que o Espírito se depura, o véu que dele esconde o infinito torna-se mais diáfano, como uma névoa que se dissipa; amplia-se o círculo de suas percepções; ele vê e compreende o que os Espíritos inferiores não veem nem entendem. Suas ideias morais tornam-se mais íntegras, ele julga melhor todas as coisas. Este estado lhe faculta acesso a mundos mais avançados; sua felicidade aumenta com a desmaterialização.

A desmaterialização acompanha o progresso moral, muito mais do que o progresso intelectual. É por isso que vemos Espíritos muito inteligentes que, apesar disso, não deixam de ser muito atrasados, subordinando-se ainda à influência da matéria e das ideias terrenas. Eles podem ser reconhecidos por suas comunicações, que brilham mais na forma do que no conteúdo, merecendo geralmente pouca confiança, especialmente em assuntos sérios, visto que não sabem mais do que os homens. Ao contrário, algumas vezes estes têm, sobre certas coisas, ideias mais justas do que as deles. Assim é que há Espíritos encarnados que, mesmo sob o invólucro corporal, são mais desmaterializados do que outros, como Espíritos livres.

Este é, como já salientamos, o texto mais extenso e sistemático de Kardec sobre a “desmaterialização do Espírito”. Para o estudioso da obra de Kardec, ele não apresenta novidades de conteúdo, encontrando-se distribuído em dezenas de passagens de diversas obras. Por outro lado, isso pode resultar em dificuldades de acesso para o leitor espírita médio. Embora exemplarmente claro, ensaiemos agora algumas observações sobre os pontos mais importantes do texto.

A sentença inicial do texto tem o caráter de uma sinonímia: desmaterialização e adiantamento são essencialmente a mesma coisa. Isso já descarta eventuais interpretações equivocadas, como aquela já mencionada, de que a desmaterialização teria alguma relação com a “materialização de Espíritos”, no sentido comum no meio espírita. As razões pelas quais o termo foi proposto por Kardec ficarão claras na sequência do texto.

A primeira dessas razões é que, com o termo, Kardec quer salientar que, na visão espírita do homem, embora ele seja considerado um ser essencialmente espiritual, passa por experiências junto a um corpo – “encarnações”, na terminologia espírita. A encarnação cumpre papel importante em seu desenvolvimento. No entanto, a costumeira prioridade que o homem encarnado dá ao aspecto material de sua existência pode levar a que, mesmo quando desencarnado, fique apegado a esses aspectos, num contexto em que não seriam mais aplicáveis. Daí vem a alusão, no texto em análise, ao “desprendimento dos laços corporais”. Referências análogas, com variações terminológicas, podem ser encontradas profusamente na obra de Kardec. Releia-se, por exemplo, a citação, na seção anterior, do trecho da Instrução Prática. Aqui também não se deve pensar que esse desprendimento se refira exclusivamente ao processo de desencarnação; não, o contexto deixa claro que se trata do desapego das ideias, valores e condicionantes típicos da existência corporal, que têm o seu papel no contexto certo, mas não fora dele. Um exemplo simples, muito conhecido de quem se dedica a estudar o que ocorre no mundo espiritual: há Espíritos que, mesmo desencarnados, continuam dando valor – por vezes exacerbado – ao dinheiro e aos bens materiais em geral, mesmo quando para eles não têm mais nenhuma utilidade ou relevância. Isso é sinal de pouco adiantamento espiritual; o Espírito anda não está “desmaterializado”, para usarmos a expressão de Kardec. Note-se, incidentalmente, que essa avaliação se aplica mesmo quando o Espírito está encarnado, quando o homem inverte os valores, colocando aqueles referentes à transitória vida corporal acima dos valores espirituais eternos, o cultivo da virtude e do conhecimento.

