Matéria especial: "Céu e inferno: O dilema do Papa Francisco e da Igreja Católica diante da dor do jovem Emanuele — e demais fieis"


Em celebração ao terceiro domingo da páscoa, numa paróquia de Roma, Itália, o papa Francisco abriu espaço para perguntas dirigidas por crianças locais. Dentre elas, um garoto acabou nos braços do papa: em prantos, ele não conseguira fazer a pergunta ao microfone e foi então chamado a aproximar-se do papa a fim de fazer a sua indagação diretamente ao ouvido de sua santidade. A pergunta era por demais íntima — o que talvez explique a impossibilidade de o jovenzinho Emanuele não ter conseguido expô-la — e exigia uma resposta sagaz do chefe da igreja católica. 

E convém refletirmos profundamente sobre isso, à luz do Espiritismo: tanto sobre a pergunta, quanto sobre a resposta.


O episódio

Vejamos primeiramente o vídeo do acontecido:



A pergunta de Emanuele

Uma das crianças escolhidas para fazer perguntas ao santo padre, Emanuele não conseguiu expor sua pergunta abertamente, mas consentiu que sua indagação fosse divulgada ao público — quem sabe, preocupado que muitos outros jovens estivessem tão aflitos quanto ele.
 
Emanuele voltou para o seu lugar junto com as outras crianças e ouviu o pontífice exclamar: “Quem dera todos nós, pudéssemos chorar como Emanuele quando temos uma dor como ele tem em seu coração. Ele chorou por seu pai e teve a coragem de fazer isso na nossa frente, porque em seu coração há amor por seu pai." E contou que o jovenzinho lhe questionou: “Meu pai morreu. Ele era ateu, mas teve todos os quatro filhos batizados. Ele era um bom homem. Meu pai está no céu?”


O que talvez tenha passado desapercebido nesse episódio — porque todo o mundo ficou encantado com a resposta do papa — é o drama por trás dessa pergunta e o a aflição daquele menino, a exemplo de tantos outras, mediante a situação posta: a dúvida da destinação de um ente querido depois da morte. Emanuele pegou o viés mais otimista: indagou se seu pai não estaria no céu, mas, provavelmente, a dúvida que o atormentava era outra, e a pergunta consequente que intimamente ele se fazia era se seu pai estaria no inferno.


Representação gráfica do lendário inferno


O drama do dogma do inferno

Quem mora nos grandes centros urbanos, dada a agitação e o inchaço de atividades do dia a dia, ou mesmo quem viva mergulhado na virtualidade da realidade tecnológica, bem como aquele alheio à religiosidade, talvez ignore que bilhões de indivíduos vivam mergulhados num mundo totalmente diferente, e sobre quem as religiões exerçam uma influência muito forte. Com efeito, bilhões de vidas norteiam-se por suas respectivas crenças e doutrinas, de modo que as tradições e os dogmas religiosos lhes afetam diariamente.

Nessas condições, é de se imaginar que há tantas outras pessoas como Emanuele sofrendo pungentemente por causa de sua fé, por exemplo, diante do dogma do inferno, pois o seu catecismo lhes impõe uma crença aterrorizante. Coloquemo-nos no lugar desse menino e imaginemos o cenário: além da dor de sua orfandade, cogitar que a alma de seu pai amado esteja ardendo nas chamas infernais — e isso por todo o sempre. Ponderemos bem sobre a crueldade desse dogma que, sob a interpretação ortodoxa dos textos bíblicos, se estende aos não batizados, aos suicidas, aos homossexuais, enfim, a todos aqueles que não se enquadram dentro de certos requisitos impostos por uma tal doutrina. Quem pode dizer que não teve em seu seio familiar alguém que desencarnou isento de tantas exigências que as religiões fazem para livrar a alma da condenação do fogo do inferno? Logo, se guardamos afeto por esses desencarnados, como não se afligir com tal possibilidade? Como um filho carente consegue dormir na iminência de saber que seu pai ateu está sob a tutela de um Lúcifer? Como um pai afetuoso sobrevive na iminência de saber que um filho suicida esteja ardendo em chamas e assim permanecerá eternamente? Como uma esposa amorosa poderá pretender ir para o paraíso sabendo que lhe faltará a companhia do seu amado esposo que fora condenado às trevas por não ser batizado?

