quinta-feira, 17 de fevereiro de 2022

Chico Xavier e o caso "O Cruzeiro"

Conforme anunciamos na postagem Chico Xavier: 20 anos de Saudade, neste ano jubilar traremos uma série especial de matérias relembrando a vida e a obra inestimável do querido médium espírita Francisco Cândido Xavier. Aqui temos então um dos mais marcantes episódios de sua trajetória: "o caso O Cruzeiro", quando dois conhecidos profissionais do jornalismo nacional da época se aventuraram na missão de desmascarar "o matuto mineiro metido a poeta" e que ainda "usurpava" nomes de celebridades da literatura brasileira e estrangeira.


Os temidos do Cruzeiro

Na década de 1940 a revista mais lida no Brasil era O Cruzeiro e os nomes mais temidos da imprensa eram David Nasser, jornalista, e Jean Manzon, seu fotógrafo, famosos por suas reportagens investigativas. Precisamente em 1944 eles se incumbiram de uma "grande missão" desbancar um semianalfabeto do interior do Estado de Minas Gerais que estava abalando “a base” do meio literário do País, por causa de seus livros, os quais dizia serem psicografados, de acordo com o ditado de "autores espirituais". A questão era que esses nomes envolviam celebridades nacionais como Castro Alves, Olavo Bilac e Augusto dos Anjos além de portugueses como Guerra Junqueira. Um absurdo! Um escândalo inadmissível pelos letrados! Era preciso desmascarar o autor de Parnaso de Além-Túmulo, publicado em 1932 pela Federação Espírita Brasileira  principalmente porque a sua vendagem havia sido um sucesso.

Nasser e Manzon viajaram do Rio de Janeiro até Belo Horizonte a bordo do avião particular do seu patrão Assis Chateaubriand, dono do império dos Diários Associados, do qual fazia parte o semanário que daria aquele furo de reportagem. Acompanhados do piloto Henrique Natividade, foram recebidos por ninguém menos que Juscelino Kubitscheck. Da capital mineira eles pegaram a estrada poeirenta até a pequena Pedro Leopoldo, cidade natal de Chico.

Chegaram na cidade num sábado, deram de cara com o pouco delicado Rômulo Joviano, diretor da Fazenda Modelo, da qual Chico era funcionário. Os forasteiros apresentaram suas credenciais com ar de autoridade, mas não conseguiram autorização para entrevistar o rapaz médium. O chefe da fazenda (que também era diretor do Centro Espírita Luiz Gonzaga, onde Chico realizava as sessões públicas de Espiritismo) era tão durão quanto Emmanuel (o guia do espiritual médium), mas também cuidava de proteger o rapaz matuto: "Chico está exausto e precisa descansar" — disse ele. Jean Manzon retrucou, irônico: — "Então dê umas férias para o seu empregado." Inflexível, o fazendeiro encerrou a conversa dizendo: "O Chico funcionário não tem nada a ver com o Chico espírita! Se quiser, pode voltar na próxima reunião pública, sexta-feira que vem."

Que desaforo! É claro que os caras da imprensa não iriam esperar uma semana sem ter o que fazer naquele fim de mundo!


O disfarce e os "flagrantes"

O trio carioca bolou um plano: iriam às pressas para a Fazenda, para chegar antes do patrão de Chico; Nasser e Manzon se apresentariam como repórteres americanos e o piloto faria o papel de intérprete da dupla; Chico ficaria seduzido pela ideia de ser notícia internacional e se sentiria mais à vontade diante dos estrangeiros, afinal de contas, a reportagem seria lida longe dali, longe do Rio. Nasser, Manzon e Natividade ainda cuidaram de cortar o fio do telefone da fazenda, evitando assim que o Sr. Joviano ligasse para advertir seu funcionário da investida dos jornalistas.

Plano perfeitamente bem executado! Chico recebeu os "estrangeiros” e até posou para fotos, seguindo as sugestões do retratista. Jean Manzon fez a festa. Um dos retratos que seriam estampados em O Cruzeiro exibia o representante dos Espíritos sentado numa banheira, com a mão esquerda sobre a testa, como se estivesse em transe mediúnico. A imagem se espalhou por meia página da publicação no dia 12 de agosto de 1944, onze dias antes da sentença do juiz responsável pela briga jurídica envolvendo os direitos autorais da obra Brasil, Coração do Mundo, Pátria do Evangelho, ditada por Humberto de Campos, da qual a viúva do escritor, Catarina Vergolino dos Campos, cobrava o lucro. Noutra pose “flagrante”, Chico é registrado deitado em sua cama estreita com um livro aberto nas mãos, para a qual coube a legenda: “Ele lê e muito. Dizia-se Humberto de Campos, o escândalo que Chico é um ignorante, analfabeto, pouco amante das belas-letras. Pura invenção. Chico lê tanto que um dos seus olhos foi atingido por cruel catarata inoperável. Mesmo assim continua lendo”. Ora, o coitado do Chico mal tinha tempo para dormir, que dirá se dar ao luxo de ler clássicos literários!

