A Gênese revisada: cap. XV, item 67 suprimido - "Desaparecimento do corpo de Jesus"


Para uma melhor compreensão desta postagem, ver o sumário Análise comparativa das alterações no livro A Gênese.

Analisamos aqui o item 67 do capítulo XV ("Os Milagres") publicado na primeira versão da obra (da 1ª à 4ª edição) e excluído em A Gênese revisada (desde a 5ª edição).

Logo a seguir, os três parágrafos do referido item transcritos do original em francês:

67 - Qu'est devenu le corps charnel ? C'est un problème dont la solution ne peut se déduire, jusqu'à nouvel ordre, que par des hypothèses, faute d'éléments suffisants pour asseoir une conviction. Cette solution, d'ailleurs, est d'une importance secondaire, et n'ajouterait rien aux mérites du Christ, ni aux faits qui attestent, d'une manière bien autrement péremptoire, sa supériorité et sa mission divine.

Il ne peut donc y avoir sur la manière dont cette disparition s'est opérée que des opinions personnelles, qui n'auraient de valeur qu'autant qu'elles seraient sanctionnées par une logique rigoureuse, et par l'enseignement général des Esprits ; or, jusqu'à présent, aucune de celles qui ont été formulées n'a reçu la sanction de ce double contrôle.

Si les Esprits n'ont point encore tranché la question par l'unanimité de leur enseignement, c'est que sans doute le moment de la résoudre n'est pas encore venu, ou qu'on manque encore des connaissances à l'aide desquelles on pourra la résoudre soi-même. En attendant, si l'on écarte la supposition d'un enlèvement clandestin, on pourrait trouver, par analogie, une explication probable dans la théorie du double phénomène des apports et de l'invisibilité. (Livre des Médiums​, chap. IV et V.) 


Agora, vamos à tradução para o nosso português:

67.- ​O que aconteceu com o corpo carnal? Este é um problema cuja solução, até nova ordem, não se pode deduzir senão por hipóteses, por falta de elementos suficientes para estabelecer uma convicção. Esta solução, aliás, é de uma importância secundária, e não acrescentaria nada aos méritos do Cristo, nem aos fatos que atestam, de uma maneira muito concreta, sua superioridade e sua divina missão. 
Portanto, acerca da maneira como esse desaparecimento ocorreu, não há nada mais do que opiniões pessoais, que não teriam qualquer valor até que fossem sancionadas por uma lógica rigorosa, e pelo ensino geral dos Espíritos; ora, até o presente, nenhuma dessas teorias formuladas recebeu a sanção desse duplo controle. 
Se os Espíritos ainda não puderam resolver a questão pela unanimidade de seus ensinamentos, é que certamente o momento da resolução ainda não chegou, ou porque ainda nos falta conhecimentos com os quais nós mesmos poderíamos resolvê-la. Enquanto isso, se afastarmos a suposição de uma remoção clandestina, por analogia, poderíamos encontrar uma explicação provável na teoria do duplo fenômeno de transporte e de invisibilidade. (​O Livro dos Médiuns​, cap. IV e V.)


Contexto histórico

Desde a primeira denúncia de Henri Sausse, de uma tal conspiração para adulterar a obra de Allan Kardec, a supressão deste item tem sido apontada como uma "prova cabal" para justificar a motivação dos conspiradores: promover as ideias roustainguistas (saiba mais aqui).

Em Os Quatro Evangelhos, publicado em 1866, o jurista espírita Jean-Baptiste Roustaing (1805-1879) lança a ideia — crendo ser uma revelação dos quatro apóstolos evangelistas  de que Jesus não teria tido um corpo carnal (pela concepção de que a matéria é uma impureza e, portanto, incompatível com a santidade do Cristo), e que o Salvador teria feito uso de um "corpo fluídico", uma espécie de "agênere", para apresentar-se diante dos homens na Terra. Com isto, o desaparecimento do seu corpo (conforme narrado na Bíblia) evidenciaria essa ideia, sendo assim um desaparecimento natural.

Então, alguns estudiosos espíritas aderentes á tese da adulteração de A Gênese vão dizer que a exclusão deste item realmente prejudica o pensamento de Kardec sobre a presente questão, porque "deixa de enfatizar" que  como o pioneiro espírita pensava  Jesus teve sim um corpo carnal, em oposição ao roustainguismo.

Será mesmo?