Foi uma aflição dessa natureza que embargou a voz de Emanuele quando da chance de lançar tal pergunta ao papa.

O que tratamos aqui é precisamente da crueldade que uma crença pode exercer sobre os seus fieis.


O drama do dogma do paraíso

Mas a problemática não se resume somente quanto à ameaça do inferno. O dogma de um paraíso prometido aos "eleitos" — dogma esse característico em praticamente todas as religiões —, adquirível mediante certos requisitos  dentre os quais, por exemplo, sacramentos e sacrifícios —, é também de terríveis consequências, pois que atravanca o curso evolutivo dos indivíduos. Ao invés de buscar seu adiantamento intelectual e moral, o sujeito concentra seus esforços em satisfazer as exigências superficiais de sua crença, na ilusão de quitar suas obrigações para com Deus, comprando a chave de uma porta que não o levará a lugar algum.

Também aí as doutrinas tradicionais perpetuam um grande mal para a o desenvolvimento da humanidade. E isso sem falar de certos conceitos mais extremistas que consideram a "guerra santa" contra os infiéis um atalho bem mais curto para um recanto de delícias.


O sonho dos jihadistas islâmicos com o paraíso e suas prometidas 72 virgens
Por causa dessas fantasias primitivas e perigosas é que muitos "ateus praticantes" dedicam-se a desbancar todo e qualquer conceito de espiritualidade e pregam o materialismo.


A resposta de Francisco

Bem, mas vamos analisar os efeitos da resposta do papa ao garoto italiano.

Disse Francisco: “Que bom que um filho diz de seu pai ‘Ele era bom’. Para que seus filhos pudessem dizer ‘Ele era um bom homem’, ele deve ter dado um belo testemunho a seus filhos. Se aquele homem era capaz de criar filhos assim, é verdade, ele era um bom homem.” E objetivamente respondendo a Emanuele, acrescentou: “Aquele homem não tinha o dom da fé, ele não era crente, mas ele tinha seus filhos batizados. Quem diz quem vai para o céu é Deus”.

Ao dizer isso, o papa admite que desconhece as regras exatas para a salvação — quer dizer, a aquisição do céu. Ou será que essas regras não existam por padrão e a sorte do morto esteja condicionada ao humor de Deus, que ora pode salvar fulano, ora pode condenar sicrano, ainda que ambos estejam em situações semelhantes, o fato de ser ateu, por exemplo? Só por isso sua resposta já seria questionável. Mas tem mais:

Então, Francisco perguntou às crianças: “Mas, como está o coração de Deus diante de um pai assim? Como é isso? O que lhes parece? Um coração de pai. E diante de um pai, não crente, que foi capaz de batizar seus filhos e dar essa bravura aos seus filhos, vocês acham que Deus seria capaz de deixá-lo longe? Vocês acham isso? Acaso Deus abandona seus filhos quando eles são bons?” Depois que todas as crianças responderam “não”, Francisco disse: “Aqui, Emanuele, esta é a resposta. Deus certamente estava orgulhoso de seu pai, porque é mais fácil ser um crente, batizar crianças, que batizá-las sendo incrédulo. Certamente isso agradou muito a Deus”.

Aqui, Francisco exalta o sacramento católico do batismo — rito de iniciação religiosa também validade por outras crenças. E continua: “Fale com seu pai, reze ao seu pai. Obrigado Emanuele por sua coragem.”



Interessante notar que neste ponto o pontífice sanciona — a menos que o dissesse, fingindo, apenas para consolar aquele filho órfão, temporariamente, já que a verdade um dia se revelará o poder da oração pelos falecidos, seja para aliviar seu suposto sofrimento (talvez no inferno, ou no purgatório), seja por considerar que tal reza influenciasse num recurso para alterar a sentença condenatória (e talvez conduzir a alma ao céu).