E tinha mais: o rapaz também se expôs diante da escrivaninha, com lápis em punho, em meio a um amontoado de livros, O texto abaixo da foto era comprometedor para quem estava sob suspeita de imitar o estilo alheio: “Outra peça de notável valor documental é esta: a biblioteca de Chico, onde encontramos livros de muitos autores, escritos na vida de seus criadores. Esses mesmos cavalheiros transmitem, segundo Chico, novas e diárias mensagens. Chico, na gravura, aparece copiando trechos de livros que mais lhe agradam”.

Satisfeitos com o espetáculo ridículo, o trio se despediu de Chico agradecendo a gentil acolhida. Antes que saíssem, porém, foram presenteados com um livro autografado. Eles nem ligaram para isso; jogaram os mimos na mala e voltaram para o Rio de Janeiro eufóricos para ver a repercussão da bomba que estavam prestes a detonar.


Chico, Detetive do Além"

Na semana seguinte, o semanário trazia a matéria intitulada “Chico, Detetive do Além”. O teor, porém, era bem menos contundente do que as imagens e legendas. Logo no início, ele tratava de quebrar as expectativas do leitor: “O senhor, leitor amigo, chegará ao fim destas linhas sem obter a resposta que há tanto tempo procura: 'É Chico Xavier um impostor ou não é?' e dirá: 'Dei 1.500 por esta revista e não consegui desvendar o mistério?' Sim, o mistério continuará por muito tempo”. Ainda que movidos pelo intento de desonrar o médium, havia um sentimento de bondade, e talvez piedade, com relação à pessoa que Chico lhes demonstrou, merecendo pela reportagem os adjetivos: "adorável", "cândido", "maneiroso", "humilde", "um anjo de criatura".

Apesar desse alento, ficou apavorado quando soube da publicação. Em poucos dias seria realizado o julgamento do caso Humberto de Campos e o rapaz já imaginava o veredicto: todos os indícios levam a crer que Francisco Cândido Xavier imitou o estilo de Humberto de Campos. Culpado!

Sacudia-se, em meio à violenta crise de choro, quando Emmanuel voltou. Estava inspirado:

— Chico, você tem que agradecer. Jesus foi para a cruz e você foi só para O Cruzeiro.

O réu não achou graça nenhuma. Além disso, por que Emmanuel e demais amigos espirituais não evitaram aquele vexame? Por que não desmascaram a fraude e revelaram a identidade dos falsos estrangeiros?

Ficou sem resposta por um bom tempo — mas ela viria!


O presente de Emmanuel

Já era madrugada do segundo dia posteriormente ao da entrevista com Chico Xavier, quando Nasser recebeu um telefonema de seu amigo fotógrafo, que lhe inquiriu, um tanto perturbado:

— David, você trouxe aquele livro que o homem nos ofereceu?

— Sim, claro.

— Pois bem, Abra-o na primeira página e leia a dedicatória.

Nasser largou o telefone fora do gancho e, curioso, correu à procura de seu exemplar. Então ficou estupefato ao deparar com a frase: “Ao irmão David Nasser, oferece Emmanuel..." Era equivalente à dedicatória escrita no mimo dado ao fotógrafo: “Ao caríssimo irmão Jean Manzon…”

— Que negócio é esse, Manzon? Alguém revelou nossa identidade?

O fotógrafo e o motorista também foram pegos de surpresa.

Diante do mistério, os três fizeram um pacto de silêncio. A reportagem saiu sem aquele episódio. Segundo Nasser, em jornalismo, a verdade era menos importante do que a verossimilhança.


Enfim, a revelação

Muitos anos se passaram e, um dia, David Nasser foi de novo visitar Chico Xavier, não como repórter, mas como observador. Para sua surpresa, Chico o recebeu com a mesma gentileza da primeira vez, não comentou e muito menos criticou a traiçoeira reportagem; aprendera com seu guia espiritual que “devemos ter paciência e bondade para com todos, explicando sempre que eles não nos injuriam porque sejam maus, e sim por inexperiência ante os assuntos da vida espiritual.”

Três décadas depois, numa reportagem publicada pelo jornal O Dia, em 28 de abril de 1974, e assinada por João Antero de Carvalho, o então arrependido Nasser revelaria os bastidores daquela investida na Fazenda Modelo, que descreveu como “o maior remorso da minha vida”.

Onze dias após a publicação da reportagem em O Cruzeiro, o juiz João Frederico Mourão Russel bateu o martelo:

— Nossa legislação protege a propriedade intelectual, em favor dos herdeiros, até certo limite de tempo após a morte, mas o que considera, para esse fim, como propriedade intelectual, são as obras produzidas pelo de cujus em vida.

Chico sentiu-se um pouco aliviado. Mas a peleja só estava começando: ainda teria que enfrentar muitas calúnias, insultos e perseguições. Não era para qualquer, tinha que ser mesmo um Chico Xavier.

Abaixo, um pequeno vídeo contando mais sobre essa história.

Gratidão eterna, amigo Chico.


Um comentário:

  1. Obrigado por estes importantes esclarecimentos. Farei postagem sobre isso na minha humilde página no FB: Racionalizando a Fé.

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