160 anos de O Evangelho segundo o Espiritismo, por Luís Jorge Lira Neto



Dando sequência à nossa série comemorativa pelos 160 anos do lançamento de O Evangelho segundo o Espiritismo de Allan Kardec, colocamos para a apreciação geral mais um excelente artigo temático, este assinado por um dos mais competentes estudiosos do Espiritismo em nosso tempo: nosso amigo alagoano, mas residente em Recife - PE, Luís Jorge Lira Neto, doutorando em Ciência da Religião pela UNICAP, membro efetivo do Instituto Arqueológico Histórico Geográfico Pernambucano, membro da Associação Brasileira de Divulgadores do Espiritismo (ABRADE) e colaborador da Associação Espírita Casa dos Humildes na Veneza Nordestina.

Neste texto primoroso, Luís Lira nos oferece uma reflexão ímpar sobre o nome original do livro que estamos homenageando, conforme a publicação da sua primeira edição em 1864. E mais, o articulista nos convida a considerar que talvez o título "Imitação do Evangelho segundo o Espiritismo" fosse não apenas bem aplicado, mas muito mais preciso que o seu substituto, que é o título que conhecemos hoje. Vamos então conferir e mergulhar nesse pensamento, com espírito crítico e alma aberta para justas cogitações.

Confira abaixo!


Imitação do Evangelho Segundo o Espiritismo
Luís Jorge Lira Neto
luis.lira.al@gmail.com

Nesse mês e ano comemora-se os 160 anos da publicação do livro Imitação do Evangelho Segundo o Espiritismo, abril de 1864, contendo “a explicação das máximas morais do Cristo, sua concordância com o Espiritismo e sua aplicação às diversas posições da vida” (Kardec, 2014, folha de rosto). Considerada a terceira obra fundamental da Doutrina Espírita de autoria do francês Allan Kardec, o fundador do Espiritismo – doutrina filosófica do século XIX concebida como proposta conciliatória entre a ciência e a religião, a solução para o dilema da modernidade entre fé e razão. A abordagem aqui será pelo viés literário da obra, em relação ao título, vez que, há outras como a historiográfica, doutrinária, exegética e analítica discursiva. 

De início, um exame sobre o título original da obra que passou por um processo de discursão e de mudança. É fato conhecido na atualidade [1] que Kardec tinha anunciado a publicação de uma nova obra desde 1862, intitulada “As Vozes do Céu - leituras atuais sobre as diferentes partes do ensinamento moral dos espíritos”. Decerto, na Introdução da primeira edição do livro informou que “As instruções dos Espíritos são verdadeiramente as vozes do Céu que vêm esclarecer os homens e convidá-los à imitação do Evangelho” (Kardec, 2014, p. 24). Evidenciando sua intencionalidade em vincular as instruções dos Espíritos à simbólica expressão “as vozes dos céus”, colhida na mensagem que prefaciou a obra, que junto ao termo “imitação do Evangelho” explicita a influência dos Espíritos na obra e a finalidade do livro, qual seja, esclarecer passagens evangélicas e convidar a humanidade a imitá-las.

No entanto, a escolha do título Imitação do Evangelho Segundo o Espiritismo trouxe incômodos a algumas pessoas, principalmente, ao editor do livro, Sr. Didier [2]. Diante disso, Kardec aborda o assunto em um diálogo com o Espírito Dr. Demeure e o Espírito de Verdade (Comunicação/Diálogo, 1865, 217#) [3]:

Pergunta [Kardec]: Meu editor, o senhor Didier, insiste fortemente para que eu mude o título da Imitação do Evangelho. Ele afirma que a palavra imitação tem algo de muito místico e lembra por demais as obras católicas da Imitação de Jesus Cristo, da Imitação da Virgem [4] e outras; que isso prejudicaria a venda para o público alheio ao Espiritismo. Por outro lado, outras pessoas consideram este título excelente e me pedem para mantê-lo.

A questão é importante porque diz respeito ao sucesso da obra, e é sobre este ponto que gostaria de uma opinião.

[...]

Pergunta [Kardec]: Apelo ao Espírito de Verdade.

Resposta [Espírito de Verdade]: [...] É preciso alterar o título da sua última obra.

