terça-feira, 23 de abril de 2019

"Livre-pensador" segundo Allan Kardec


Temos visto muito se falar que o Espiritismo é a doutrina do "livre-pensador" e que o "Livre-pensamento" é a tônica da Doutrina Espírita. Há tantos chavões no Movimento Espírita supondo nortear as consciências à "verdadeira verdade" que não é difícil ficar confuso, pois uma são expostas com tal enfoque e envoltas com tanto ar de autoridade que até assustam, dando a entender que não fazer parte de tal ciclo idealizado implica em nos colocarmos fora do próprio Movimento Espírita.

Mas então, o que vem a ser esse livre-pensamento? Essa conceituação condiz com que os ideias fundamentais da nossa doutrina?

Bem, a resposta é que, apesar de sempre precisarmos considerar o "contexto", porque etimologicamente os termos são dinâmicos, o fato é que essa ideia de livre-pensamento fez parte das "preocupações" de Allan Kardec na análise do desenvolvimento do Espiritismo. Precisamente na Revista Espírita de fevereiro de 1867, que acabamos de incluir na nossa Sala de Leitura (veja aqui), o codificador espírita tratou do tema no artigo intitulado "Livre-pensamento e livre-consciência".


A questão elementar tratada por Kardec é a existência, apontada por ele, de duas classes de pessoas que se autointitulam "livres-pensadores": uma de incrédulos e a outra de crentes. Esse artigo é uma continuação a outro, publicado no mês anterior (janeiro de 1867), de cujo título "Olhar retrospectivo sobre o Movimento Espírita", que é também uma resposta a um movimento de "intelectuais" que propuseram a ideia de livre-pensamento para aqueles que "não se sujeitam à opinião de ninguém em matéria de religião e de espiritualidade, que não se julgam atrelados pelo culto em que o nascimento os colocou sem o seu consentimento, nem obrigados à observação de práticas religiosas quaisquer", conceito esse que Kardec retifica: "todo homem que não se guia pela fé cega é, por isto mesmo, livre-pensador. A este título os espíritas também são livres-pensadores", pois o livre-pensamento não é estar desatrelado a qualquer crença, mas estar livre do que não se impõe pela racionalidade (já que pensar é essencialmente ser racional), admitindo assim, como consequência lógica, a crença raciocinada. Aliás, a negação de uma verdade plausível é o oposto da ideia racional de livre-pensamento, posto que essa negação só poderia se dar por preconceito, que não deixa de ser uma prisão, uma cegueira consciente.

Esses "intelectuais" haviam criado um órgão para reverberar suas vozes, o jornal Livre-pensamento. Da 2ª edição deste veículo, de outubro de 1866, Kardec destaca o seguinte trecho para depois refutar as ideias publicadas:

As questões de origem e de fim até aqui têm preocupado a Humanidade a ponto de, por vezes, lhe perturbar a razão. Esses problemas, que foram qualificados de temíveis, e que julgamos de importância secundária, não são do domínio imediato da Ciência. Sua solução científica não pode oferecer senão uma semicerteza. Tal qual é, entretanto, ela nos basta, e não tentaremos completá-la por argúcias metafísicas. Aliás, nosso objetivo é só nos ocuparmos de assuntos abordáveis pela observação. Pretendemos ficar na terra. Se, por vezes, dela nos afastamos para responder aos ataques dos que não pensam como nós, a incursão fora do real será de curta duração. Teremos sempre presente à lembrança este sábio conselho de Helvécio: “É preciso ter coragem de ignorar o que não se pode saber”. 
Um novo jornal, a Livre-consciência, nosso irmão mais velho, como faz notar, deseja-nos boas-vindas em seu primeiro número. Nós lhe agradecemos pela maneira cortês por que usou o seu direito de progenitura. Nosso confrade pensa que, malgrado a analogia dos títulos, nem sempre estaremos em “completa afinidade de ideias”. Após a leitura de seu primeiro número estamos certos disso; também não compreendemos a livre-consciência senão como o livre-pensamento com um limite dogmático previamente assinalado. Quando se declara claramente discípulo da Ciência e defensor da livre-consciência, é irracional, em nossa opinião, estabelecer como dogma uma crença qualquer, impossível de provar cientificamente. A liberdade assim limitada não é liberdade. Por nossa vez, damos as boas-vindas à Livre-consciência e estamos dispostos a ver nela uma aliada, pois declara querer combater por todas as liberdades... menos uma.

A refutação de Kardec começa por estranhar que os tais "livres-pensadores" considerem a origem e destino da humanidade sejam coisas secundárias, afinal, o que pode haver de mais importante para nós do que essas duas questões?

Depois eles vão dizer que tais questões perturbam a razão dos homens. Ora, como questionou Kardec, o que pode ser mais perturbador do que a inexistência de um sentido maior para a vida do que o amanhã pós-morte, que tem relação direta com o que fomos, antes do nosso nascimento. Não seria a falta de uma perspectiva positiva algo mais aterrador do que qualquer crença espiritualista?

