Descoberta histórica: "A Edição Zero de O Livro dos Espíritos"
Mais um grande trabalho de pesquisa realizado, envolvendo a colaboração de vários estudiosos espíritas: a descoberta da "edição zero" de O Livro dos Espíritos de Allan Kardec, que, no caso, adotara outro pseudônimo: "Villarius", edição essa, aliás, que se poderia chamar de "clandestina", uma vez que dispensou das formalidades exigidas para o registro e comercialização de uma obra naquela França de meados do século XIX.
Acompanhe mais esse achado:
Quem foi Villarius?
Antes do Depósito Legal da 1ª edição de 1857 de O Livro dos Espíritos, cujo registro na "Bibliografie de la France" aconteceu em 30/05/1857 [1], já circulava um prospecto de uma versão anônima (ou com pseudônimo?), que estava sendo impressa e aparentemente poderia ser comprada na Casa “Villarius” na rua Jacob, 35 [2]. A nota no Journal du Magnétisme, tomo XVI, nº 4, 2ª série, é de 25 de fevereiro de 1857, e diz, em tradução livre:
“(1) Este elemento é denominado espírito em uma obra anônima que está sendo impressa sobre o assunto em Paris e cujo prospecto nos foi entregue. Esta obra é intitulada: Os Livros dos espíritos ou Princípios da doutrina espírita escritos sob o ditado e por ordem dos espíritos superiores. Um vol. in-8. Preço: 3 fr. Chez Villarius, rua Jacob, 35.”
Mas neste endereço tínhamos apenas uma tipografia de Pierre Bascle [3] [4]. Seria “Villarius” um outro pseudônimo de Rivail, usado para correspondência? Talvez, pois no jornal Le Dimanche de 15 de novembro de 1857 [5] é dito também em tradução livre (os colchetes são nossos):
“Sr. Girard de Caudemberg (do Spectateur, anteriormente Assemblée nationale), Sr. Henri Delaage (do Courrier de Paris), Sr. Allan Kardec (do l’Univers), Sr. O Conde de Our... (de eu não sei o quê) [de Ourches], não reconhecem nos fenômenos da mesa que sobe e se sustenta no ar, da mesa que canta, da mesa que fala, da mesa que designa a pessoa mais amorosa da sociedade, eles não reconhecem lá mais do que os efeitos do poder espiritual, como fala o autor do Livro dos Espíritos Allan Kardec, também conhecido como Valérius [talvez Villarius], também chamado R... [Rivail].”
A. S. Morin em "Un nouveau révélateur" no La pensée nouvelle de 9 de junho de 1867 [6] também afirma:
“É a uma revelação semelhante que o Sr. Kardec deve o seu nome atual, antes deu à luz a vários outros: foi Denizot (sic), Rivail, Villarius...”.
Tal texto já havia sido identificado por G. Cuchet no livro Les Voix d'outre-tombe - Tables tournantes, spiritisme et société de 2012 [7, cap. VIII].
Portanto temos aí algumas provas circunstanciais que O Livro dos Espíritos poderia eventualmente ter circulado antes de 18 de abril de 1857, e de que Allan Kardec poderia ter usado nele o pseudônimo de Villarius. Fato é que parte já estava pronta em 11 de setembro de 1856, conforme se lê em Obras Póstumas em casa do Sr. Baudin: “Depois que procedi à leitura de alguns capítulos de O Livro dos Espíritos, relativos às leis morais, a médium escreveu espontaneamente (...)”.
Curioso também que o título no plural ("Os Livros dos Espíritos") só aparece nos Prolegômenos da 1ª edição conhecida de 1857. Juntando a Introdução a eles, temos 32 páginas, ou seja, exatamente dois cadernos de 16 páginas no formato in-8, que talvez, poderiam ter sido distribuídos antes.
O artigo no Le Dimanche, escrito por “Sábado” e enviado para “Domingo”, menciona “espiritismo”, “magnetismo”, “32 casas em que diariamente 15 a 20 pessoas fazem as mesas levitarem, falarem e cantarem”, “Frédéric Soulié” [8] [9], Sra. (sic) Japh... [Japhet] [10] [11], etc. Os editores-chefes do jornal eram G. Gérard e Émile Solié.
Agradecemos ao colega Wanderlei Santos dos Autores Espíritas Clássicos, pelas pesquisas nas diversas edições do Journal du magnétisme, e ao AKOL e OdK pela revisão.
