quarta-feira, 10 de novembro de 2021

Duras, mas necessárias reflexões sobre a morte da cantora Marília Mendonça

Na última sexta-feira (5 de novembro, 2021) o Brasil entrou em choque e logo mais em comoção generalizada em decorrência da queda de um avião bimotor particular que resultou na morte da cantora Marília Mendonça e mais quatro pessoas, que viajavam de Goiânia (capital do Estado de Goiás) a Caratinga (Minas Gerais) local da queda, a cerca de 2 km da pista de aterrissagem. A repercussão desse acidente nos enseja várias reflexões  muitíssimo duras, porém necessárias, se quisermos colher bons frutos da tragédia. Ei-las adiante.

Foto: Carlos Eduardo Alvim/TV Globo

A surpresa da morte

A comoção generalizada que tomou conta do país tem, em parte, a ver com a surpresa da morte, como se o morrer fosse um fenômeno raro — tal um meteoro que caísse em nosso planeta. O espanto que isso causa nas pessoas comuns revela uma triste realidade: o despreparo, a falta de uma educação para a morte, a ignorância e o desleixo popular pelas importantes questões filosóficas que dizem respeito a todos nós — sem exceção.

Este impacto, frequente em nossos dias, certa vez também foi sentido por Allan Kardec, por ocasião da morte de Pierre-Paul Didier, seu amigo e editor de várias edições das obras básicas do Espiritismo. Disse o codificador da Doutrina Espírita, num discurso em homenagem àquele confrade:

"Há nesta morte, por assim dizer fulminante, um grande ensinamento, ou melhor, uma grande advertência: é que nossa vida se mantém por um fio, que pode romper-se quando menos esperamos, pois muitas vezes a morte chega sem avisar. Assim adverte os sobreviventes para que estejam sempre preparados para responder ao chamado do Senhor e prestar conta do emprego da vida que Ele nos deu."
Revista Espírita, jan. de 1866: 'Necrólogo'

Quem igualmente tratou com justeza do assunto foi o memorável filósofo espírita José Herculano Pires em Educação para a Morte (ebook grátis aqui) chamando a atenção inclusive da deseducação das tradições gerais para um fenômeno tão natural e positivo, então colocado com todo o pesar, apavorando os espíritos e fortalecendo a cultura materialista ao supervalorizar a vida física em detrimento da consciência da vida espiritual:

"As religiões da morte falham nessa fase de transição, interpretando negativamente o fenômeno positivo e renovador que sustenta a juventude do mundo. Por isso Jesus ensinou que aqueles que se apegam à própria vida a perderão, e os que a perdem, na verdade, a ganharão. A vida em abundância dos Evangelhos é a integração do homem na plenitude da sua consciência divina."
Educação para a Morte, J. Herculano Pires - cap. 2

Em Espiritismo, a morte é um evento natural e positivo, e aquele que se educa para morrer felizmente se educa para bem despertar no além-túmulo, sendo a Doutrina Espírita a sublime escola para tal fim; por outro lado, aqueles que ignoram essa realidade, a situação é outra e gradativamente mais penosa conforme sua materialização:

"Surpreendido de improviso pela morte, o Espírito fica atordoado com a brusca mudança que nele se operou; considera ainda a morte como sinônimo de destruição e de aniquilamento. Ora, porque pensa, vê, ouve, tem a sensação de não estar morto. (...) Para aquele cuja consciência ainda não está pura, a perturbação é cheia de ansiedade e de angústias, que aumentam à proporção que ele da sua situação se compenetra."
O Livro dos Espíritos, Allan Kardec - comentário à questão 165

Falta à nossa cultura comum, portanto, um despertamento para os princípios filosóficos, a reflexão séria sobre o sentido da vida e, por conseguinte, a necessidade da morte. A esse respeito, completaria Herculano:

"A Educação para a Morte não é nenhuma forma de preparação religiosa para a conquista do Céu. É um processo educacional que tende a ajustar os educandos à realidade da Vida, que não consiste apenas no viver, mas também no existir e no transcender."
Educação para a Morte, J. Herculano Pires - cap. 2


O lamento pela morte prematura

A morte de Marília Mendonça, além de inesperada, afronta ao cotidiano das pessoas comuns em razão de sua jovialidade — apenas 26 anos — e, dizem, de todo um futuro promissor, do qual ela pudesse gozar do sucesso que adquirira em sua carreira de cantora, aliás no apogeu, sendo ela o grande ícone de uma geração que revolucionou a música brasileira com um gênero batizado de "feminejo" (sertanejo feminino); ela fora condecorada pela mídia a "rainha da sofrência". É, em suma, uma morte daquelas que revoltam as massas, levando as pessoas a colocarem em questão até mesmo a justiça, a bondade e a sabedoria de Deus. Por que arrancar-lhe de um sucesso pelo qual ela lutou com tanta dedicação? Por que ela e não tanta gente cretina que tem no mundo, tantos malfeitores, corruptos, assassinos sanguinários etc...?