Depois dessa referência ao desprendimento dos laços corporais, Kardec passa ao aspecto central do texto, que é a observação de que a expressão em pauta “não deve ser entendida exclusivamente no sentido moral”. Que sentido adicional é este? É justamente o que procuramos identificar nos comentários da seção precedente sob o título de “dimensão corporal” da desmaterialização. Como vimos, mesmo antes do texto da primeira edição de O Livro dos Médiuns, Kardec já havia anotado, em diversas obras, o resultado de seus estudos da natureza dos Espíritos, que indicaram de forma inequívoca que há uma correlação entre adiantamento espiritual, num sentido amplo do termo, e certas características de seu corpo espiritual, ou perispírito. O texto ora em análise resume bem o ponto: “À medida que o Espírito se depura moralmente, seu envoltório fluídico se purifica materialmente, tornando-se mais etéreo.”

Ora, é justamente a existência desse processo de “eterização” que justifica o emprego da palavra “desmaterialização”. Na cosmologia de Aristóteles (384–322 a.C.), que dominou a cena intelectual do Ocidente por quase dois milênios, ‘éter’ era o termo empregado para designar a substância da qual os espaços celestes seriam constituídos; ela era concebida como mais tênue que a substância da qual o mundo terreno seria composto (terra, água, ar e fogo), tendo como características a imponderabilidade e a invisibilidade (salvo quando “concentrada” para formar os corpos celestes). Mesmo quando essa cosmologia cedeu lugar às concepções modernas do mundo, a partir dos séculos XVI e XVII, o termo ficou incorporado às linguagens naturais (não científicas), e seu significado – agora metafórico – é justamente aquele de que Kardec se serviu para falar do perispírito como tendo uma natureza “etérea” ou, em tantas passagens, “vaporosa”, imponderável, invisível sob condições normais, etc. Apesar disso, ele ainda seria material, como era, para os gregos, o éter. Vemos, incidentamente, quão erudito era Kardec, ao manejar esses conceitos filosóficos de complexa história, sem jamais incorrer em confusões e associações impróprias. Notemos também que, assim como na proposta original sobre o cosmo, temos limitações cognitivas para compreender, além de certo nível básico, a real natureza desse elemento – o éter, ou, agora, o perispírito –, que é filosoficamente classificado como “matéria” mesmo não tendo quase nenhuma semelhança com os corpos ordinários, que filosoficamente também são, desde a Antiguidade, classificados como “materiais”.

Diante da dificuldade intrínseca do assunto, Kardec, como bom educador, lança mão de uma poderosa metáfora, a da destilação do álcool. [20] Na concepção usual, referendada pela própria ciência, na destilação a substância mais volátil ou “sutil”, o álcool – ou também, em caso análogo, da substância química chamada, não por acaso, “éter” (C2H5)2O – vai sendo gradualmente separada de outras mais “grosseiras” ou densas, como a água e outras “impurezas”, isto é, aquilo que não é de interesse reter-se no produto final. Como em qualquer metáfora, o objetivo é o estímulo ao pensamento, não porém a solução literal de todas as dificuldades envolvidas no caso. Daí, para nós, a necessidade de seguirmos estudando sempre, pesquisando sempre, sem porém a pretensão de tudo abarcar e esclarecer definitivamente. Essa, aliás, é uma das grandes propostas que constituem o pensamento filosófico.

Além dessa instrutiva metáfora, Kardec ajuda o leitor apresentando, ainda no primeiro dos três parágrafos do texto, um exemplo das consequências dessa “desmaterialização” do perispírito: à medida que o Espírito se desmaterializa, suas “sensações grosseiras cedem lugar a sensações mais delicadas”. Ele passa a perceber mais e melhor do mundo que o rodeia. Esse ponto é confirmado por muitos relatos dos próprios Espíritos, em diferentes ocasiões, nos diálogos travados com Kardec e transcritos em suas obras, especialmente na Revista Espírita.

