O sucesso do filme Nosso Lar 2 e o zelo excessivo de alguns colegas espíritas


O filme Nosso Lar 2: Os Mensageiros estreou no dia 25 de janeiro e já entrou em destaque nos noticiários pelo seu sucesso: meio milhão de espectadores só no primeiro final de semana de exibição nos cinemas e um recorde entre os lançamentos nacionais desde 2019, quando teve início a pandemia de covid-19. É que estão dizendo portais como o da TV Cultura.

Ótimo! Isso quer dizer que as pessoas estão falando em mediunidade, vida espiritual e Espiritismo, certo? Certo! E isso é muito bom, pois mais gente está buscando um melhor entendimento sobre a espiritualidade, saindo da caverna do materialismo, correto? Correto!

Bem, mas nem tudo são flores...

O sucesso do longa-metragem espírita também serviu para requentar um antigo debate entre muitos dos nossos confrades, acerca da positividade da obra de André Luiz e, até mesmo, da qualidade da mediunidade de Chico Xavier, e determinados espíritas mais ortodoxos têm aproveitado o ensejo para promover uma verdadeira excomungação do que eles consideram como "heresia".




Entendendo a raiz do problema

A raiz da polêmica está num entendimento — a nosso ver equivocado  que alguns confrades têm de que todo o Espiritismo começou, terminou e se resume na obra de Allan Kardec; eles fazem da obra kardequiana uma versão espírita do que é a Bíblia para os cristãos tradicionais, a Torá para os judeus ou o Alcorão para os muçulmanos: e fazem uma rigorosa exegese do que Kardec disse, bem "ao pé da letra", e excluem tudo o mais que não tenha sido dito pelo codificador do Espiritismo — como se Kardec pudesse ter dito absolutamente tudo sobre o que é e o que não a verdade suprema do Universo.

Ora, jamais Allan Kardec teve essa pretensão; ao contrário, reconheceu suas limitações, fez correções ao longo de sua obra (prova de que anteriormente estava errado) e acentuou o caráter progressivo da doutrina, caminhando a par com o desenvolvimento da ciência, assegurando que viriam novas revelações e desdobramentos dos princípios fundamentais já trazidos.

Cena do filme Kardec, a História por trás do nome

Pretender que o Espiritismo se resuma "na letra de Kardec" é um extremismo, um fanatismo irrefletido da parte de alguns irmãos nossos, embevecidos pela luz de um entendimento que surpreendeu suas pobres capacidades; é como um brilho forte demais que cega os olhos desprevenidos.

Isso não quer dizer que qualquer novidade deva ser anexada à doutrina e que tomemos como espíritas as ideias mais fascinantes que um Espírito venha ditar a um médium, ou uma teoria das mais sofisticadas seja proposta pelo mais sábio dos espíritas de nosso tempo; não! Não é assim! As grandes verdades são reveladas paulatinamente, evidenciadas por diversas fontes, distribuídas por vários meios, de maneira a formar um movimento amplo e harmônico. E mesmo quando surge uma proposição ampla, é preciso escrutiná-la com todo o cuidado, verificando sua lógica e sintonia com os fundamentos doutrinários já estabelecidos. Nem oito, nem oitenta.


A obra de André Luiz

Sob a orientação do Espírito Emmanuel (então mentor de Chico Xavier), o recém-desencarnado André Luiz se apresenta ao médium mineiro com a intenção de narrar suas experiências no mundo espiritual desde seu último retorno à pátria invisível; como ele próprio conta, é um neófito, um aprendiz da ciência superior, depois de uma vivencia carnal como materialista e alheio à espiritualidade.

Para a sua narração, optou pelo estilo literário dos romances, compondo uma coleção de 14 obras, intitulada "A vida no mundo espiritual"; principia sua saga com Nosso Lar (1943), segue com Os Mensageiros e continua com os demais romances, pelos quais ele conta como foi sua morte e seu despertar no mundo espiritual. Nesse ínterim, ele descreve o umbral, as colônias espirituais e suas formas "materializadas", com construções, máquinas, veículos de transporte, moeda (bônus-hora) e até comida. No cerne do enredo estão as lições morais colhidas pelos personagens ao longo de suas experimentais individuais e em contato com os semelhantes; a mensagem é de regeneração, encorajamento e discernimento em favor dos valores espirituais instituídos pela Lei Divina.


Quanto ao valor moral da obra, não há discussão; a questão crucial é sobre a concretude de todos esses elementos, no sentido de considerá-los uma descrição exata das coisas reais no mundo além ou interpretar tudo, ou uma parte, apenas como artigos fictícios ou representativos do que há lá. Em torno desse ponto capital há duas correntes extremas: uma abraça tudo muito literalmente e sem questionamento; a outra rejeita tudo prontamente.

De nossa parte, consideramos essas duas correntes de pensamento equivocadas. Certamente há muito "colorido literário" nas descrições de André Luiz, mas também não é o caso de imaginar que o mundo espiritual seja completamente desmaterializado. Longe disso, pois Kardec descreve que todo Espírito traz consigo um perispírito, que ele chama de corpo semimaterial; "semimaterial" é um jeito de dizer que esse corpo é físico, material mesmo, só que de outra natureza de matéria, não exatamente "carne e osso". Se é um corpo, ocupa espaço e habita uma dimensão igualmente física; logo, por que não pensar que haja outras coisas físicas lá também, por exemplo, casas e veículos? Aliás, o próprio Kardec propagandeou na sua Revista Espírita a bela casa de Mozart em Júpiter. A propósito, O Livro dos Espíritos fala em instâncias transitórias (questão 234 e seguintes).

