segunda-feira, 22 de abril de 2024

160 anos "O Evangelho segundo o Espiritismo", por Carlos Seth Bastos



Dando seguimento à nossa série sobre os 160 anos do lançamento de O Evangelho segundo o Espiritismo de Allan Kardec, o artigo da vez é o do nosso confrade Sir CSI, Carlos Seth Bastos (Jacareí - SP), grande pesquisador espírita, autor de importantes livros historiográficos para a nossa doutrina e diretor da fanpage CSI - Imagens e registros históricos do Espiritismo no Facebook, que já é uma referência em matéria de História Espírita.

Para começar, ele levanta uma questão bastante relevante: a imprecisão do dia exato do lançamento da obra que estamos destacando nesta série de artigos, mas o enfoque principal é outro, de ordem filosófica. Pois é! O nosso amigo não tem apenas "história" pra contar; ele é multiversado! Por isso, vale a pena conferir o texto dele, que ofertamos a seguir:


Ética teórica e prática moral do espiritismo

Carlos Seth Bastos

O movimento espírita adotou o dia 15 de abril de 1864 como a data de lançamento da Imitação do Evangelho segundo o Espiritismo, obra que precedeu a versão definitiva de O Evangelho segundo o Espiritismo.

Não sabemos de onde surgiu esta data, pois a Declaração do Impressor é do dia 8 de janeiro de 1864. A Revista Espírita de abril, normalmente publicada no início do mês, anunciou que a obra já estava à venda. Tal informação foi corroborada pelo jornal La Presse do dia 11, que anunciou que o título estava publicado desde a semana anterior, que se iniciou no dia 3. Em uma carta ao Sr. Edoux, do dia 15, publicada pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), Allan Kardec informou que tinha enviado um certo número de exemplares a Lyon no dia 14, e que alguns descuidos do impressor exigiram a reimpressão de certas partes, o que havia causado uma demora imprevista para o lançamento da obra. O registro da obra no jornal Bibliographie de la France, que normalmente acontece dias depois do Depósito Legal, foi feito no dia 16. Finalmente, o Novo Dicionário Universal de Lachâtre mencionou apenas abril.

Fonte: La Presse de 11 de abril de 1864.

Não vamos nos deter aqui em outros aspectos históricos, como os primeiros títulos pensados por Kardec durante o projeto do livro (As vozes do céu e As vozes do mundo invisível) [1], plano que ele já acalentava desde antes do início de 1862 [2], e que foi totalmente reestruturado para a obra Imitação, depois “revista, corrigida e modificada” com alterações importantes na edição definitiva de O Evangelho de 1866.

Também não desenvolveremos a questão da identificação dos médiuns e Espíritos utilizados, nos limitando a informar que contamos 14 prováveis médiuns [3], cerca de 47 Espíritos e 14 localidades diferentes.

Destacamos apenas que na mesma época em que o pintor Claude Monet esteve em Sainte Adresse, comuna da Normandia, no Norte da França, Kardec esteve lá preparando O Evangelho, o qual terminaria depois da sua volta ao lar, na Villa de Ségur. Na UFJF estão disponíveis muitas das cartas trocadas com a esposa, Amélie Boudet, durante o período, já que ela o acompanhou apenas no início da viagem.

Kardec era um homem racional e religioso, assim como Kepler, Newton, Pasteur etc. Muitas vezes suas preces ao D. T. P. ou ao S. D. T. P. (Senhor Deus Todo Poderoso) foram registradas por ele em manuscritos, apenas alguns já disponibilizados pela Fundação Espírita André Luiz (FEAL) na página da UFJF.

O fato do método da Concordância Universal do Ensino dos Espíritos (CUEE) estar na Introdução de O Evangelho, ilustra esta característica, racional e religiosa, do antigo mestre de pensionato, mas também não será nosso objeto de reflexão aqui [4].

Então, para homenagear os 160 anos da publicação de O Evangelho segundo o Espiritismo, ainda com o título anterior de Imitação, procuraremos fazer uma brevíssima análise em relação à ética teórica e à prática moral do espiritismo comparadas ao empirismo britânico, ao idealismo alemão, ao utilitarismo moral e ao existencialismo ateísta, através dos respectivos representantes, Allan Kardec (1804-1869), Thomas Hobbes (1588-1679), Immanuel Kant (1724-1804), John Stuart Mill (1806-1873) e Jean Paul Sartre (1905-1980), deixando obviamente inúmeros outros grandes pensadores de fora.

Para mostrar de forma simples um assunto complexo, usamos outro método aplicado por Kardec: o de perguntas e respostas. É claro que tal comparação é por demais reducionista, e serve apenas para ilustrar timidamente algumas nuances destes movimentos e filosofias.

Quais seriam as palavras-chaves para identificá-los?