Eu [Espírito de Verdade]: Eis [ilegível] categórico. Ao intitulá-la, por exemplo: A moral do Evangelho segundo o Espiritismo, ela se enquadrará melhor com o que está por vir e que terá como título: Os milagres e as predições do Evangelho segundo o Espiritismo; será mais bem compreendido em sequência.

A resposta do Espírito de Verdade converge para a necessidade de se alterar o título da obra de Kardec, o que ocorreu na segunda edição quando foi adotado O Evangelho Segundo o Espiritismo. Em análise sucinta, verifica-se que o desconforto do editor com o primeiro título se prendeu mais à questão mercadológica do que doutrinária, vez que, a publicação em 1864 marcou o início do período religioso do Espiritismo, como definido por Kardec. Quanto ao aspecto místico do título, isso depende do referencial em que se apoiou para assim qualificá-lo.

O fato é que a publicação da obra provocou uma “uma dobradura” na orientação dos postulados doutrinários espíritas, inaugurados em O Livro dos Espíritos e continuados em O Livro dos Médiuns, nela, Kardec posicionou o Espiritismo na linha da tradição cristã, em concordância em pelo menos quatro itens: 1) é a Terceira Revelação da Lei de Deus, na linha judaico-cristã; 2) desenvolve, completa e explica a mensagem de Jesus; 3) é a chave para compreender muitos pontos do Evangelho, da Bíblia e dos outros autores sacros e; 4) é o Consolador prometido e o Espírito de Verdade o preside, tal qual anunciado por Jesus. A partir dela, as demais obras fundamentais seriam lançadas sob o período religioso com: O Céu e o Inferno ou A Justiça Divina Segundo o Espiritismo (1865), uma análise comparada das doutrinas pagã, católica e espírita; e A Gênese, Os Milagres e as Predições Segundo o Espiritismo (1868), um estudo do livro Gênesis (do Pentateuco Hebraico), complementado com as explicações dos Milagres e as Predições dos Evangelho. Portanto, ambas têm um conteúdo interpretativo de textos bíblicos à semelhança de O Evangelho Segundo o Espiritismo.

A relevância da análise do significado do título da obra é singular por este sintetizar o que o texto declara em relação ao seu conteúdo. O título original do livro – Imitação do Evangelho Segundo o Espiritismo tem uma significação mais complexa do que aparenta na sua simplicidade da imagem poética do termo Imitação. Decompondo os termos desse enunciado-sintético nos seus signos para expandir seus significados e, justapondo-os, compreender o que o título estabelece entre o conteúdo e a mensagem ao leitor:

1. Imitação – remete na atualidade a: “O ato de tomar alguém como modelo: imitar um mestre” (Imitation, 2024, tradução nossa), ou seja, agir de acordo com um referencial. [5]

2. Evangelho – é um gênero literário único donde existem quatro relatos: Mateus, Marcos, Lucas e João. É um exemplar sui generis, sem outras ocorrências na literatura. É a narração em prosa e poética, da vida e da morte de uma personagem, Jesus Cristo, mas apenas os fatos e feitos significativos para um determinado fim, sua própria narrativa (Oliva Neto, 2020, p. 11-15).

3. Segundo – na atualidade “em conformidade com algo, de acordo com, agir de acordo com sua vontade” (Selon, 2024, tradução nossa) [6].

4. Espiritismo – é uma ciência de observação e uma doutrina filosófica. Consiste nas relações do mundo material com os Espíritos e nas consequências morais decorrentes dessas relações (Kardec, 2011, p. 11).

Segundo Oliva Neto, o gênero antigo que mais se aproxima do Evangelho é o que se denomina hoje de “biografia” – relato dos fatos mais importantes da existência de uma pessoa para conhecer seu caráter e, se o caráter e ações dessa pessoa forem virtuosos, o leitor será convencido a imitá-los (2020, p. 12).

Assim, o significado do signo Imitação, no contexto do título justaposto ao significado do signo Evangelho, é seguir Jesus como modelo, pois, se depreende dos relatos do Evangelho que seu caráter e ações foram virtuosos, logo deve ser imitado. Isso está em linha com o quesito 625 de O Livro dos Espíritos que referencia Jesus como “guia e modelo” de perfeição moral para a Humanidade terrena:

625. Qual o tipo mais perfeito que Deus ofereceu ao homem, para lhe servir de guia e modelo?

- Vede Jesus.