Construções espirituais em uma cena do filme Nosso Lar

Um dos critérios adotados por Allan Kardec para validar as ideias espirituais é o que ele chamou de controle universal do ensino dos Espíritos, considerando a multiplicidade de fontes e comunicações (diversos Espíritos comunicantes e diversos médiuns, de diversas localidades) relatando ideias semelhantes. Ora, e não é bem verdade que muitos romances espíritas dão conta das mesmas descrições feitas por André Luiz? E isso por muitos médiuns, inclusive anteriormente a Chico Xavier.


A validade dos romances espíritas

Outra discussão acalorada é sobre a validade dos romances espíritas. Para alguns colegas espiritas os romances têm pouco ou nenhum valor; eles só admitem as chamadas obras dissertativas — que são textos diretos, didáticos, sem rodeios ou floreios poéticos e fictícios próprios da literatura romanceada. Consideramos essa opinião de uma pobreza de entendimento assustadora, pois basta uma rápida olhada em alguns exemplares da Revista Espírita editada por Allan Kardec para vermos o quanto ele apreciava esse gênero, já que ele fazia propaganda e recomendava fortemente livros desse tipo — e mesmo de títulos que pouco fossem alinhados com a totalidade doutrinária do Espiritismo; na verdade, bastava um elemento simples (a aparição de um fantasma, por exemplo) que levasse o leitor a pensar em qualquer coisa espiritualista para que Kardec o indicasse.

E para quem tiver alguma dúvida disso, favor consultar as obras indicadas no Catálogo Racional (baixar aqui) que, aliás, traz uma seção específica para este gênero, contendo várias indicações, ainda que o livro contenha muito pouco (ou praticamente nada) de Doutrina Espírita e em alguns casos esteja repleto de elementos fictícios e demasiados fantásticos, como as Histórias Extraordinárias de Edgar Allan Poe.


Por falar no Catálogo Racional, lemos na Apresentação da sua tradução, as seguintes reflexões, que julgamos oportunas:

"Não cremos ser desperdício destacarmos o gosto pelas artes e a fé de Kardec em que através das mais diversas expressões (romances, teatros, poesia, música...) o Espiritismo pudesse se disseminar mundo afora e penetrar mais fundo nos corações e almas dos homens. Nesse sentido, também faz bem ressaltarmos a importância dos romances, posto que não é raro nos depararmos com críticas de alguns confrades contra determinados livros desse gênero, cobrando-lhes com excessiva ferocidade uma pureza doutrinária que não vemos em Kardec. Pegue-se o exemplo de ficções tão variadas que ele faz questão de prestigiar por um detalhe por vezes bem ínfimo dentro da trama, um detalhe quase insignificante no contexto geral da obra e que só muito ligeiramente remeta o leitor a uma ideia espírita, mas apesar disso, e só por esse pequeno e ligeiro detalhe, ele coloca a obra como contributa da cultura espírita. E com razão, porque é com essas singelas contribuições, essas pequenas sementes, porém muito espalhadas, que vai se estabelecendo um padrão cultural de modo a formar o gênero artístico espírita, fazendo com que se torne comum, frequente e bem natural pensar em reencarnação, lei de causa e efeito na vida cotidiana, contato mediúnico etc. Além do que, os romances e os contos com temática espírita nos arrebatam ao caminho das emoções, levando-nos a ensaiar situações perfeitamente plausíveis e assim aprendermos a sentir a dor e os júbilos pessoais, mediante as consequências das más e boas ações a que estamos sujeitos praticar. Logo, abençoadas sejam as inspirações dos romancistas que plantam essas sementes de espiritualidade."

Mas alguns tecnocratas estão pretendendo instaurar uma versão da Inquisição da Igreja Católica da Idade Média no movimento espírita.

É por essas e outras que vale a pena lembrar estas palavras kardequianas:

"Se o Espiritismo pudesse ser retardado em sua marcha, não seria pelos ataques abertos de seus inimigos declarados, mas pelo zelo irrefletido dos amigos imprudentes."
Revista Espírita, junho de 1862.

Enquanto isso, nós vamos fazendo a nossa parte: divulgando a arte espírita e fomentando as ideias espiritualistas, exatamente como Kardec.

E aproveitando a oportunidade, destacamos uma matéria do portal Terra que já foi logo emendando a pergunta se haverá a continuação cinematográfica da série, escrevendo que "durante uma entrevista para a coluna de Sandro Nascimento, do portal Na Telinha, Assis afirmou que sua vontade é tirar do papel mais sequências para a franquia. Apesar de ainda não haver confirmação, o cineasta deseja comandar inúmeros outros episódios para a saga, ajudando, assim, a difundir a religião espírita para a pluralidade de culturas que é o Brasil." E então transcreveu o depoimento de Wagner de Assis:

"Eu vou trabalhar para isso, faz parte das minhas escolhas profissionais e espero que a gente possa continuar fazendo o Nosso Lar 3, 4 e 5. Assim como outros filmes que tenham esse tema presente e que o público gosta muito e já provou isso tantas vezes."

Portanto, nosso recado é para quem ainda não foi, que vá ver o filme, e que prestigie a produção e a divulgação do Espiritismo.

Comentários

  1. Caro Ery! Parabéns pelas suas sensatas considerações sobre os espíritas "mais realistas que o rei".

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  2. Texto de suma importância para reflexão e debate no meio espírita.

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  3. Um trabalho excelente, uma verdadeira contribuição aos estudantes da doutrina, gratidão à equipe!!

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