Para o espiritismo, a parte moral poderia se resumir à lei natural de amor, justiça e caridade. Para o empirismo de Hobbes, que tem como objeto principal a política, mas que também desenvolveu pensamentos sobre a moral, seria o contrato social, que garantiria a ordem. O imperativo categórico ou a lei moral universal seriam um dos pilares do idealismo de Kant, que para o utilitarismo de Mill seria a maximização da felicidade. As palavras-chave para o existencialismo de Sartre talvez sejam a liberdade radical com responsabilidade autêntica, sem má fé.

Em relação à autonomia moral, quais seriam as visões destes pensadores?

No espiritismo, as leis de Deus estão inscritas na própria consciência e cada um tem a liberdade de seguir ou não essas leis, arcando com as consequências.

Já para Hobbes, os indivíduos cedem parte da sua liberdade em troca da segurança e da ordem proporcionada pelo Estado, portanto a moral deriva de um contrato social, de leis e normas estabelecidas pelo Estado.

Para Kant, o fundamental é a liberdade individual de tomar decisões éticas segundo a própria consciência. Em outras palavras, a moral é determinada pela própria razão humana. Ao tomar uma decisão, devemos nos perguntar se a máxima por trás da nossa ação poderia se tornar uma lei moral para todos. Se a máxima não puder ser universalizada sem gerar contradições ou injustiças, então ela é moralmente inaceitável.

A liberdade individual também é um valor fundamental para Mill, mas a melhor ação é aquela que produz o maior bem para o maior número de pessoas, portanto a autonomia é limitada pelos direitos e pelo bem-estar da maioria da sociedade.

Por outro lado, Sartre acreditava que fôssemos livres para escolher nosso destino, sem maiores consequências, a não ser a própria autoafirmação e a realização individual, embora fôssemos também responsáveis pelas nossas escolhas. Ao culpar fatores externos ou mesmo a natureza humana, estaríamos agindo de má fé.

Quais seriam então as consequências das más ações?

Para Sartre seriam o remorso, a raiva, o isolamento, o prejuízo à reputação etc. Da mesma forma Kant, que diria ser o remorso, a culpa, a insatisfação consigo mesmo, independentemente de possíveis consequências externas. Do outro lado teríamos Mill, que falaria do prejuízo ao bem-estar da sociedade, e Hobbes, que mencionaria o caos, a desordem, a violência, a criminalidade, a instabilidade política, o declínio do bem-estar social.

Kardec complementou Kant e não se deteve nos limites de Mill, apresentando a imortalidade e a reencarnação com possíveis repercussões da vida presente.

Que controles poderiam ser exercidos em relação às más ações?

O empirismo de Hobbes e o utilitarismo de Mill apresentam respectivamente soluções parecidas: punição pelo soberano, combinado com educação e promoção de valores morais; ou leis criadas por um governo democrático que represente os interesses da maioria da população.

De outro lado, Kant e Sartre mencionam que deveríamos apenas agir com prudência para encontrar soluções para situações específicas, moralmente inaceitáveis; e agir com a própria consciência.

Kardec, por sua vez, nos fala de leis naturais e leis humanas.

Particularmente não cremos em recompensas e punições emitidas diretamente do próprio Deus, mas sim em consequências felizes ou infelizes das nossas ações, que podem ecoar por várias encarnações, e que são regidas por leis naturais estabelecidas por Deus. O processo de reencarnação deve ser natural, às vezes iniciado pelo cansaço de sofrer. Entendemos reencarnações felizes ou infelizes, de provas ou expiações, como escolhas de cada Espírito, mas ignoramos o processo de implementação destas escolhas. Podemos imaginar algum tipo de automatismo e ainda uma organização social, mas temos dificuldades em compreender qualquer milícia coercitiva na dimensão espiritual impondo reencarnações expiatórias para Espíritos mais rebeldes. Se há compulsoriedade, também desconhecemos o processo de execução.

De qualquer forma, a reencarnação deve ser obrigatória para todos os Espíritos que ainda não tenham atingido a perfeição. Não precisamos adulterar o pensamento de Allan Kardec para alinhá-lo a tais crenças pessoais ou a outras filosofias, que obviamente tem vários pontos de contato com o próprio espiritismo. Tampouco precisamos trazer os conceitos destes outros pensadores para o espiritismo, a não ser para a saudável comparação, se tivermos tempo suficiente de estudar Kardec e os demais.

Em O Evangelho segundo o Espiritismo, bem como em outras obras de Kardec, encontramos dezenas de menções a punições, penas, castigos, gozos e recompensas. Sempre as interpretamos como dores e sofrimentos provocados por nós mesmos, como consequências da violação das leis naturais, da mesma forma que a lei da gravidade nos pune se jogarmos uma pedra para o alto e ela cair na nossa cabeça. Um processo obsessivo, por exemplo, não nos seria imposto, mas seria consequência de como nossas ações foram recebidas por aqueles que prejudicamos.