Aqui, mais uma vez, evidencia-se a ignorância das questões maiores da vida. Sobre perdas de pessoas amadas, sobre mortes prematuras e mortes de pessoas "boas" em lugar de "criminosos", que prosperam em saúde e disposição para seus maus intentos, bem nos ensina a Doutrina Espírita, exemplarmente no capítulo V de O Evangelho segundo o Espiritismo (ebook aqui). Não falta, pois, o alerta enérgico dos Espíritos sobre esse pensamento medíocre, de medir Deus pelos valores terrenos, de avaliar a justeza das coisas pelos interesses materialistas:

"Homens! É nesse ponto que precisam se elevar acima do materialismo da vida, para compreenderem que muitas vezes o bem está onde julgam ver o mal, a sábia previdência onde pensam aproximar a cega fatalidade do destino. Por que avaliar a justiça divina pela sua? Podem supor que, por mero capricho, o Senhor dos mundos se aplique a lhes infligir penas cruéis? Nada se faz sem um fim inteligente e, seja o que for que aconteça, tudo tem a sua razão de ser. Se observassem melhor todas as dores que vêm até vocês, nelas encontrariam sempre a razão divina, razão regeneradora, e os seus miseráveis interesses se tornariam de consideração tão insignificante que os atirariam para o último plano."
O Evangelho segundo o Espiritismo - cap. V, item 21

Nossa sociedade está tão engolida pela cultura materialista que não vê senão o que satisfaz às aspirações de um sucesso nesse mundo efêmero; ela está tão hipnotizada nas coisas mundanas que parece não ter o mínimo discernimento sobre o que realmente dura e importa para o seu espírito, tampouco para ver numa tragédia como essa um benefício, talvez, por exemplo, o de livrar a entidade que outrora animara a identidade da falecida cantora de graves comprometimentos morais dos quais seu espírito iria se amargurar de remorsos por anos ou séculos, porque — é preciso que se diga o hall da fama, especialmente no meio artístico, atualmente é o da desgraça para o Espírito; o chamado mundo das celebridades não passa de um teatro de competição materialista, falsidade, de ostentação, luxúria, drogas e outras pragas morais das quais poucos conseguem escapar ilesos. O pior é que esses "ícones", esses influenciadores, esses "modelos de vida" acabam arrastando multidões para as mesmas desgraças de que sofrem.

Definitivamente, é bom que sobretudo os mais jovens saibam, o status das pessoas nesse mundo não representa a sua real situação espiritual. As pessoas "belas" e "empoderadas" nessa vida carnal não se acharão necessariamente bonitas e poderosas no despertar da vida pós-morte.

Se para os que estão mal encaminhados no mundo a morte prematura é quase sempre um livramento de que ninguém deveria se queixar, para uma pessoa boa a mesma morte não deixa de ser uma bênção, porque a recolhe de um palco dramático para um lugar certamente melhor.

A mediunidade nos deu inúmeros exemplos de Espíritos que, recém-desencarnados, só encontraram a decepção e a angústia, depois de uma vida de frivolidades, tal esse testemunho:

"O orgulho me perdeu na Terra. Quem poderia compreender o nenhum valor dos reinos da Terra, se eu o não compreendia? O que eu trouxe comigo da minha realeza terrena? Nada, absolutamente nada. E, como que para tornar mais terrível a lição, ela nem sequer me acompanhou até o túmulo! Fui rainha entre os homens e julguei que iria entrar no reino dos céus como uma rainha. Que desilusão! Que humilhação, quando, em vez de ser recebida aqui qual soberana, vi acima de mim, mas muito acima, homens que eu julgava insignificantes e aos quais desprezava, por não terem sangue nobre! Oh, como então compreendi a improdutividade das honras e grandezas que com tanta avidez se valorizam na Terra!"
O Evangelho segundo o Espiritismo - cap. II, item 8

É urgente nos reeducarmos e educarmos nossas crianças e nossos jovens para os valores espirituais, a fim de livrá-los dessa desgraça que é a corrida à glória materialista.


