Projetos espíritas e o exemplo de Kardec
Sempre que o calendário anual vira, é comum que as pessoas
pensarem em refazer planos e estabelecer metas. Psicologicamente, isso às vezes
funciona, pois, sob o impulso imaginativo, os ânimos podem ser renovados e
novas posturas assumidas, embora o tempo seja uma mera convenção humana e na
natureza, na virada do dia 31 de dezembro para 1 de janeiro, nada de especial
acontece apenas por conta da data convencionada. Mas então, da mesma forma que
individualmente, acontece de as instituições espíritas lançarem ideias e mais
ideias, algumas até com a pretensão de alavancar o andamento dos seus trabalhos
internos, outras com a ousadia de supor revolucionar o Movimento Espírita.
E por que não? Exceção feita a alguns otimistas
extremos, é da opinião geral que o Movimento Espírita está bastante aquém das
potencialidades que a doutrina nos oferece e mesmo com as expectativas traçadas
pela espiritualidade, conforme o próprio codificador espírita, Allan Kardec.
mais de uma vez exprimiu, com entusiasmo. Em meados daquele século XIX, ele
projetou — tomando por comparação os surpreendentes avanços do Espiritismo em
pouco mais de uma década a partir da publicação de O Livro dos Espíritos —
que a Terceira Revelação só fosse precisar de um século para começar a exercer
decisivamente influência no Mundo. Pois é! Quanto otimismo, amigo Kardec! Já
caminhamos para o segundo século da inauguração da Doutrina Espírita e, com
prejuízo para toda a Humanidade, nossa sociedade não recepcionou o Espiritismo
com a devida atenção. E mesmo no Brasil — o país com a melhor população
espírita do Mundo — a doutrina dos Espíritos é ignorada. Então, precisamos de
novas ideias, estratégias mais modernas e eficazes para impulsionar a
espiritualização do nosso povo à luz da Revelação Espírita, algo diferente do
que se tem feito, porque não se pode esperar resultados melhores persistindo em
velhas práticas. Portanto, sejam bem-vindas novas ideias.
Todavia, precisamos fundamentar
bem novos empreendimentos, sob o risco de, além de desperdícios de energia e
outros recursos, deixarmos ser levados pelo desanimo. E como não temos dúvidas
de que Kardec também nesse quesito tem muito o que nos ensinar, acompanhemos um
exemplo prático de um projeto encaminhado à apreciação do pioneiro espírita,
nascido de uma mensagem mediúnica pela qual o Espírito da avó do médium sugeria
ao neto a criação de um “caixa geral de socorro” para obras de caridade, criado
e mantido por doações dos espiritas (ver na Revista Espírita, coleção 1866 - julho: "Projeto de caixa geral de socorro e outras instituições para os espíritas"). Para justificar a importância e urgência
desse projeto, o Espírito Marie G. ditou
na comunicação:
“Meu caro filho, vou falar-te um instante das questões de caridade que te preocupavam esta manhã quando ias ao trabalho.
“As crianças que são entregues a amas mercenárias; as mulheres pobres que são forçadas, abdicando do pudor que lhes é caro, a servir nos hospitais de material experimental aos médicos e aos estudantes de Medicina, são duas grandes chagas que todos os bons corações devem aplicar-se em curar, e isto não é impossível. Que os espíritas façam como os católicos, contribuindo com alguns centavos por semana e capitalizando esses recursos, de modo a chegarem a fundações sérias, grandes e verdadeiramente eficazes. A caridade que alivia um mal presente é uma caridade santa, que encorajo com todas as minhas forças; mas a caridade que se perpetua nas fundações imortais, destinada a aliviar as misérias, é a caridade inteligente e que me tornaria feliz ao vê-la posta em prática.
“Gostaria que um trabalho fosse elaborado visando a criar, inicialmente, um primeiro estabelecimento de proporções restritas. Quando se tivesse visto o bom resultado dessa primeira criação, passar-se-ia a outra, que seria aumentada pouco a pouco, como Deus quer que seja aumentada, porque o progresso se realiza em marcha lenta, sábia, calculada. Repito que o que proponho não é difícil; não haveria um só espírita verdadeiro que ousasse faltar ao apelo para o alívio de seus semelhantes, e os espíritas são bastante numerosos para formar, pelo acúmulo de algumas moedas por semana, um capital suficiente para um primeiro estabelecimento destinado a mulheres doentes, que seriam cuidadas por mulheres e que então deixariam de ocultar seus sofrimentos para salvar o seu pudor.
