segunda-feira, 11 de setembro de 2017

O debate entre Allan Kardec e um padre católico


É como que o imaginário popular levante a questão de como era Allan Kardec, o codificador espírita, nas suas tratativas diárias, com os confrades, com os curiosos e, em especial, com os críticos e detratores assumidos do Espiritismo. Qual a sua postura e argumentos nos embates orais do dia a dia? Enfim, como era conversar com o codificador da Doutrina Espírita?

Uma de suas atividades corriqueiras, desde que tomou para si o vocacionado espírita, era a de receber visitas de pessoas interessadas — ou supostamente isso — em conhecer a doutrina e o andamento dos trabalhos da Sociedade Espírita de Estudos Espíritas, da qual Kardec era o fundador e presidente. E vinha gente de toda parte do mundo, de todos os gêneros e com as mais diversas expectativas.

Sua amiga e biógrafa Anna Blackwell (saiba mais) assim o descreveu: "Grave, lento no falar, modesto nas maneiras, embora não lhe faltasse certa calma dignidade, resultante da seriedade e da segurança mental, que eram traços distintos de seu caráter. Nem provocava nem evitava a discussão, mas nunca fazia voluntariamente observações sobre o assunto a que havia devotado toda a sua vida, recebia com afabilidade os inúmeros visitantes de toda a parte do mundo que vinham conversar com ele a respeito dos pontos de vista nos quais o reconheciam um expoente, respondendo às perguntas e objeções, explanando as dificuldades, e dando informações a todos os investigadores sérios, com os quais falava com liberdade e animação, de rosto ocasionalmente iluminado por um sorriso genial e agradável, conquanto tal fosse a sua habitual seriedade de conduta que nunca se lhe ouvia uma gargalhada."

Com isso, não é difícil que nos venha o desejo de algo parecido com "ter uma conversa com Kardec" ou pelo menos "assistir ao um diálogo entre o mestre lionês e um daqueles visitantes"...

Pois bem, encontramos no livro O Que é o Espiritismo a transcrição de três diálogos de Kardec com três diferentes visitantes, denominamos de "o crítico", "o cético" e, o terceiro, "o padre". Por essas conversações, podemos ter uma ideia de como era conversar com o codificador. O diálogo que destacamos, embora os demais não sejam de menor valor, é justamente o do abade católico, cuja identidade Kardec preservou, certamente, por respeito. Não há datação e nem identificação do local do encontro.

Segundo a transcrição de Kardec, o clérigo o interpela dizendo "O senhor me permite lhe dirigir algumas perguntas?", ao que o espírita responde: "Com prazer, reverendo; mas, antes de responder a elas, creio ser útil fazê-lo conhecer o terreno em que me devo colocar perante ti. Primeiro que tudo, devo declarar que não tenho a pretensão de convertê-lo às nossas ideias. Se desejar conhecê-las pormenorizadamente, encontrará as ideias espíritas nos livros em que estão expostas; neles poderá estudá-las à vontade e aceitá-las ou rejeitá-las. O Espiritismo tem por fim combater a incredulidade e suas terríveis consequências, fornecendo provas patentes da existência da alma e da vida futura; ele se dirige então àqueles que em nada creem ou que de tudo duvidam — e o número desses não é pequeno, como muito bem sabem; os que têm fé religiosa e a quem esta fé satisfaz, não têm necessidade dele. Àquele que diz: “Eu creio na autoridade da Igreja e não me afasto dos seus ensinos, sem nada buscar além dos seus limites”, o Espiritismo responde que não se impõe a pessoa alguma e que não vem forçar nenhuma convicção. A liberdade de consciência é consequência da liberdade de pensar, que é um dos atributos do homem; e o Espiritismo, se não a respeitasse, estaria em contradição com os seus princípios de liberdade e tolerância. A seus olhos, toda crença, quando sincera e não permita ao homem fazer mal ao próximo, é respeitável, mesmo que seja errônea. Se alguém fosse arrastado por sua consciência a crer, por exemplo, que é o Sol que gira ao redor da Terra, nós lhe diríamos: “Acredite se quiser, porque isso não fará que esses dois astros troquem os seus papéis”; mas, assim como não procuramos violentar-lhe a consciência, respeite também a nossa. Porém, se transformar uma crença, de si mesma inocente, em instrumento de perseguição, ela então se tornará nociva e pode ser combatida. Tal é, senhor abade, a linha de conduta que tenho seguido com os ministros dos diversos cultos que a mim têm se dirigido. Quando eles me interpelaram sobre alguns pontos da Doutrina, dei-lhes as explicações necessárias, isentando-me de discutir certos dogmas de que o Espiritismo não se quer ocupar, em razão de todos os homens serem livres em suas apreciações; nunca, porém, fui procurá-los no propósito de lhes abalar a fé por meio de qualquer pressão. Àquele que nos procura como irmão, nós o acolhemos como tal; ao que nos repele, deixamo-lo em paz. É o conselho que não tenho cessado de dar aos espíritas, porque não concordo com os que se arrogam a missão de converter o clero. Sempre lhes tenho dito: Semeiem no campo dos descrentes, onde há colheita a fazer. O Espiritismo não se impõe, porque, como eu disse, respeita a liberdade de consciência; ele sabe também que toda crença imposta é superficial e só desperta as aparências da fé e nunca a fé sincera. Ele expõe seus princípios aos olhos de todos, de modo a cada um poder formar opinião segura. Os que lhe aceitam os princípios — sejam sacerdotes ou leigos — o fazem livremente e por achá-los racionais; mas nós não ficamos querendo mal aos que se afastam da nossa opinião. Se hoje há luta entre a Igreja e o Espiritismo, nós temos consciência de não havê-la provocado."

E o diálogo prossegue e o vigário vai perguntar sobre vários conceitos doutrinários e, obviamente, objetar o Espiritismo ao mesmo tempo em que tentar justificar a sua religião. Ele levanta questões como a autoridade da igreja católica, a suposta proibição de Moisés para a prática mediúnica, a necessidade de uma nova doutrina (como a do Espiritismo) frente aos dogmas do catolicismo, etc. É um debate interessante, sem dúvidas.


O codificador espírita é firme em suas convicções, sem deixar de lado a gentileza e o respeito com o interlocutor. Não o ofende diretamente, mas também não abdica de posicionar-se claramente, o que define que cada qual está sob uma bandeira que converge em certos pontos e são totalmente antagônicas noutros. É, de certa maneira, uma postura árida para os padrões atuais do chamado "politicamente corrento". Enquanto muitos poderiam supor ser mais "polido" ceder e "se misturar" para "não magoar", Kardec assume o caráter "acertivo", bem definido e seguro de suas convicções. É como nos moldes do "Sim, sim e não, não" de Jesus (Mateus, 5:37).

Acesse agora mesmo a nossa Sala de Leitura e confira no livro O Que é o Espiritismo, capítulo I - "Pequena conferência espírita" os três referidos diálogos, e saboreie mais essa agradável leitura kardequiana.

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