"Espiritismo: Uma religião digna do Criador", por Paulo Neto
Recebemos o seguinte artigo e o publicamos com satisfação, tanto pela qualidade do trabalho como pela dedicação do seu autor, nosso confrade Paulo Neto, grande estudioso e divulgador da nossa amada Doutrina Espírita.
“O verdadeiro crítico deve afastar-se das ideias preconcebidas, despojar-se de qualquer preconceito pois do contrário julgará de seu ponto de vista, que talvez, nem seja justo.” (ALLAN KARDEC)
Seremos bem objetivos, por isso citaremos somente seis pontos com os quais julgamos formar uma base para considerar o Espiritismo, codificado por Allan Kardec (1804-1869), como sendo uma religião, porém, não no sentido que comumente se dá ao termo, conforme ele deixou bem claro isso..
1º) Primeira revelação da minha missão
Na data de 30 de abril de 1856, o prof. Denisard Hippolyte Léon Rivail participava da sessão na residência do Sr. Roustan, quando a médium Srta. Japhet através da cesta de bico, escreve uma mensagem, na qual ele é informado de sua missão, destacamos este trecho::
[…] Deixará de haver religião e uma se fará necessária, mas verdadeira, grande, bela e digna do Criador… Os seus primeiros alicerces já foram colocados… Quanto a ti, Rivail, a tua missão é aí. (Livre, a cesta se voltou rapidamente para o meu lado, como o teria feito uma pessoa que me apontasse o dedo. […]. [1] (grifo nosso)
Portanto, a missão do prof. Rivail foi a de trazer uma religião, que será única, grande, bela e digna do Criador, não há como ignorar essa importante informação.
2º) Minha missão
Em 7 de maio de 1856, na casa do Sr. Roustan, através da médium Srta. Japhet, ocorreu uma manifestação da qual trazemos o seguinte trecho:
Pergunta (a Hahnemann) – Outro dia, disseram-me os Espíritos que eu tinha uma importante missão a cumprir e me indicaram o seu objeto. Desejaria saber se confirmas isso.
Resposta – Sim e, se observares as tuas aspirações e tendências e o objeto quase constante das tuas meditações, não te surpreenderás com o que te foi dito. Tens que cumprir aquilo com que sonhas desde longo tempo. É preciso que nisso trabalhes ativamente, para estares pronto, pois mais próximo do que pensas vem o dia. [2] (grifo nosso)
Cinco dias depois, ou seja, em 12 de maio, é o próprio Espírito de Verdade, através da médium Srta. Aline C…, quem confirma a Allan Kardec a missão que fora incumbido, recomendando-lhe: “Nunca, pois, fales da tua missão; seria a maneira de a fazeres malograr-se. Ela somente pode justificar-se pela obra realizada e tu ainda nada fizeste.” [3]
Para sabermos qual era o sonho do prof. Rivail, a que o Espírito Hahnemann se referiu, vamos trazer da obra A Imagem da Luz – A presença do Cristo nas Três Revelações este trecho transcrito do Dicionário Lachâtre de autoria de Maurice Lachâtre (1814-1900):
Nascido na religião católica, mas educado num país protestante, os atos de intolerância que ele teve de suportar a esse respeito fizeram-no, desde a idade de quinze anos, conceber a ideia de uma reforma religiosa, na qual trabalhou em silêncio durante longos anos, com o pensamento de chegar à unificação das crenças; mas faltou-lhe o elemento necessário para a solução desse grande problema. O Espiritismo veio, mais tarde, fornecer-lhe e imprimir uma direção especial aos seus trabalhos. […]. [4] (grifo e sublinhado nosso)
Agora sim, esta frase dita Hahnemann a respeito do prof. Rivail faz todo o sentido: “Tens que cumprir aquilo com que sonhas desde longo tempo.”
3º) A primeira definição de Allan Kardec
Na obra O Que é o Espiritismo?, publicada em 15 de julho de 1859, bem no início da Codificação, Allan Kardec o define da seguinte forma:
[…] O Espiritismo é a doutrina fundada sobre a existência dos Espíritos, ou seres incorpóreos do mundo invisível, e suas relações com o mundo corporal. Podemos também dizer que: o Espiritismo é a ciência de tudo o que se refere ao conhecimento dos Espíritos ou do mundo invisível. [5] (itálico do original, negrito nosso)
Não se pode esquecer que à época da publicação, fora os fascículos da Revista Espírita, o Codificador só havia publicado duas obras: O Livro dos Espíritos e Instrução Prática sobre as Manifestações dos Espíritos que, posteriormente, foi substituído por O Livro dos Médiuns. Conforme veremos no item 6º, quando próximo ao desencarne, especificamente, ao raiar o mês novembro de 1868, ele deixaria bem clara a questão, talvez já percebendo a importância disso em razão da polêmica que se instalaria no movimento espírita, não mais o termo ciência seria citado.