“Entrego estas reflexões às meditações das pessoas benevolentes que assistem à sessão e estou bem convicta de que elas darão bons frutos. Os grupos da província se congregariam prontamente a uma ideia tão bela e, ao mesmo tempo, tão útil e tão paternal. Aliás seria um monumento do valor moral do Espiritismo, tão caluniado, hoje e ainda por muito tempo, encarniçadamente.
“Eu disse que a caridade local é boa, aproveita a um indivíduo mas não eleva o espírito das massas como uma obra durável. Não seria belo que se pudesse repelir a calúnia, dizendo aos caluniadores: ‘Eis o que fizemos. Reconhece-se a árvore pelo fruto; uma árvore má não dá bons frutos e uma boa árvore não os dá maus.’
“Pensai também nas pobres crianças que saem dos hospitais e que vão morrer em mãos mercenárias, dois crimes simultâneos: o de entregar a criança desarmada e fraca, e o crime daquele que a sacrificou sem piedade. Que todos os corações elevem seus pensamentos para as tristes vítimas da sociedade imprevidente, e que se esforcem por encontrar uma boa solução para as salvar de suas misérias. Deus quer que se tente, e dá os meios de o alcançar; é preciso agir. Triunfa-se quando se tem fé, e a fé transporta montanhas. Que o Sr. Kardec trate a questão em seu jornal e vereis como será aclamada com calor e entusiasmo.
“Eu disse que era preciso um monumento material que atestasse a fé dos espíritas, como as pirâmides do Egito atestam a vaidade dos faraós; mas, em vez de fazer loucuras, fazei obras que levem o selo do próprio Deus. Todo mundo deve compreender-me; não insisto.
“Retiro-me, meu caro filho. Como vês, tua boa avó ama sempre os seus filhotes, como te amava quando eras pequenino. Quero que tu os ames como eu, e que penses em encontrar uma boa organização. Poderás, se o quiseres; e, se necessário, nós te ajudaremos. Eu te abençoo.”
Marie G...
A ideia, sem dúvida, era boa, nobre e carregada de boa intenção, portanto, digna de apreciação. E certamente, o mestre lionês a recebeu com carinho. Todavia, prudente como era, Kardec tratou a questão com a praticidade de quem já havia adquirido larga experiência em liderar um movimento tão importante, e então considerou as possibilidades de execução de tal projeto. Foi aí que entrou em cena a “prudência encarnada”, como diria Camille Flammarion, e as ponderações saltaram diante daquela boa intenção. E aqui temos — e este é o objeto maior desta postagem — um exemplo que Allan Kardec nos oferece diante das ideias de empreendimentos em prol do Espiritismo.
Para começar, ele leva em consideração os seguintes tópicos:
A ideia de uma caixa central e geral de socorro, formada entre os espíritas, já foi concebida e manifestada por homens animados de excelentes intenções. Mas não basta que uma ideia seja grande, bela e generosa; antes de tudo é preciso que seja exequível. Certamente temos dado mostras suficientes de nosso devotamento à causa do Espiritismo, para não ser suspeito de indiferença a seu respeito. Ora, é precisamente em razão de nossa própria solicitude que procuramos nos resguardar contra o entusiasmo que cega. Antes de empreender uma coisa, é preciso friamente calcular-lhe os prós e os contras, a fim de evitar reveses sempre deploráveis, que não deixariam de ser explorados por nossos adversários. O Espiritismo só deve marchar com segurança, e quando põe o pé num lugar deve estar seguro de pisar terreno firme. Nem sempre a vitória é do mais apressado, mas com muito mais probabilidade daquele que sabe esperar o momento propício.
Allan Kardec
Só com essas primeiras considerações, aprendemos com o codificador espírita uma lição de paciência e indicação do erro que é a pressa (o que não pode ser confundida com diligência, ou seja, a rapidez somada à eficiência). Há muita gente apressada querendo apressar o Movimento Espírita, sem a prudência necessária que assegura o sucesso dos projetos.
E as lições do professor continua...
Há resultados que só podem ser obra do tempo e da infiltração da ideia no espírito das massas. Saibamos, pois, esperar que a árvore esteja formada, antes de lhe pedir uma colheita abundante.
A seguir, ele vai esmiuçar todos os aspectos possíveis relativos ao projeto, com uma precisão incrível, que não podemos ignorar, mas devemos tomar como demonstração de eficiência para analisarmos nossos empreendimentos.