A lógica de Kardec

Em seu livro O Legado de Allan Kardec (2018), a diplomata brasileira e pesquisadora espírita Simoni Privato Goidanich reacende as denúncias de Henri Sausse e também evoca esse item suprimido para sentenciar a edição revisada como "adulterada". Ela lembra que Kardec rechaçou a ideia do corpo fluídico de Jesus logo que a obra de Roustaing foi lançada. Escreve ela:

Segundo havia anunciado na Revisa Espírita correspondente ao mês de junho de 1866, Allan Kardec, com uma lógica rigorosa e com a certeza de estar de acordo com o ensinamento geral dos Espíritos sobre o tema, tratou categoricamente da questão do corpo de Jesus nas quatro edições que publicou de La genèse, les miracles et les prédictions selon le spiritisme, especialmente no capítulo XV, itens 64 a 68:
O Legado de Allan Kardec, Simoni Privato Goidanich - cap. 15

De fato, Kardec havia feito uma resenha de Os Quatro Evangelhos na Revista Espírita, mostrando respeito e consideração pelo esforço do seu confrade espírita, mas questionando — no nosso entender, ainda muito timidamente — essa ideia de corpo fluídico, certamente, com o cuidado para provocar cisão. Insistimos: Kardec foi bastante brando na sua crítica à obra, ao ponto de recomendá-la a todos os espíritas:

Essas observações, subordinadas à sanção do futuro, não diminuem em nada a importância dessa obra que, ao lado de coisas duvidosas segundo nosso ponto de vista, contém inegavelmente outras boas e verdadeiras, e será consultada com proveito pelos espíritas sérios.
Revista Espírita, junho de 1866.

Goidanich, todavia, vê que "a lógica rigorosa de Kardec", tanto na Revista Espírita quanto na edição original de A Gênese, já teria fechado a questão. 

Portanto, após a análise realizada na Revista Espírita, por ocasião da publicação da obra de Roustaing, afirma-se categoricamente e explica-se de maneira clara, nas quatro primeiras edições de La genèse, les miracles et les prédictions selon le spiritisme, publicadas por Allan Kardec, em 1868, que Jesus teve um corpo carnal. Trata-se, pois, de refutação terminante da teoria apresentada na obra de Roustaing.
O Legado de Allan Kardec, Simoni Privato Goidanich - cap. 15

De nossa parte, ao contrário, lemos que o codificador — por mais convicto que estivesse, pessoalmente — preferiu deixar a questão em aberto na Revista Espírita, quando disse que essas observações estavam "subordinadas à sanção do futuro" (ver citação anterior).

Quando da publicação original de A Gênese, concordamos com a Simoni Privato que Kardec, com uma lógica rigorosa, tratou categoricamente da questão do corpo de Jesus, encerrando a questão. Como vemos a seguir, ele vai ser explícito em sustentar que:

"Desde o seu nascimento até a sua morte, tudo em seus atos, na sua linguagem e nas diversas circunstâncias da sua vida, revela as qualidades inconfundíveis da natureza corpórea." (item 65, §1)

"(...) Após o suplício de Jesus, seu corpo se conservou inerte e sem vida; ele foi sepultado igual aos corpos comuns, e qualquer pôde vê-lo e tocá-lo. Após sua ressurreição, quando quis deixar a Terra, ele não morreu de novo; seu corpo se elevou, desvaneceu e desapareceu, sem deixar qualquer vestígio, prova evidente de que aquele corpo era de uma natureza diferente da daquele que pereceu na cruz; pelo que devemos concluir que, se Jesus pôde morrer, é que ele tinha um corpo carnal." (item 65, §4)

"(...) Num corpo sem Espírito, a sensação é absolutamente nula; pela mesma razão, o Espírito que não tem corpo carnal não pode experimentar os sofrimentos — que são o resultado da alteração da matéria; donde também é preciso concluir que se Jesus sofreu materialmente — do que não podemos duvidar — é que ele tinha um corpo material de uma natureza igual a de todo o mundo." (item 65, §5)

E o que aconteceu com estes itens originalmente publicados na primeira edição quando Kardec fez a revisão do livro? — Nada! O mesmo texto está presente na nova edição, mantendo assim a ideia coerente de que Jesus teve um corpo carnal, como qualquer homem encarnado, como se lê em mais este trecho:

"(...) Jesus teve então, como qualquer pessoa, um corpo carnal e um corpo fluídico, o que é atestado pelos fenômenos materiais e pelos fenômenos psíquicos que marcaram a sua vida." (item 66, §2)

E quanto ao item suprimido? Qual o prejuízo de sua retirada para o conjunto da obra?