4º) O propósito do Espiritismo
Allan Kardec estava trabalhando para a publicação de um novo livro – O Evangelho Segundo o Espiritismo –, quando, em 9 de agosto de 1863, recebe uma orientação sobre o Espiritismo, e é informado do seu real objetivo, a nosso ver ela é de autoria de Erasto:
Aproxima-se a hora em que te será necessário apresentar o Espiritismo qual ele é, mostrando a todos onde se encontra a verdadeira doutrina ensinada pelo Cristo. Aproxima-se a hora em que, à face do céu e da Terra, terás de proclamar que o Espiritismo é a única tradição verdadeiramente cristã, a única instituição verdadeiramente divina e humana. […]. [6] (grifo nosso)
Se o Espiritismo representa a verdadeira doutrina ensinada pelo Cristo, e por isso “é a única tradição verdadeiramente cristã”, logo, não temos como não o ver como sendo uma religião.
5º) A prece de Allan Kardec
Entre os documentos do acervo Forestier publicados pelo Projeto Allan Kardec [7], há um manuscrito que contém uma prece feita por Allan Kardec, datada de 2 de dezembro de 1866; destacamos o trecho inicial:
Senhor Deus Todo-Poderoso,
Quanto mais medito sobre o objetivo final do espiritista, que é sua constituição em religião, mais eu sinto minhas ideias se aclararem e o plano se delinear, sem dúvida graças à assistência de vossos mensageiros; porém, mais também eu sinto quanto esse trabalho exige calma e meditações sérias.
Se me julgais digno, Senhor, de uma tal tarefa, fazei, peço-vos, que eu possa ter a tranquilidade necessária. Se as circunstâncias me obrigarem a me expatriar, peço que os bons Espíritos preparem os caminhos para que eu possa, em meu retiro, dedicar-me sem problemas a esses trabalhos. Dai-me sobretudo saúde, assim como a Amélie. [8] (grifo nosso)
Nessa prece, temos o Codificador preocupado com a tarefa da constituição do Espiritismo em religião.
6º) Discurso na Sessão Anual Comemorativa dos Mortos
No fascículo do mês de dezembro de 1868 da Revista Espírita, Allan Kardec registrou o seu discurso de abertura, intitulando-o de “O Espiritismo é uma religião?” O astrônomo Camille Flammarion (1842-1925) disse que o Codificador pressentiu seu fim próximo [9], também foi essa a impressão que nos ficou diante desse título, razão pela qual viu a necessidade de deixar bem clara a questão proposta. A certa altura de sua alocução diz:
Se assim é, dir-se-á, o Espiritismo é, pois, uma religião? Pois bem, sim! sem dúvida, Senhores; no sentido filosófico, o Espiritismo é uma religião, e disto nos glorificamos, porque é a doutrina que fundamenta os laços da fraternidade e da comunhão de pensamentos, não sobre uma simples convenção, mas sobre as bases mais sólidas: as próprias leis da Natureza.
Por que, pois, declaramos que o Espiritismo não é uma religião? Pela razão de que não há senão uma palavra para expressar duas ideias diferentes, e que, na opinião geral, a palavra religião é inseparável da de culto; que ela desperta exclusivamente uma ideia de forma, e que o Espiritismo não a tem.
O Espiritismo, não tendo nenhum dos caracteres de uma religião, na acepção usual da palavra, não se poderia, nem deveria se ornar de um título sobre o valor do qual, inevitavelmente, seria desprezado; eis porque ele se diz simplesmente: doutrina filosófica e moral. [10] (grifo nosso)
Em nossa maneira de entender, a posição do Codificador é clara quanto ao Espiritismo ser religião, porém, não o era no sentido comum que se dá ao termo, pois, fatalmente, o remeteria aos caracteres das religiões tradicionais, com seus dogmas, rituais, hierarquia, etc.
Por outro lado, se logo no início da Codificação Espírita Allan Kardec o definisse como religião ele, o Espiritismo, seria desprezado, seria apenas mais uma “no mercado”, e em razão disso morreria no nascedouro.