Jesus é para o homem o tipo de perfeição moral a que pode aspirar a Humanidade na Terra. Deus no-lo oferece como o mais perfeito modelo e a doutrina que ele ensinou é a mais pura expressão de sua lei, porque estava animado do Espírito divino e foi o ser mais puro que já apareceu na Terra (Kardec, 1974, p. 271). 

Em seguimento à análise, verifica-se que não basta seguir a Jesus observando suas máximas morais, mas deve fazê-lo “segundo o Espiritismo”, em concordância com essa doutrina filosófica de consequências morais. E como seria essa concordância? Inicialmente, com a escolha e explicações dessas máximas usando o método espírita, o qual preceitua que para ser aceito um princípio válido, ou paradigma, faz-se necessário aplicar o Controle Universal do Ensino dos Espíritos, detalhado no item II da Introdução do livro, o que originou questionamentos por parte de alguns estudiosos, por entenderem que esse assunto caberia melhor em O Livro dos Médiuns, no capítulo Do Método. Kardec, provavelmente, o inseriu em O Evangelho Segundo o Espiritismo com o propósito de apresentar os parâmetros sob os quais elaborou este livro de doutrina.

O método consiste em duas etapas para validação de um ensino ou revelação dos Espíritos: 1) “O primeiro controle, é, incontestavelmente, o da razão, ao qual é preciso submeter, sem exceção, tudo o que venha dos Espíritos” (Kardec, 2014, p. 26). Seria o bom senso utilizando-se de uma lógica rigorosa e de dados positivos, obtidos por método científico (as vozes da humanidade terrena) – a análise discursiva das mensagens pelo critério da racionalidade. 2) o segundo controle está na “concordância que exista entre as revelações que eles façam espontaneamente, por meio de grande número de médiuns estranhos uns aos outros, e em diversos lugares” (Kardec, 2014, p. 27), é o da concordância dos ensinos dos Espíritos ditos espontaneamente (as vozes dos céus) – a análise de conteúdo das mensagens espíritas pelo critério da similaridade. 

Depois de validada a informação/revelação pelo duplo critério – o da lógica e o da concordância dos ensinos, atendendo seus condicionantes – os dados positivos e as revelações espontâneas diversificadas, procede-se com o comparativo aos princípios básicos do Espiritismo já estabelecidos nas obras fundamentais da Doutrina Espírita – o padrão de aferição. Pode-se inferir, então, que as Instruções dos Espíritos colocadas por Kardec no livro passaram por esse método de validação. 

De acordo com a análise acima, entende-se que o título original da obra, Imitação do Evangelho Segundo o Espiritismo estava adequado ao objetivo, à finalidade e à estrutura do livro. A análise textual dos signos e dos significados apresenta, uma possível significação do título:

Imitar Jesus, por ser o guia e modelo para a humanidade terrena, segundo as máximas morais extraídas do Evangelho pelo método espírita e em concordância com os princípios básicos do Espiritismo. 

Se é Imitação do Evangelho a seleção das narrativas deve: 1º) ter apenas as de teor ético, porque é terreno neutro das controvérsias; 2º) ter o critério da universalidade, porque é para uso de todos; 3º) abranger as circunstâncias da vida pública e particular, porque é uma regra de conduta prática, e; 4º) ter um roteiro para a felicidade futura, porque é o desvelar da vida espiritual.

Se é Segundo o Espiritismo tem que: 1º) aplicar o método científico, porque é ciência de observação; 2º) concordar com seus princípios fundamentais, porque é doutrina filosófica; 3º) ter consequências morais, porque é do domínio da ética e; 4º) convergir com a linha histórico-cultural, judaísmo e cristianismo, porque é a “Terceira Revelação da Lei de Deus”.