Deus deve ter nos criado, bem como suas leis naturais. Nós criamos nossas leis para viver em sociedade. Se não as seguir, seremos punidos com o seu rigor. Se não formos pegos pelas leis humanas, e nos sentirmos culpados, seremos punidos pelas leis divinas, através da própria consciência ou externamente, através da repercussão que nossas ações tenham causado em outros.

O livro publicado há 160 anos por Kardec nos ajuda a refletir sobre a melhor conduta, optando por seguir as leis de Deus e sermos felizes, ou não!

Poder-se-ia argumentar: por que não O Alcorão segundo o Espiritismo; O Pentateuco segundo o Espiritismo; Confúcio e Mêncio segundo o Espiritismo; etc., etc., etc.? Camille Debans, crítico do espiritismo, fez exatamente isso em Discours contre le spiritisme par um medium incredule. Mas na França do século XIX, bem como no Brasil dos séculos XX e XXI, a compreensão destas leis, que são universais, explicadas pelo espiritismo, tiveram mais apelo entre os católicos, assim como o tiveram entre os protestantes nos países anglo-saxões.

Retiremos pois de O Evangelho segundo o Espiritismo, a essência da ética que permeia todas as religiões, a regra de ouro ou da reciprocidade [5], e tentemos aplicá-la nos mínimos detalhes da nossa vida cotidiana. Parece simples, mas a todo momento percebemos quão longe estamos desta meta: a impaciência no lar, a ausência de respeito de vizinhos barulhentos, a falta de gentileza no trânsito, o relacionamento abusivo no trabalho, a carência de boa vontade entre trabalhadores da casa espírita, a arrogância e o pouco tempo para ouvir e aconselhar.

Sigamos pois, cada um, o nosso caminho! Saibamos comemorar os 160 anos de O Evangelho, com um pouco mais de ação.

Carlos Seth Bastos


Notas

[1] Com anúncios nas contracapas de obras publicadas por Kardec em 1862, como a 1ª edição de O Espiritismo na sua mais simples expressão e a 3ª edição de O que é o Espiritismo.

[2] Conforme deduz-se da carta de 10 de fevereiro de 1862 para o Sr. Sabo, disponível na página do Projeto Allan Kardec da UFJF.

[3] Grande parte está identificada na obra Espíritos sob investigação: resgatando parte da história.

[4] Reflexões sobre o tema estão no livro Espiritismo sob investigação: avaliando sua progressividade, bem como no bônus adicional “A esperança”, disponível em https://www.luzespirita.org.br/index.php?lisPage=livro&livroID=204; acesso em 13/04/2024.

[5] Hinduísmo: Esta é a suma do dever: não faças aos demais aquilo que, se a ti for feito, te causará dor. − Mahabharata 13, 113.8 | Budismo: Não atormentes o próximo com aquilo que te aflige. − O Buda, Udana-Varga 5, 18 | Confucionismo: Não façais aos outros aquilo que não quereis que vos façam. − Confúcio, As Analectas 15, 23 | Cristianismo: Portanto, tudo que quereis que os homens vos façam, fazei-o também a eles. − Jesus, Evangelho de São Mateus 7, 12 | Judaísmo: O que é odioso para ti, não o faças ao próximo. − Talmude, Shabbat 31ª | Islamismo: Nenhum de nós é crente até que deseje para seu irmão aquilo que deseja para si mesmo. − Sunnah (Sahih Muslim, Livro 1, Hádice Número 72) | Fé Baha’i: Não coloques em ninguém um fardo que não desejarias para ti, e não desejes a ninguém o que não desejarias para ti mesmo. − Baha’u’llah, Suriy-i-Muluk (44). Claro, não vale para o masoquista!!


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Lembrando que a obra O Evangelho segundo o Espiritismo de Allan Kardec está disponível livremente disponível para download na nossa Sala de Leitura.


Veja aqui os artigos anteriores da série especial 160 anos do lançamento de O Evangelho segundo o Espiritismo.

Continue conosco e acompanhe os próximos artigos da série.

2 comentários:

  1. Parabéns, Carlos Seth, por artigo tão bem fundamentado em relação à documentação sobre Allan Kardec. Tanto os títulos pensados por Allan Kardec quanto a carta dirigida ao Sr. Sabo em relação ao Evangelho segundo o Espiritismo são precisos achados para as reflexões sérias sobre a obra do Codificador.

    É revelador lermos Kardec assim se expressar na carta citada: “Acredite sim que, mesmo se houvesse persistido em seu projeto de agir separadamente, eu não deixaria de ter conservado pelo senhor a mais sincera amizade. Tenho por princípio não impor minhas opiniões a ninguém; contento-me em emitir e desenvolver minhas ideias, deixando a cada um aceitá-las ou rejeitá-las segundo as considere boas ou más.”

    Obrigado!

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