O segundo parágrafo do texto inicia com uma observação de suma importância: a desmaterialização, neste sentido “corporal”, é consequência do desenvolvimento das faculdades morais e intelectuais do Espírito. Logo, não é algo que se possa alcançar por nenhum artifício, nenhuma técnica ou exercício, nenhum procedimento externo à efetiva melhoria da condição espiritual. A seu turno, ela é algo que depende única e exclusivamente dos esforços que o Espírito faça para aprender mais e, sobretudo, elevar-se a uma melhor posição moral, pelo cultivo das virtudes e superação de imperfeições de caráter.

Embora os dois fatores, o intelectual e o moral, sejam determinantes para a desmaterialização do Espírito, no terceiro parágrafo Kardec nota que, numa escala de importância relativa, o segundo prepondera sobre o primeiro: “A desmaterialização acompanha o progresso moral, muito mais do que o progresso intelectual. É por isso que vemos Espíritos muito inteligentes que, apesar disso, não deixam de ser muito atrasados, subordinando-se ainda à influência da matéria e das ideias terrenas.” O fato aqui apontado é amplamente corroborado pelas comunicações mediúnicas estudadas por Kardec. Podemos acrescentar que este também deve ser ponto pacífico para quem quer que tenha se ocupado de comunicações mediúnicas, seguindo os critérios de análise crítica propostos por ele. É justamente assim que se pode, com mais segurança, aquilatar o verdadeiro caráter do Espírito comunicante. Nisso reside, aliás, uma das utilidades práticas da Escala, como Kardec salientou em todas as suas versões.

Retornando ao segundo parágrafo, no trecho que trata da ampliação das percepções do Espírito, Kardec acrescenta que, com sua progressiva desmaterialização, “ele vê e compreende o que os Espíritos inferiores não veem nem entendem. Suas ideias morais tornam-se mais íntegras, ele julga melhor todas as coisas. Este estado lhe faculta acesso a mundos mais avançados; sua felicidade aumenta com a desmaterialização.” Há aqui algo novo e pouco notado: com a desmaterialização ocorre não apenas um incremento na capacidade de o Espírito ver as coisas (e, de um modo mais geral, percebê-las sensorialmente), mas também uma melhoria de sua capacidade de compreendê-las. Isso pode dizer respeito tanto à compreensão intelectual como, sobretudo, à capacidade de julgar moralmente, de avaliar melhor o valor moral das ações humanas. É justamente isso que, aliado à mobilização da vontade, permite ao Espírito galgar melhores posições na Escala espírita, facultar o “acesso a mundos mais avançados” e, sobretudo – num fecho luminoso do texto –, a alcançar um estado de maior felicidade, fim máximo de todo ser humano.


AGRADECIMENTOS

Agradecemos a Adair Ribeiro Jr. e Alexandre Caroli Rocha os comentários, sugestões e correções feitas sobre versões preliminares deste artigo.


REFERÊNCIAS

KARDEC, A. Le livre des esprits. 1er édition, Paris, E. Dentu, Libraire, 1857. Disponível neste link.

——. 1858a. Instruction pratique sur les manifestations spiritesParis, Bureau de la Revue Spirite, 1858. Disponível neste link.

——. 1858b. “Différents ordres d’Esprits”. Revue Spirite 1er année,  2, février 1858, pp. 37–44. Disponível neste link.

——. 1858c. “L’Esprit frappeur de Bergzabern (deuxième article)”. Revue Spirite 1er année, n° 6, juin 1858, pp. 153–162. Disponível neste link.

——. 1858d. “Phénomène de bicorporéité”. Revue Spirite 1er année, n° 12, décembre 1858, pp. 328–331. Disponível neste link.

——. 1858e. “Sensations des esprits”. Revue Spirite 1er année, n° 12, décembre 1858, pp. 331–338. Disponível neste link.

——. 1860. Le livre des esprits. 2de édition, Paris, Didier et Cie, Libraires-Éditeurs, 1860. Disponível neste link.

——. 1861. Le livre des médiums. 1er édition, Paris, Didier et Cie, Libraires-Éditeurs, 1861. Disponível neste link.