Referências:
Fonte: CSI do Espiritismo.
Esta descoberta tem uma imensa importância para a História do Espiritismo. Primeiro, podemos considerar a "ousadia" do codificador do Espiritismo em editar um livro sem passar pelos ditames burocráticos, algo impensável para alguns estudiosos espíritas da atualidade, que se têm se utilizado dessa concepção para deslegitimar a 5ª edição "revisada, corrigida e aumentada de A Gênese, os Milagres e as Predições segundo o Espiritismo, publicada em 1869, pelo fato de não se ter encontrado o Depósito Legal desta edição — apesar de já sabermos que dezenas de outras publicações de Kardec não terem satisfeito todas as exigências legais da Lei vigente para a imprensa e literatura em geral (ver O caso A Gênese).
Temos também aí uma nova forma de Kardec se apresentar ao público. Antes de assumir o cognome definitivo, sabemos bem, a pessoa em questão era o Professor Rivail, cujo registro de nascimento o nomina "Denisard Hypolite Léon Rivail", mais tarde, em seu testamento, renomeado para "Hypolite Léon Denizard Rivail" (que é a que adotamos, em razão de ser a escolha pessoal dele); enquanto profissional da educação, ele assinava suas obras como "H.L.D. Rivail"; no seu empreendimento comercial em sociedade com Maurice Lachâtre (um banco para promoção de negócios), era o Sr. Rivail; já nas suas atividades contábeis do teatro Délassements Comiques, ele destacava o sobrenome "Denizard"; eis que, como pensávamos até então, ele assumiria uma nova alcunha para tocar a obra espírita: "Allan Kardec". Ocorre que agora temos mais um apelido incluído nesta listagem: "Villarius".
Fazendo um estudo etimológico da palavra "Villarius", encontramos uma menção na toponímia da comuna francesa de Villard, no departamento de Haute-Savoie (normalmente aportuguesada para Alta Savoia) na Wikipédia em francês (veja aqui) que diz: "Le toponyme Villard dérive probablement du mot bas latin villarius, avec le suffixe -ard, signifiant « du domaine rural »". Ou seja, o nome daquela comuna deriva provavelmente da palavra "villarius", do latim vulgar, acrescida do sufixo "ard" correspondente a "de propriedade rural". É da mesma raiz de que foi extraída o termo "vila" do nosso português, significando um conjunto de casas agrupadas. Curioso é que "vilão" vem daí: alguém que vem na vila, cujo preconceito consagrou a ideia de que gente que vem de tal lugar seja de caráter baixo, algo do tipo ignorante, delinquente. Nosso confrade Charles Kempf nos apontou uma coisa bem curiosa a respeito dessa inscrição VILLARIUS: a aproximação de suas letras com o sobrenome RIVAIL; não forma um anagrama perfeito (estão sobrando as letras U, S e o L repetido), mas talvez o professor quisesse de alguma forma sinalizar uma reorganização dos caracteres do seu principal sobrenome.
OBS: Toponímia = estudo da origem dos nomes próprios de lugares; Comuna = mais ou menos equivalente a "Município" no Brasil; Departamento = mais ou menos equivalente a "Estado" no Brasil; Latim vulgar = a língua falada pelo povão, um pouco diferente do latim falado pela elite; Anagrama = espécie de jogo de palavras criado com a reorganização das letras de uma palavra ou expressão para produzir outras palavras ou expressões, utilizando todas as letras originais exatamente uma vez.
Qual teria a pretensão de o Prof. Rivail publicar esta "edição zero", e de forma a preservar seu nome? — A hipótese que arriscamos é a de que ele faria com isso uma primeira sondagem à respeito da recepção do público em relação ao seu trabalho.
E quanto à substituição do pseudônimo (de Villarius para Allan Kardec)? — Pensamos que ele quis fazer um certo "agrado" aos amigos espirituais que lhe revelaram sua vida passada entre os celtas, quando teria sido um sacerdote druida justamente com o nome "Allan Kardec".
Mais adiante apresentaremos aqui um apanhado histórico sobre a repercussão desta "edição zero", especialmente entre os magnetistas e neoespiritualistas de Paris, que estavam firmando seus experimentos acerca das Mesas Girantes e outras sessões mediúnicas.
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