Nenhum prejuízo! O item tratado se dedica exclusivamente à questão do que ocorreu para que o corpo de Jesus desaparecesse — e nada interfere nas conclusões sobre a natureza carnal ou fluídica desse corpo. Então, voltando à indagação sobre o sumiço do corpo do Cristo, Kardec diz que "Este é um problema cuja solução, até nova ordem, não se pode deduzir senão por hipóteses, por falta de elementos suficientes para estabelecer uma convicção."

E para todos os fins, ele considera que a solução para este caso "é de uma importância secundária", pois a questão realmente importante é aquela, quanto a natureza do corpo de Jesus.

Certamente que nos poderia ser interessante sabermos o que aconteceu: foi uma remoção clandestina? (Se sim, por quem? Por quê? Para onde?...) Foi um fenômeno de transporte? (O corpo foi deslocado do túmulo para outro lugar por ação mediúnica?) Foi um fenômeno de invisibilidade? (O corpo estava lá, no túmulo, mas por ação magnética foi ocultado à vista de quem visitou o local?). Ora, Kardec não desdenhou a importância dessa dúvida, mas ponderou que isso "não acrescentaria nada aos méritos do Cristo, nem aos fatos que atestam, de uma maneira muito concreta, sua superioridade e sua divina missão." Logo, o item poderia muito bem ser excluído sem prejudicar a obra e até a enxugaria, para não dar margem a discussões secundárias e desviar o foco principal de seu conteúdo, além de evitar que o leitor tomasse equivocadamente a opinião pessoal de Kardec como a resposta para a questão.

Ou seja, precisamente este item dava margem para que diversas hipóteses pudessem ser aventadas para explicar o desaparecimento do corpo de Jesus, dentre essas hipóteses  por que não? — alguma que corroborasse a concepção roustainguista.

Em suma, se se pretendia distorcer o pensamento de de Kardec quanto a esse parecer, certamente que as mexidas indevidas deveriam ser nestes itens supracitados, que, no entanto, não sofreram alterações e estão presentes nas duas versões da obra. E, pelo mesmo raciocínio, o único trecho que poderia pôr em dúvida as conclusões do Mestre lionês foi exatamente o de número 67, que sabiamente foi excluído por Kardec.


Epílogo

Faz bem lembrarmos que o roustainguismo só entrou no cenário espírita a partir das investidas de Jean Guérin, testamentário de Roustaing, no final da década de 1870 — quer dizer, muito depois da publicação da edição revisada. A propósito, é interessante que mesmo Simoni Privato Goidanich reconhece que Pierre-Gaëtan Leymarie (diretor da Sociedade Anônima e suposto agente direto das ditas "adulterações") não era nada simpático ao roustainguismo, conforme registro de uma carta dele endereçada a um tal de Sr. Mendy, datada de 5 de maio de 1878, e que a seguir transcrevemos do citado livro da diplomata:

“[...] Conheceis melhor que eu os bordeleses; essas boas pessoas estão equivocadas e pagam muito caro por isso; somente o Sr. Comera e o Sr. Krel são partidários de Allan Kardec, ao passo que Roustaing, a Sra. Collignon e tutti quanti admiram-se a si mesmos da cabeça aos pés – são FRUTOS SECOS que revolucionarão somente seus cérebros. Roustaing morrerá na impenitência final; acreditou que o processo [dos espíritas] havia matado o espiritismo. esse pobre homem! A Sra. Collignon (a médium de Roustiang), a incompreendida, teve um acesso de alegria feroz ao saber-me prisioneiro. Devemos compadecer-nos deles, pois lhes falta um sentido, e me fazem rir seus arranhões. Repito-vos, contende esses intemperantes. Esperando, etc. — LEYMARIE.”

Outro detalhe interessante é que a edição revisada acrescentou ao final deste capítulo ora evocado um pequeno parágrafo, que também tem sido reclamado pelos adeptos da tese de adulteração como mais uma evidência para a acusação. Disto, porém, trataremos num post à parte. Aguardem!

Saiba mais em Análise comparativa das alterações no livro A Gênese.

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Comentários

  1. Avancemos, então: por que, no Catálogo Racional, Kardec, simultaneamente, se referido, em um ponto, a um item que ainda seria inserido em A Gênese, na 5a edição (item 7 do cap. VIII), enquanto que, em outro, se referia a um item que dela seria retirado, na mesma edição (item 68 do cap. XV)?

    Deixo aqui minha singela análise: https://docs.google.com/document/d/1pZmzKb_FWoFX3zIE_bERX1O7BO2MvUf-YkDX5xsrDqA/edit?usp=sharing

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