APÊNDICE. ORIGINAL DO TEXTO SOBRE A DESMATERIALIZAÇÃO DOS ESPÍRITOS NA PRIMEIRA EDIÇÃO DE LE LIVRE DES MÉDIUMS (1961). [21]

Figura 1: Páginas da primeira edição de O Livro dos Médiuns que contêm os três parágrafos analisados neste artigo (destacados em vermelho).

La classification des Esprits est ainsi basée sur le degré de leur avancement, c’est-à-dire sur celui de leur dématérialisation. La dématérialisation est l’état des Esprits dépouillés de l’influence de la matière ; on dit qu’un Esprit est ou n’est pas dématérialisé, selon qu’il est plus ou moins dégagé des liens corporels. Cette expression, appliquée aux Esprits, ne doit pas s’entendre exclusivement dans le sens moral. Chez les Esprits inférieurs, le périsprit se rapproche davantage de notre matière: de là pour eux des sensations analogues à celles qu’ils avaient de leur vivant ; de là aussi chez eux la prédominance des passions terrestres. A mesure que l’Esprit s’épure moralement, son enveloppe fluidique s’épure matériellement et devient de plus en plus éthérée ; les sensations grossières font place à des sensations plus délicates, plus subtiles, qui ne sont pas émoussées par la densité du périsprit. On pourrait comparer cette épuration graduelle à celle qui a lieu dans l’alcool par les distillations successives ; à chaque opération, il laisse au fond de l’alambic quelques particules étrangères, et en sort plus pur: de même l’Esprit, après chaque existence corporelle, se dépouille de quelques impuretés, selon les efforts qu’il fait pour cela, et s’élève de quelques degrés, jusqu’à ce qu’il ait atteint la pureté absolue.

La dématérialisation réagit sur les facultés morales et intellectuelles de l’Esprit, ou, pour mieux dire, elle est une conséquence de l’état de ses facultés. A mesure que l’Esprit s’épure, le voile qui lui cache l’infini s’éclaircit, comme un brouillard qui se dissipe ; le cercle de ses perceptions s’élargit ; il voit et comprend ce que ne voient ni ne comprennent les Esprits inférieurs ; ses idées morales sont plus saines, il juge mieux toutes choses. Cet état lui donne accès dans les mondes plus avancés, et son bonheur croît avec la dématérialisation.

La dématérialisation suit le progrès moral, bien plus que le progrès intellectuel ; c’est pourquoi on voit des Esprits très intelligents qui n’en sont pas moins fort arriérés et sont encore sous l’influence de la matière et des idées terrestres ; on les reconnait à leurs communications, qui brillent plus par la forme que par le fond et ne méritent, en général, qu’une médiocre confiance, surtout dans les questions graves ; car ils n’en savent guère plus que les hommes, et ceux-ci même ont quelquefois des idées plus justes sur certaines choses. Il y a des Esprits incarnés qui sont plus dématérialisés sous l’enveloppe corporelle que d’autres dans la vie d’Esprit.

NOTAS

[1] Neste artigo todas as indicações de páginas da Revista Espírita são referentes ao original francês, a Revue Spirite.

[2] Instrucion practique sur les manifestations spirites. A primeira referência a essa brochura foi feita por Kardec no artigo “O Espírito batedor de Bergzabern” (o segundo de dois textos sobre o assunto), na Revista Espírita, de junho de 1858 (p. 153); por isso acreditamos que a publicação desse livro tenha ocorrido neste mesmo mês.

[3] No original: “Il nous intéresse en outre personnellement, car, comme nous appartenons par notre âme au monde spirite dans lequel nous rentrons en quittant notre enveloppe mortelle, il nous montre ce qui nous reste à faire pour arriver à la perfection et au bien suprême.”