Daí vem as ponderações de Allan Kardec:

Ninguém contestará que saber de onde se vem e para onde se vai, o que se fez na véspera e o que se fará amanhã, não seja uma coisa necessária para regular os negócios diários da vida, e que esse princípio não influa na conduta pessoal. Certamente o soldado que sabe para onde o conduzem, que vê o seu objetivo, marcha com mais firmeza, mais disposição, mais entusiasmo do que se o conduzissem às cegas. Dá-se o mesmo do pequeno ao grande, da individualidade ao conjunto. Saber de onde se vem e para onde se vai não é menos necessário para regular os negócios da vida coletiva da Humanidade. No dia em que a Humanidade inteira tivesse certeza de que a morte não tem saída, veria uma confusão geral e os homens se atirando uns contra os outros, dizendo: se não devemos viver senão um dia, vivamos o melhor possível, não importa à custa de quem!

Dito isto, vê-se a necessidade de uma melhor conceituação para a ideia de livre-pensamento oferecida por aqueles intelectuais descrentes, o que Kardec propõe com cirúrgica precisão, e que nos dá bons subsídios para nossa reflexão sobre a ideia de livre-pensador:

Em sua acepção mais vasta, o livre-pensamento significa: livre-exame, liberdade de consciência, fé raciocinada; simboliza a emancipação intelectual, a independência moral, complemento da independência física; não quer mais escravos do pensamento, pois o que caracteriza o livre-pensador é que este pensa por si mesmo, e não pelos outros; em outros termos, sua opinião lhe é própria. Assim, pode haver livres-pensadores em todas as opiniões e em todas as crenças. Neste sentido, o livre-pensamento eleva a dignidade do homem, dele fazendo um ser ativo, inteligente, em vez de uma máquina de crer. 
No sentido exclusivo que alguns lhe dão, em vez de emancipar o espírito, restringe a sua atividade, fazendo-o escravo da matéria. Os fanáticos da incredulidade fazem num sentido o que os fanáticos da fé cega fazem em outro. Então estes dizem: Para ser segundo Deus é preciso crer em tudo o que cremos; fora de nossa fé não há salvação. Os outros dizem: Para ser segundo a razão, é preciso pensar como nós, não crer senão no que cremos; fora dos limites que traçamos à crença, não há liberdade, nem bom-senso, doutrina que se formula por este paradoxo: Vosso espírito só é livre com a condição de não crer no que quer, o que significa para o indivíduo: Tu és o mais livre de todos os homens, desde que não vás mais longe do que a ponta da corda à qual te amarramos.

E a refutação continua, com o estilo elevado de Kardec, merecendo que todo bom estudioso espírita invista bom tempo estudando e apreciando essa riqueza teórica disposta na Revista Espírita. Vejamos aqui mais um trecho:

O Espiritismo é, como pensam alguns, uma nova fé cega, que substituiu outra fé cega? Em outras palavras, uma nova escravidão do pensamento sob nova forma? Para o crer, é preciso ignorar os seus primeiros elementos. Com efeito, o Espiritismo estabelece como princípio que antes de crer é preciso compreender. Ora, para compreender é necessário que se faça uso do raciocínio; eis por que ele procura dar-se conta de tudo antes de admitir alguma coisa, a saber, o porquê e o como de cada coisa. É por isso que os espíritas são mais cépticos do que muitos outros, em relação aos fenômenos que escapam do círculo das observações habituais. Não se baseia em nenhuma teoria preconcebida ou hipotética, mas na experiência e na observação dos fatos; em vez de dizer: “Crede primeiro, e depois compreendereis, se puderdes”, diz: “Compreendei primeiro, e depois acreditareis, se quiserdes.” Não se impõe a ninguém; diz a todos: “Vede, observai, comparai e vinde a nós livremente, se isto vos convém.” Falando assim, ele entra com grande chance no número dos concorrentes. Se muitos vão a ele, é porque satisfaz a muitos, mas ninguém o aceita de olhos fechados. Aos que não o aceitam, ele diz: “Sois livres e não vos quero; tudo o que vos peço é que me deixeis minha liberdade, como vos deixo a vossa. Se procurais me excluir, temendo que vos suplante, é que não estais muito seguros de vós.”

Então, não deixe de conferir o artigo na íntegra, acessível na Revista Espírita - coleção de 1867

Bom, Kardec descreveu duas classes. Acrescente-se, ainda, uma terceira via, muito comum nos dias correntes: a de alguns que pretendem que não devamos estar "presos" a nenhum conceito, sequer os fundamentos do Espiritismo. Estes pretendem uma generalidade total de ideias, o tal do "espírita universalista", que se mistura com tudo e admite facilmente o sincretismo, como se o Espiritismo fosse uma ideia vaga, sem alicerce doutrinário, sem fundamentos, o que bem pode ser diagnosticado como um gosto oculto pelo anarquismo, a falta de organização, ordem, disciplina, dada a ilusão de uma liberdade total dos indivíduos, enquanto que entendemos a Doutrina Espírita como o oposto disso, uma síntese demonstrativa da ideia original do Cosmos: a ordem, a justeza das coisas, a magnitude divina manifesta em sua Criação.

Então, que tipo de livre-pensador é você?

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