De repente, o que a princípio parecia uma excelente ideia mostrou-se insustentável diante das circunstâncias que se apresentavam, circunstâncias essas tão bem exploradas por Kardec, colocadas não com pessimismo — típico daqueles que generalizadamente gostam de destruir as ideias alheias — mas com responsabilidade. Tanto é que o próprio Kardec exprime a necessidade de o movimento espírita ser ativo e reformador:
De repente, o que a princípio parecia uma excelente ideia mostrou-se insustentável diante das circunstâncias que se apresentavam, circunstâncias essas tão bem exploradas por Kardec, colocadas não com pessimismo — típico daqueles que generalizadamente gostam de destruir as ideias alheias — mas com responsabilidade. Tanto é que o próprio Kardec exprime a necessidade de o movimento espírita ser ativo e reformador:
Então é preciso que, por medo, o Espiritismo fique estacionário? Não é agindo, dirão, que ele mostrará o que é, que dissipará as desconfianças e frustrará a calúnia? Sem nenhuma dúvida; mas não se deve pedir à criança o que exige as forças da idade viril. Longe de servir ao Espiritismo, seria comprometê-lo e expô-lo aos golpes e às gargalhadas dos adversários e misturar seu nome a coisas quiméricas. Certamente ele deve agir, mas no limite do possível. Deixemos-lhe, pois, tempo para adquirir as forças necessárias e então dará mais do que se pensa. Ele nem mesmo está completamente constituído em teoria; como querem que dê o que só pode ser resultado do complemento da doutrina?
Kardec então conclui que, naquelas circunstâncias, a ideia desse "caixa geral para obras de caridade" não convinha, e fez daquela situação uma ocasião exemplar para outros projetos:
Entretanto, para não deixar vago o problema da caridade — que foi o objeto elementar da proposição suscitada pelo Espírito Marie G... —, Kardec vai então apresentar uma contraproposta àquela ideia do caixa geral. E aqui está outro aprendizado para nós deixado pelo codificador: se uma primeira ideia não for boa ou realizável, que se busque uma nova e melhor proposta. No caso em questão, ao invés de estabelecer uma instituição formal — um "monumento de pedra", na fala de Kardec, que seria de complicada administração e duvidosa eficiência — que se semeie entre os espíritas ações solidárias individualizadas, pautadas na verdadeira caridade ("caridade no coração", diz Kardec).
E para que fique bem entendido essa conclusão a que Kardec chegou, é muito importante ler na íntegra o artigo publicado na Revista Espírita, coleção 1866 - julho: "Projeto de caixa geral de socorro e outras instituições para os espíritas".
Clique aqui para acessar a Revista Espírita - 1866 .
Bem, mas para além das circunstâncias apresentadas como obstáculos ao sucesso da referida ideia, podemos pegar o ensejo desse caso para considerar a postura de Allan Kardec inversa a práticas muito comuns no nosso Movimento Espírita atual.
O primeiro ponto é que ele, muito respeitosamente, leva em conta a ideia de uma entidade espiritual como uma sugestão comum, que pode ser boa e aplicável ou pode ser duvidosa ou inexequível diante da nossa realidade. Não há oraculismo no kardecismo, não é porque foi um Espírito que ditou que devamos aceitar total e passivamente. Senão, vejamos o que ele nos diz:
Reforçamos que a intenção aqui não é desestimular novas ideias em prol da Evangelização da Humanidade à Luz da excelsa seguridade que o Espiritismo nos dá, mas sim estimular ideias melhores, projetos mais consistentes, empreendimentos mais eficientes para propagar a Boa Nova da Terceira Revelação, tomando o exemplo estratégico de Allan Kardec — que, sem dúvidas, foi ao mesmo tempo um extraordinário pedagogo, empreendedor e marqueteiro.
Então, quais os nossos planos para 2019? O que podemos fazer de melhor para promover o Espiritismo?
Sejam bem-vindas todas as ideias.