[4] Isto é, durante a ocorrência das manifestações, ou em sua análise. No original: “Quoique ce chapitre se trouve dans le Livre des Esprits, nous croyons devoir le reproduire ici, parce qu’il est utile de l’avoir sous les yeux dans les manifestations.” A utilidade de se ter a Escala Espírita disponível durante as manifestações também aparece no manuscrito “Trabalhos a executar para compilar a doutrina Espírita”, no qual Kardec documenta seu plano de ofertar a Escala Espírita em forma de um “Quadro sinótico das ordens dos espíritos e seus trejeitos pelos quais podemos reconhecê-los, de grande dimensão, como mapas de parede, para o uso de centros espíritas e para serem usados nas reuniões.” Esse manuscrito faz parte do acervo do Museu Allan Kardec Online (AKOL) e será futuramente disponibilizado no Portal Allan Kardec da UFJF.

[5] No original: “Comme nous y avons ajouté beaucoup de choses, et plusieurs chapitres entiers, nous avons supprimé quelques articles qui faisaient double emploi, entre autres l’Échelle spirite qui se trouve déjà dans le Livre des Esprits.”

[6] Veja-se, em particular, os sites Allan Kardec Online (AKOL https://www.allankardec.online/) e a Kardecpedia (https://www.kardecpedia.com/), que disponibilizam gratuitamente todas as edições já recuperadas das obras de Kardec, bem como o site Obras de Kardec (http://www.obrasdekardec.com.br/) que apresenta um estudo comparado do texto das diferentes edições dessas obras.

[7] Veja-se, para as primeiras referências a esse fenômeno, a Instruction pratique sur les manifestations spirites, páginas 6, 23, 31 e 34.

[8]  Tradução nossa. No original: “Les esprits arrivés à un certain degré d’épuration sont seuls dégagés de toute influence corporelle ; mais lorsqu’ils ne sont pas complètement dématérialisés (c’est l’expression dont ils se servent), ils conservent la plupart des idées, des penchants et même des manies qu’ils avaient sur la terre, et c’est encore là un moyen de reconnaissance ; mais on en trouve surtout dans une foule de faits de détail que peut seule révéler une observation attentive et soustenue.”

[9] Tradução de Alexandre Caroli Rocha. No original: “Le périsprit, quoique d’une nature éthérée, n’est pas pour cela immatériel ; c’est au contraire une substance, mais subtile, et jouissant, jusqu’à un certain point, de quelques-unes des propriétés de la matière, bien qu’il ne puisse être soumis à l’investigation de nos moyens d’analyse. Sa densité, si l’on peut s’exprimer ainsi, varie selon le degré d’épuration de l’Esprit ; chez les Esprits inférieurs, il est plus grossier, et devient pour eux la source d’impressions plus ou moins pénibles, qui diminuent à mesure que l’Esprit s’épure ou, ce qui revient au même ; se dématérialise.”

[10] Tradução de Alexandre Caroli Rocha. No original: “Hâtons-nous de dire que ces impressions n’existent que pour les Esprits d’un ordre très inférieur, et qui sont tellement sous l’influence de la matière que quelques-uns même croient encore être de ce monde. La situation est tout autre pour les Esprits dématérialisés ; toutes ces causes d’anxiété n’existent plus pour eux ; ils jouissent d’être affranchis des nécessités de la vie ; un bien-être infini les pénètre, car ils ont le sentiment de leur délivrance.”

[11] No original: “Un fait patent domine toutes les hypothèses : nous voyons de la matière qui n’est pas intelligente ; nous voyons un principe intelligent indépendant de la matière. L’origine et la connexion de ces deux choses nous sont inconnues. Qu’elles aient ou non une source commune, des points de contact nécessaires ; que l’intelligence ait son existence propre, ou qu’elle soit une propriété, un effet ; qu’elle soit même, selon l’opinion de quelques-uns, une émanation de la Divinité, c’est ce que nous ignorons ; elles nous apparaissent distinctes, c’est pourquoi nous les admettons comme formant deux principes constituants de l’univers.”

[12] Ao que pudemos constatar, o único outro texto em que o ponto metafísico é novamente explorado com grande competência, embora incidentalmente, é o item 50 da segunda edição de O Livro dos Médiuns, “Sistema da alma material”.