Corroborando nosso pensamento, trazemos a opinião do jornalista José Herculano Pires (1914-1979), a respeito desse discurso do Codificador. A obra O Tesouro dos Espíritos foi traduzida por Herculano Pires, a 2ª parte intitulada “Marcha para o futuro” é de sua autoria, por inspiração de Miguel Vives, que, quando vivo, foi autor da 1ª parte dessa obra:
O Espiritismo é a Religião em espírito e verdade, de que Jesus falou à mulher samaritana. Mas há espíritas que não compreendem isso e negam a religião espírita. “É possível tirarmos do Espiritismo a fé em Deus e a lei da caridade?” Todo o problema, que tanta celeuma tem levantado entre alguns irmãos intelectuais, se resume na falta de compreensão do que seja religião. Os confrades antirreligiosos gastam tinta e papel em quantidade por quererem provar um absurdo. Alegam que Kardec se recusou a chamar o Espiritismo de religião. Mas o próprio Kardec explicou por que o evitou – não se recusou, mas apenas evitou – chamar o Espiritismo de religião: não queria confundir uma doutrina de luz e liberdade com as organizações dogmáticas e fanáticas do mundo religioso. [11] (grifo nosso)
Bem clara é a posição de Herculano Pires, com a qual nos alinhamos sem o menor constrangimento, já que isso causa espécie a alguns confrades.
Nós estamos plenamente convencidos de que o Espiritismo é uma religião, porém, somos concordes com Allan Kardec que disse: “O que é evidente, para nós, pode não ser para vós outros; cada qual julga as coisas debaixo de certo ponto de vista, e do fato mais positivo nem todos tiram as mesmas consequências.” [12]
Paulo da Silva Neto Sobrinho
junho, 2021.
Revisão: Hugo Alvarenga Novaes
Rosana Netto Nunes Barroso
Notas
[1] KARDEC, Obras Póstumas, p. 308.
[2] KARDEC, Obras Póstumas, p. 309.
[3] KARDEC, Obras Póstumas, p. 313.
[4] GRUPO MARCOS, A Imagem da Luz – A presença do Cristo nas Três Revelações, disponível em: https://www.luzespirita.org.br/leitura/pdf/L198.pdf, p. 23.
[5] KARDEC, Qu’est-ce que le Spiritisme, disponível em: http://www.autoresespiritasclassicos.com/Allan%20Kardec/O%20Que%20e%20o%20Espiritismo/Allan%20Kardec%20-%20Qu'est-ce%20que%20le%20Spiritisme%20-%201%C2%AA%20%C3%89dition%20(1859).pdf, p. 6.
[6] KARDEC, Obras Póstumas, p. 338.
[7] LUZ ESPÍRITA, Enciclopédia Espírita Online: Projeto Allan Kardec: acervo Forestier, disponível em: https://www.luzespirita.org.br/index.php?lisPage=enciclopedia&item=Projeto%20Allan%20Kardec
[8] PROJETO ALLAN KARDEC: Prece de Allan Kardec – 02/12/1866, disponível em: https://projetokardec.ufjf.br/item-pt?id=179
[9] No discurso de despedida junto ao túmulo de Allan Kardec, Camille Flammarion diz: “Há alguns meses, sentindo seu fim próximo, preparo as condições de vitalidade desses mesmos estudos depois de sua morte, e estabeleceu a Comissão Central que o sucede.” (KARDEC, Revista Espírita 1869, p. 139)
[10] KARDEC, Revista Espírita 1868, p. 359.
[11] VIVES, O Tesouro dos Espíritas, p. 85.
[12] KARDEC, O Que é o Espiritismo, p. 59.
Referências bibliográficas:
KARDEC, A. O Que é o Espiritismo. Rio de Janeiro: FEB, 2001.
KARDEC, A. Obras Póstumas. Rio de Janeiro: FEB, 2006.
KARDEC, A. Revista Espírita 1868. Araras (SP): IDE, 1993.
KARDEC, A. Revista Espírita 1869. Araras (SP): IDE, 2001.
VIVES, M. V. O Tesouro dos Espíritas. São Paulo: Edicel, 2016.
GRUPO MARCOS, A Imagem da Luz – A presença do Cristo nas Três Revelações, disponível em: https://www.luzespirita.org.br/leitura/pdf/L198.pdf. Acesso em: 01 nov. 2023.
KARDEC, A. Qu’est-ce que le Spiritisme, disponível em: http://www.autoresespiritasclassicos.com/Allan%20Kardec/O%20Que%20e%20o%20Espiritismo/Allan%20Kardec%20-%20Qu'est-ce%20que%20le%20Spiritisme%20-%201%C2%AA%20%C3%89dition%20(1859).pdf. Acesso em: 14 jun. 2021.
LUZ ESPÍRITA, Enciclopédia Espírita Online: Projeto Allan Kardec: acervo Forestier, disponível em: https://www.luzespirita.org.br/index.php?lisPage=enciclopedia&item=Projeto%20Allan%20Kardec. Acesso em: 01 nov. 2023.
PROJETO ALAN KARDEC: Prece de Allan Kardec – 02/12/1866, disponível em: https://projetokardec.ufjf.br/item-pt?id=179. Acesso em: 09 jun. 2021.
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