O que acaba de ser dito a respeito da criação de uma caixa geral e central de socorro, aplica-se naturalmente aos projetos de fundação de estabelecimentos hospitalares e outros. Ora, aqui a utopia é ainda mais evidente. Se é fácil lançar um projeto sobre o papel, o mesmo não se dá quando se chega às vias e meios de execução. Construir um edifício ad hoc já é muito; e quando estivesse pronto, seria preciso provê-lo de pessoal suficiente e capaz, e depois assegurar a sua manutenção, porque tais estabelecimentos custam muito e nada rendem. Não são apenas grandes capitais que se exigem, mas grandes rendimentos. Admitindo-se, contudo, que à força de perseverança e de sacrifícios se chegasse a criar um pequeno modelo, quão mínimas não seriam as necessidades a que poderia satisfazer, em relação à massa e à disseminação dos necessitados em um vasto território! Seria uma gota d’água no oceano; e, se há tantas dificuldades para um só, mesmo em pequena escala, seria muito pior se se tratasse de os multiplicar. Na realidade, o dinheiro assim empregado não adiantaria, pois, senão a alguns indivíduos, ao passo que, judiciosamente repartido, ajudaria a viver um grande número de infelizes.
Entretanto, para não deixar vago o problema da caridade — que foi o objeto elementar da proposição suscitada pelo Espírito Marie G... —, Kardec vai então apresentar uma contraproposta àquela ideia do caixa geral. E aqui está outro aprendizado para nós deixado pelo codificador: se uma primeira ideia não for boa ou realizável, que se busque uma nova e melhor proposta. No caso em questão, ao invés de estabelecer uma instituição formal — um "monumento de pedra", na fala de Kardec, que seria de complicada administração e duvidosa eficiência — que se semeie entre os espíritas ações solidárias individualizadas, pautadas na verdadeira caridade ("caridade no coração", diz Kardec).
O Espiritismo — diz o Espírito que ditou a comunicação acima — deve firmar-se e mostrar o que é por um monumento durável, erguido à caridade. Mas de que serviria um monumento à caridade, se a caridade não estiver no coração? Ele ergue um mais durável que um monumento de pedra: é a doutrina e suas consequências para o bem da Humanidade. É nisto que cada um deve trabalhar com todas as suas forças, porque durará mais que as pirâmides do Egito.Quanta lição!
E para que fique bem entendido essa conclusão a que Kardec chegou, é muito importante ler na íntegra o artigo publicado na Revista Espírita, coleção 1866 - julho: "Projeto de caixa geral de socorro e outras instituições para os espíritas".
Clique aqui para acessar a Revista Espírita - 1866 .
Bem, mas para além das circunstâncias apresentadas como obstáculos ao sucesso da referida ideia, podemos pegar o ensejo desse caso para considerar a postura de Allan Kardec inversa a práticas muito comuns no nosso Movimento Espírita atual.
O primeiro ponto é que ele, muito respeitosamente, leva em conta a ideia de uma entidade espiritual como uma sugestão comum, que pode ser boa e aplicável ou pode ser duvidosa ou inexequível diante da nossa realidade. Não há oraculismo no kardecismo, não é porque foi um Espírito que ditou que devamos aceitar total e passivamente. Senão, vejamos o que ele nos diz:
Pelo fato de esse Espírito se enganar, segundo nós, sobre tal ponto, isto nada lhe retira de suas qualidades; incontestavelmente está animado de excelentes sentimentos. Mas um Espírito pode ser muito bom, sem ser um apreciador infalível de todas as coisas. Nem todo bom soldado é, necessariamente, um bom general.Ora, o nosso Movimento Espírita está cheio de iniciativas, só que lhe falta terminativa, ou, melhor, continuativa. No afã de — honestamente, quase sempre — promover atividades doutrinárias, não raro se cai na tentação de querer reinventar coisas, lançar modas e criar sensacionalismos que vingue no gosto popular. Precisamente nesse erro tem caído muitas crenças, no que determinadas instituições religiosas acabam por flexibilizar sua doutrina e liturgia para acomodar as necessidades individuais dos pretensos religiosos; tudo para agradar a todos. Tal absurdo não cabe no Espiritismo, que observa as Leis Naturais instituídas por Deus, com toda a sabedoria e justeza, pelo que são imutáveis, portanto, não se adapta ao gosto ou necessidades individuais.
Reforçamos que a intenção aqui não é desestimular novas ideias em prol da Evangelização da Humanidade à Luz da excelsa seguridade que o Espiritismo nos dá, mas sim estimular ideias melhores, projetos mais consistentes, empreendimentos mais eficientes para propagar a Boa Nova da Terceira Revelação, tomando o exemplo estratégico de Allan Kardec — que, sem dúvidas, foi ao mesmo tempo um extraordinário pedagogo, empreendedor e marqueteiro.
Então, quais os nossos planos para 2019? O que podemos fazer de melhor para promover o Espiritismo?
Sejam bem-vindas todas as ideias.
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