O espetáculo do luto

À morte de Marília Mendonça se seguiu uma polêmica: o espetáculo do velório, a respeito do comportamento de vários artistas  desde palavreado e risos até roupas inapropriadas no velório.

É óbvio que, enquanto deseducadas sobre a morte, as pessoas em geral não têm o menor cerimonial para estar em um velório — que costuma ser um momento bastante delicado para Espíritos insuficientemente espiritualizados. Não é exagero imaginarmos o desgosto que os recém-desencarnados podem sentir ao assistirem ao cortejo do corpo que vestiam, ao sentirem certas vibrações que os presentes ali emitem — consciente ou inconscientemente. É gente querendo aparecer, gente querendo parecer mais íntimo da pessoa falecida, é gente que vai para policiar os outros...

É uma diversidade tamanha a de comportamentos nos funerais, quase todos desconhecendo que comumente o Espírito do morto está ali, bem ao lado, recebendo as impressões — boas ou más — de cada um dos presentes.

De um lado, há os ortodoxos que pregam as mais esdrúxulas "regras do luto"; do outro, há os "especialistas" que defendem a liberalidade apoiados na ideia de que, em face da morte de alguém importante, "cada um reage do seu jeito". Mas uma compreensão dos valores espirituais certamente nos encaminha ao justo meio, longe da ortodoxia e da liberalidade. Em seu livro Quem Tem Medo da Morte? (ebook) o saudoso Richard Simonetti nos convida a uma solenidade quando em um funeral:

"Quando  comparecemos  a  um  velório  cumprimos sagrado dever de solidariedade, oferecendo conforto à família. Infelizmente, tendemos a fazê‐lo pela metade, com a presença física, ignorando  o  que  poderíamos  definir  por  compostura espiritual,  a  exprimir‐se  no respeito  pelo  ambiente  e  no empenho de ajudar o morto."
Quem Tem Medo da Morte?, Richard Simonetti - "Velório"

Sem uma devida espiritualização, a tendência é ficarmos desnorteados e, ao invés de contribuirmos fluidicamente para um melhor refazimento do desencarnado em seu retorno ao ambiente espiritual, podemos até lhe infligir uma penosa perturbação.



Comoção massificada

Outra reflexão oportuna é a comoção massificada que se faz nas mídias, muitas vezes atendendo interesses apelativos. Veja-se que na queda daquele avião morreram ao mesmo tempo cinco pessoas e para o povão parece que apenas uma tinha nome — Marília Mendonça; os demais, quando citados aqui e acolá, nada mais eram do que um "piloto", um "copiloto", um "produtor", um "tio e assessor da cantora" (respectivamente: Geraldo Medeiros Júnior, Tarciso Pessoa Viana, Henrique Ribeiro e Abicieli Silveira Dias Filho).

Na mesma semana, quatro dias antes da morte da rainha do feminejo, precisamente na segunda-feira, 1 de deste novembro, havia falecido Nelson Freire, reputado um dos maiores pianistas do século, morte essa pouco noticiada e nenhuma significativa comoção.

Nelson Freire (1944-2021)

A morte por causas naturais e os seus 77 anos de idade seriam razões para se ignorar esta perda para o mundo da música?

Não, definitivamente, se o "mundo da música" de nosso tempo se baseasse numa arte voltada para a sublimação ser — e não para a comercialização do fútil entretenimento humana tal como é hoje em dia.

“Fazer música não é uma competição, você tem que estar tranquilo. Não tem que ter nem menos nem mais responsabilidade do que a música” — disse ele no filme-documentário Nelson Freire, dirigido por João Moreira Salles e lançado em 2003, mas que certamente pouca gente viu — e que, aliás, é muito fraco, incompatível com a altura do músico (para assinantes do GloboPlay).


Mineiro, de Boa Esperança, Nelson José Pinto Freire (18/10/1944 - Rio de Janeiro, 1/11/2021) foi um prodígio na música: começou a tocar piano aos três anos de idade e com cinco já fez o seu primeiro recital tocando Sonata para piano em Lá maior, K331 de Mozart. Ele apareceu como solista com as orquestras mais prestigiadas do mundo, incluindo a Orquestra Filarmônica de Berlim, a Orquestra Filarmônica de São Petersburgo, a Orquestra Real do Concertgebouw, a Orquestra Sinfônica de Londres, a Orquestra de Paris, a Orquestra Nacional da França, a Orquestra Filarmônica de Nova York, a Orquestra de Cleveland e Orquestra Sinfônica de Montreal, entre várias outras. Foi três vezes indicado ao Grammy Award, mas infelizmente não foi contemplado.