A reação do público

A reação geral diante da resposta "fofa" do papa é de admiração. Aliás, Francisco é um papa pop justamente por dar respostas "fofas", afetuosas e esperançosas para todos, semeando esperanças de que qualquer um — suicida, gay, abortador, assassino, corrupto, etc. — possa ir para o céu, em contradição com os preceitos da sua igreja.

Essa recepção carinhosa do público tem muito a ver com a intenção de uma fé customizada, ou seja, uma igreja que se modela para agradar a cada fiel, como um "modelo bonitinho de religião" que promova a salvação de todos, relevando todo e qualquer pecado — que o politicamente correto prefere chamar de "estilo de vida". Na prática, o que todo mundo quer é ter liberdade para fazer o que bem quer e mesmo assim encontrar o altar da igreja e a porta da salvação sempre à disposição.

Mas isso não agrada em nada os cardeais. Francisco não deve ser muito amado no Vaticano, que é saturado de conservadores.

Na verdade, o papa Francisco está criando uma tremendo embaraço no seio da igreja católica com suas posturas fora dos protocolos e declarações, por exemplo, como a de que o inferno não é um lugar circunscrito, segundo matéria do jornal italiano La Reppublica (veja aqui).



E a confusão se estende a todos os católicos e mesmo para os teólogos mais exigentes, pois, afinal de contas, tem-se um papa emitindo opiniões particulares em contradição — ou pelo menos em ambiguidade — frente ao catecismo da sua igreja. Daí se pergunta, a propósito: o inferno existe ou não fisicamente, no entendimento doutrinário católico?

Estudiosos que acompanham as notícias do Vaticano têm levantado questões cruciais, tais como: na condição de papa, convém a Francisco tomar posições pessoais não convencionais ás tradições da igreja e emiti-las publicamente? Aliás, pode alguém ser papa e ter opiniões pessoais diferentes das convenções da igreja? Se as opiniões de Francisco divergem dos preceitos do Vaticano, o que há que se fazer?


Evolução do catolicismo

Admitindo a lenda da condição sacra da igreja, podemos imaginar que, acima dos cardeais — que é quem realmente manda na igreja , a pessoa do papa é a mais habilitada formalmente para "receber uma inspiração divina" (vide a tradição interpretativa da fala atribuída a Jesus: "O que tu ligares na Terra será ligado no céu") e com isso promover uma reforma doutrinária do próprio catecismo católico. Desta feita, as "opiniões pessoais" de Francisco não poderiam ser consideradas inspiração divina?

Em caso afirmativo, o que se pode fazer é abrir um concílio e por em debate questões de fé junto ao corpo eclesiástico maior da igreja e, se for o caso, promover as deliberações, pois, a rigor, o papa não pode sozinho mudar os desígnios da sua religião; é preciso aprovação do colegiado dos cardeais. Desde as primeiras deliberações dos apóstolos (ver Ato dos Apóstolos na bíblia), a igreja católica já promoveu vários concílios. O primeiro concílio de Niceia em 325, por exemplo, dentre outras coisas abominou a lei de reencarnação das disposições católicas. O último foi o Concílio Vaticano II, ocorrida em quatro sessões entre 1962 a 1965, cuja expectativa principal era um reformulação no sentido de que a igreja assumisse um papel mais efetivo na sociedade frente a questões sociais e econômicas. No entanto, para a maioria dos especialistas, o evento foi um fracasso; a tão esperada abertura e modernização da igreja não veio dessa vez.

Realizar um concílio é tarefa hercúlia e levar a efeito as proposições que os anima não é tarefa fácil. Dizem, inclusive, que a coisa é bem mais política do que teológica.

Embora aqui e acolá sejam reacesas as esperanças de se ver uma modernização doutrinária no Vaticano, não há, segundo os vaticanólogos, cenário propício a curto prazo. A geração atual de cardeias é maciçamente conservadora. Senão por decorrência de um fato muito extraordinário, não será Francisco que fará esse "milagre", dizem os especialistas. Ele continuará angariando simpatia de fora, mas criando rachaduras dentro do Vaticano.