[13] Destaques nossos. No original: “Chez les esprits que ne sont point encore complétement dématérialisés, la moralité n’est pas toujours en rapport avec la science. Les connaissances dont ils se parent souvent avec une sorte d’ostentation ne sont pas un signe irrécusable de leur supériorité. L’inaltérable pureté des sentiments moraux est à cet égard la véritable pierre de touche.”

[14] No original: “... l’homme, lorsqu’il est complétement dématerialisé par sa vertu, qu’il a élevé son âme vers Dieu, peut apparaître en deux endroits à la fois, voici comment.”

[15] Règle générale : L’Esprit est d’autant moins parfait qu’il est moins dégagé de la matière. Toutes les fois donc que l’on reconnaît en lui la persistence des idées fausses qui l’ont préocupé pendant sa vie, qu’elles appartiennent à l’ordre physique ou à l’ordre moral, c’est un signe infallible qu’il n’est point complètement dématérialisé. (Grifo no original.)

[16] Relevantes, a esse respeito, estes três textos do Evangelho segundo o Espiritismo: 1. “O homem no mundo”, de um Espírito protetor, cap. XVII, n. 9; 2. “Cuidar do corpo e do espírito”, de George, Espírito protetor; e 3. “A cólera”, de Hahnemann, cap. IX, n. 10. Deste último destacamos estas frases: “O corpo não dá cólera àquele que não na tem, do mesmo modo que não dá os outros vícios. Todas as virtudes e todos os vícios são inerentes ao Espírito.” (Grifamos.)

[17] No original: “En disant que les Esprits sont inaccessibles aux impressions de notre matière, nous voulons parler des Esprits très élevés dont l’enveloppe éthérée n’a pas d’analogue ici-bas. Il n’en est pas de même de ceux dont le périsprit est plus dense ; ceux-lá perçoivent nos sons et nos odeurs, mais non pas par une partie limitée de leur individu, comme de leur vivant. On pourrait dire que les vibrations moléculaires se font sentir dans tout leur être et arrivent ainsi à leur sensorium commune, qui est l’Esprit lui-même, quoique d’une manière différente, et peut-être aussi avec une impression différente, ce qui produit une modification dans la perception. Ils entendent le son de notre voix, et pourtant ils nous comprennent sans le secours de la parole, par la seule transmission de la pensée ; et ce qui vient à l’appui de ce que nous disons, c’est que cette pénétration est d’autant plus facile que l’Esprit est plus dématérialisé.”

[18] O Livro dos Médiuns. Essa edição ainda não possui tradução para o português.

[19] A versão que utilizamos é a cópia em imagem obtida do Google Books, que posteriormente diversos sites também disponibilizaram.
Veja-se, por exemplo, o Allankardec.online – Museu Online do Espiritismo (https://www.allankardec.online/). Agradecemos a Alexandre Caroli Rocha uma versão preliminar da tradução aqui apresentada. O texto original francês está reproduzido no Apêndice deste artigo.

[20] Essa metáfora é usada por Kardec em outras passagens de suas obras. Vejam-se, por exemplo em Instrução Prática sobre as Manifestações Espíritas, Capítulo VII – Influência do meio nas manifestações (pp. 109 e 110) e no comentário da questão número 196 de O Livro dos Espíritos, segunda edição (p. 86).

[21] A versão que utilizamos nesta transcrição é a cópia em imagem obtida do Google Books, que posteriormente diversos sites também disponibilizaram. Veja-se, por exemplo, o Allankardec.online – Museu Online do Espiritismo (https://www.allankardec.online/ ).


FonteL. Farias e S. S. ChibeniJornal de Estudos Espíritas 11, 010201 (2023), DOI: http://doi.org/10.22568/jee.v11.artn.010201.



Comentários

Postagens populares

Dra. Anete Guimarães em São Paulo

REVELAÇÕES DE CHICO XAVIER SOBRE TRANSIÇÃO PLANETÁRIA

A tragédia da Chapecoense e as mortes coletivas