Nelson Freire realmente não é deste mundo da música. Para se ter uma ideia, a "gravação do ano" consagrada pelo Grammy 2021 é Everything I wanted, de Billie Eilish na qual a predominância é a de uma batida eletrônica, quase sem variação. Por sua vez, o nosso virtuoso pianista era intérprete de Mozart, Chopin, Bach, Brahms, dentre outros.

Saiba mais sobre Nelson Freire na Wikipédia.


Responsabilidade musical

E já que Nelson Freire nos falou sobre responsabilidade musical, vamos à reflexão derradeira, sem nenhuma intenção de denegrir a imagem de ninguém, mas não fugindo do compromisso espírita que temos com a ética e a moral que a nossa doutrina nos impõe. Teremos de falar então dos "sucessos" da rainha da sofrência.

Veja-se a mensagem da canção Coração Bandido que Marília Mendonça cantou em parceira com Maiara e Maraisa:

"(...) Coração bandido esse meu
Vive traindo você
Coração ingênuo é o seu
Todo esse tempo sem perceber
Eu não vou mais te esconder
Vou contar tudo pra você
Contar que beijo em outra boca
Dizer que já tem mais de um ano
Dizer também que eu te amo
Mas gosto de outra..."

Em Bebi, Liguei, encontramos as seguintes "pérolas" em versos:

"Acordei mais uma vez embriagado
E o seu cheiro impregnado na minha roupa (...)
Faltou coragem pra dizer que não
Bebi, liguei, parei no seu colchão
Chego apaixonado e saio arrependido
Amar por dois só me dá prejuízo..."

Ah, mas é só uma música — vão dizer —, nada demais!

Meu Deus! Quanta ingenuidade — para não dizer irresponsabilidade. O que estão fazendo com a música, essa sublime arte, é um crime moral sem tamanho. A música de massa (e é mesmo um sacrilégio chamar essas produções atuais de "música") tem sido um dos — senão o maior e mais eficiente — recursos que os Espíritos inferiores têm mais usado para obsediar as mentes fracas, embaladas pelos apelos instintivos, enquanto a verdadeira Música tem por destino elevá-las à sensibilidade espiritual.

O que é toada da moda senão uma apologia ao amor frívolo, à luxúria, à bebedeira, a tudo que afasta nossa consciência de Deus e dos valores espirituais, não? E é essa a trilha sonora da nossa vida atual, nos grandes eventos artísticos, nos canais de mídias, nas festinhas caseiras etc. São essas músicas rasteiras que vão embalar os natais, os aniversários, as bodas e tudo o mais de que até mesmo muitos espíritas convictos tomam parte passivamente. E olhe que o "feminejo" é um dos gêneros mais comportados do momento. Nem precisamos falar do que fizeram com o nosso samba, como o nosso forró pé-de-serra, com a música sertaneja...

Reiteramos que não é nosso objetivo nem nossa vontade denegrir a imagem de ninguém, tampouco perturbar o espírito da recém-falecida cantora, para quem enviamos as mais nobres vibrações, ao lado de solicitação para que os benfeitores espirituais a acolham e a animem na readaptação à vida espiritual, com a esperança de que ela tenha, em uma nova oportunidade reencarnatória, a chance de usar seus talentos musicais para enobrecer esta arte e inspirar a todos às grandezas da espiritualidade. Contudo, não nos omitimos à voz da consciência que nos incita às reflexões que ora propomos.

Duras reflexões, bem sabemos, mas necessárias. Nossa aspiração maior é a de que tenhamos um despertar consciencial para os nossos compromissos espirituais — ainda que seja por meio de tragédias.


3 comentários:

  1. Reflexão oportuna.
    "O único fim, o único objetivo de toda música é o louvor a DEUS e a recreação da alma. Quando isso se perde de vista, não pode haver mais verdadeira música, restam somente ruídos e gritos infernais". J.S.BACH

    ResponderExcluir
  2. Parabéns Ery! Um espírita que foge do lugar comum em simplesmente falar como estará o espírito de fulano ou sicrano, mas, que toca no essencial, ao refletir, com seriedade que a morte exige, sobre como vivemos hoje. Morreremos em breve, todos. Qual será a trilha musical de nossa partida? Obrigado por nos ajudar a ver a grandeza esquecida do Espiritismo!

    ResponderExcluir
  3. Parabéns! São considerações perfeitas!Amo essa doutrina MARAVILHOSA!Foi e é através dela que estou aprendendo a amar e perdoar!

    ResponderExcluir