A própria estrutura do texto representa essas características. Segue uma estrutura tripartite com: 1º) Textos do Evangelho selecionados segundo critérios descritos acima, 2º) Dissertação de Kardec que analisa o tema sob o ponto de vista do Espiritismo e, 3º) Instruções Espíritas, mensagens instrutivas dos Espíritos referentes ao assunto, selecionadas por Kardec segundo o Critério Universal do Ensino dos Espíritos. Esse esquema está correlacionado com o objetivo da obra, materializada na seleção das máximas do Cristo nos textos do Evangelho, em concordância com o Espiritismo, segundo a análise de Kardec e sua aplicabilidade na vida cotidiana, exemplificada nas mensagens espirituais. Segundo o autor, a obra é de interesse geral, todos podem obter ensinamentos para conformação de “sua conduta pessoal à moral do Cristo” e as instruções dos Espíritos são um convite à “imitação do Evangelho” (Kardec, 2014, p. 24).

Por essa análise, este livro é um código de conduta universal, com base na ética extraída da narrativa dos ditos e feitos de Jesus – O Evangelho, em concordância com os pressupostos espíritas – O Espiritismo, o que levará, incondicionalmente, a humanidade para uma Nova Era de paz e harmonia, por estar solvido o conflito entre Ciência e Religião.


Notas

[1] Ver entrevista de Adair Ribeiro Júnior para o Blog de Bruno Tavares. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=TF_ZKMizXCo&t=1498s. Acesso em: 14 abr. 2024.

[2] Pierre-Paul Didier (1800-1865) foi editor e diretor da Livraria Didier, espírita e amigo de Allan Kardec, membro da Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas. Editor as primeiras obras fundamentais do Espiritismo. Disponível em: https://www.luzespirita.org.br/index.php?lisPage=enciclopedia&item=Pierre-Paul%20Didier. Acesso em: 21 abr. 2024.

[3] Manuscrito do acervo do Projeto Allan Kardec, da Universidade Federal de Juiz de Fora, Documento número #217.

[4] A exemplo dos livros Imitação de Cristo e A Imitação da Bem-aventurada Virgem Maria, escritos no século XV pelo monge alemão Tomás de Kempis, que pregava uma vivência religiosa nos moldes de humildade e comunhão de Jesus de Nazaré, muito popular no meio católico. O primeiro foi traduzido para o francês por Lamennais, padre, filósofo, escritor e político francês, que contribuiu em Espírito nas obras fundamentais do Espiritismo. Maiores informações no Portal Luz Espírita. Disponível em: https://www.luzespirita.org.br/index.php?lisPage=enciclopedia&item=Lamennais. Acesso em: 16 abr. 2024.

[5] Une imitation de cris d'animaux. 2. Action de prendre quelqu'un pour modèle : Imitation d'un maître.

[6] Une conformité à quelque chose ; conformément à : J'ai agi selon vos désirs.


Referências

CAVALLARI, Marcelo Mursa. Os evangelhos: uma tradução. Cotia, SP: Ateliê Editorial; Araçoiaba da Serra, SP: Mnēma, 2020.

[COMUNICAÇÃO/DIÁLOGO], 1865. Disponível em: http://projetokardec.ufjf.br/item-pt/?id=217. Acesso em: 15 abr. 2024. Projeto Allan Kardec.

IMITATION. In: Dictionnaires français Larousse. Disponível em: https://www.larousse.fr/dictionnaires/francais/imitation/41662. Acesso em: 20 abr. 2024.

KARDEC, Allan. Imitação do evangelho segundo o espiritismo. Tradução de Evandro Noleto Bezerra. Brasília: FEB, 2014.

KARDEC, Allan. O que é o espiritismo. Rio de Janeiro: Federação Espírita Brasileira, 2011.

KARDEC, Allan. O livro dos espíritos. 33. ed. São Paulo: LAKE, 1974.

OLIVA NETO, João Angelo. Prefácio. In: CAVALLARI, Marcelo Mursa. Os evangelhos: uma tradução. Cotia, SP: Ateliê Editorial; Araçoiaba da Serra, SP: Mnēma, 2020.

SELON. In: Dictionnaires français Larousse. Disponível em: https://www.larousse.fr/dictionnaires/francais/selon/71921. Acesso em: 20 abr. 2024.


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Lembrando que a obra O Evangelho segundo o Espiritismo de Allan Kardec está disponível livremente disponível para download na nossa Sala de Leitura.


Veja aqui os artigos anteriores da série especial 160 anos do lançamento de O Evangelho segundo o Espiritismo.
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