Isso quer dizer que, provavelmente, por muito mais tempo, o terror do inferno e a ilusão do paraíso prometido continuarão fazendo muitas vítimas.


A versatilidade da revelação espírita

Ao contrário das religiões tradicionais, o Espiritismo não tem dogmas e seus conceitos são dinamizados de acordo com a progressividade das revelações da espiritualidade e com a capacidade humana de compreender as leis da natureza divina. Assim, a Doutrina Espírita está sempre em evolução, como bem definiu Allan Kardec no primeiro capítulo de A Gênese, intitulado "Caráter da Revelação Espírita".
"Como meio de elaboração, o Espiritismo procede exatamente da mesma forma que as ciências positivas, aplicando o método experimental. Fatos novos se apresentam, que não podem ser explicados pelas leis conhecidas; ele os observa, compara, analisa e, remontando dos efeitos às causas, chega à lei que os rege; depois, deduz as suas consequências e busca as aplicações úteis. Não estabeleceu nenhuma teoria preconcebida; assim, não apresentou como hipóteses nem a existência e a intervenção dos Espíritos, nem o perispírito, nem a reencarnação, nem qualquer dos princípios da doutrina; concluiu pela existência dos Espíritos, quando essa existência ressaltou evidente da observação dos fatos, da mesma maneira que os outros princípios. Não foram os fatos que vieram posteriormente confirmar a teoria, mas a teoria que veio depois explicar e resumir os fatos. Portanto, é rigorosamente exato dizer que o Espiritismo é uma ciência de observação e não produto da imaginação."
Allan Kardec, A Gênese - cap. I, item 14 
O processo evolutivo no Espiritismo é natural: a verdade se mostra e a doutrina a absorve naturalmente.

E as luzes da verdade já têm suficientemente clareado a Doutrina Espírita sobre conceitos capitais, tais como a lei do progresso e das múltiplas existências reencarnatórias a fim de fazer o Espírito evoluir e, por conseguinte, elevar-se a esferas superiores, derrubando assim teses primitivas como a do inferno eterno e a do paraíso de uma infértil contemplação.

As penas eternas das igrejas e as sentenças sumárias e lendárias de salvação e condenação estão satisfatoriamente respondidas na magnífica obra O Céu e o Inferno de Allan Kardec. Aqui encontramos esmiuçados todos os detalhes das teorias que sustentam as crenças primitivas de um lugar físico propriamente destinados ao castigo eterno e de um lugar de delícias e perpétua adoração a Deus (e desdém de tudo o mais) devidamente confrontados, de modo que, um exame dedicado e honesto da obra kardequiana não permite enganos.

O item "Código penal da vida futura" dentro do capítulo VII da primeira parte da obra resume de forma brilhante os princípios espíritas sobre essas questões, sendo o sumo de tudo esses três pontos:
  1. O sofrimento é de acordo com a imperfeição. 
  2. Toda imperfeição, assim como toda falta gerada dela, traz consigo o próprio castigo nas consequências naturais e inevitáveis: assim, a moléstia pune os excessos e da ociosidade nasce o tédio, sem que seja preciso uma condenação especial para cada falta ou indivíduo. 
  3. Como todo homem pode se libertar das imperfeições por efeito da vontade, pode igualmente anular os males consecutivos e assegurar a futura felicidade. A cada um segundo as suas obras, no Céu como na Terra: tal é a lei da Justiça Divina.
Allan Kardec, O Céu e o Inferno - 1ª parte, cap. VII

Mas, obviamente, é preciso ter "olhos para ver" e "ouvidos para ouvir" para compreender estas coisas. A nosso favor, dentre outras coisas, está a certeza de que toda a verdade será conhecida um dia, e a verdade a todos libertará.

Oremos, com todo o espírito de caridade, por nossos irmãos ainda eclipsados pelo dogmatismo das crenças!

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