Sobre charlatões, milagres, varellas e outros efeitos colaterais do recurso mediúnico


Desde o final do ano passado (2018), quando estourou o caso dos escândalos de abusos sexuais do médium João de Deus (que, no entanto, declara-se inocente), tanto o Espiritismo assim como todas as correntes espiritualistas de alguma forma têm penado com a ignorância e, nalguns casos, o oportunismo, vindo da parte dos críticos de plantão, cujo procedimento comum é ajuntar num saco só tudo quanto possa ser usado para denegrir os valores espirituais e, evidentemente, é a Doutrina Espírita especialmente o alvo dileto destes críticos, pois, enquanto outros movimentos são vistos mais como expressões folclóricas (a exemplo do Candomblé e Umbanda), o kardecismo tem sua sistematização doutrinária e, por força de expressão, é a que teoricamente deveria se justificar em face dos abusos daqueles que praticam o mediunismo (leia-se: a prática desordenada da mediunidade).

E o assunto está rendendo. Seguindo o drama do espiritualista João de Deus e do dito dirigente espírita Maury Rodrigues da Cruz (veja aqui), vieram à tona outros escândalos envolvendo supostos médiuns e líderes religiosos. De repente, uma onda de "caça aos bruxos" se instalou no país. Em Belo Horizonte, por exemplo, um falso médium é preso por golpes financeiros enquanto oferecia "serviços espirituais" a idosa (veja aqui): Djalma Alves da Silva (55 anos) se declarava espírita, mas se utilizava até de "truques de mágica" para impressionar potenciais vítimas, conforme reportado pela imprensa. A brincadeira lhe rendeu R$ 280 mil somente de uma idosa. Mas há casos mais graves ainda...

Djalma e seus "serviços espirituais"

Em janeiro deste 2019 a "atração" foi o caso do médium suspeito de homicídio após cirurgias espirituais: segundo a reportagem do portal de notícias G!, pesa sobre o dito médium Antônio Miguel Rodrigues (55 anos) a acusação de responsabilidade pela morte de pelo menos três fieis que recorreram a ele para obter curas espirituais, na Bahia e em Goiás.

Antônio Miguel Rodrigues, médium acusado de homicídio

Mas, claro, de todos, o caso mais emblemático é o do médium de Abadiânia de Goiás, seja pela notoriedade internacional de que gozava João de Deus, seja pela extensão das apurações policiais até então: além da gravidade dos supostos abusos sexuais (estupro de vulnerável), as autoridades policiais investigam outras ilicitudes que lhe são atribuídas em denúncias feitos pelo Ministério Público de Goiás, incluindo lavagem de dinheiro, posse ilegal de armas e coação de testemunhas.

Armas e dinheiro não declarados encontrados em imóveis de João d Deus

A sequenciamento da exposição de casos semelhantes é comum em todos os ramos. É que uma acusação formal encoraja outras pessoas. Bastou uma única mulher desafiar o imenso prestígio de um homem conhecido mundialmente, tal como João de Deus, para que outras "vítimas" se despertassem para levar a público o drama de que dizem ter carregado por anos, sufocando uma revolta da qual não teriam coragem de expor senão depois de outros, até em função da falta de amparo diante da "autoridade" que a fama impunha àquele médium.


MEDIUNIDADE E SEUS EFEITOS COLATERAIS

A mediunidade é uma dádiva que Deus concedeu à humanidade a fim de por ela encarnados e Espíritos livres possam se confraternizar no entrono do nosso projeto evolutivo. Ela é naturalmente uma via probatória da espiritualidade, a sobrevivência da alma pós-morte e da grandeza da obra de Deus, sem a qual não teríamos concretamente como validar nossas aspirações maiores acerca da nossa vida imortal.

No entanto, como qualquer outro recurso valioso, a mediunidade enseja a charlatões as mais criativas ideias para se aproveitar da boa-fé alheia e buscar promoções diversas, inclusive financeira. Daí é conveniente esmiuçarmos bem as causas e os meios comuns explorados pelo charlatanismo, com o que tanto se ocupou Allan Kardec com o objetivo de prevenir os espiritas, pois então desde o tempo do codificador do Espiritismo que a exploração de escândalos envolvendo casos similares aos de que aqui tratamos já vinha causando grande estrago à doutrina dos Espíritos.

Saiba mais sobre charlatanismo pela Enciclopédia Espírita Online.

Apesar de ser uma atividade natural, provinda da próprio ordem do organismo humano mediante as leis comuns da natureza, a mediunidade quase sempre é ignorada e muito confundida com magia, milagre e misticismo. Logo, a cada caso de um falsário, é compreensível que as pessoas duvidem mais e afasta a ideia de se envolver com uma doutrina que se fundamente na mediunidade, como é o Espiritismo. Daí, elas ficam privadas do que justamente há de mais bela e salutar na mediunidade: propiciar reflexões sobre os conceitos filosóficos e morais que a espiritualidade oferece a todos como instrumento de adiantamento evolutivo.

Mas fora o prejuízo da divulgação doutrinária com os flagrantes de charlatões, há também entre os "médiuns autênticos" o perigo do exercício mediúnico, a começar pela possibilidade de fascinação, que pode arrastar os médiuns aos mais nocivos caminhos, dentro os quais supor-se "especial" e, movido pelo orgulho, vaidade e egoísmo, usar de suas faculdades para a promoção pessoal, enquanto que seu ministério mediúnico era o de servir ao bem comum e lhe pôr a prova o desinteresse pessoal, ou seja, a caridade. Ver O Livro dos Médiuns, Allan Kardec.

Também tentador, e infelizmente não raro, é a exploração apelativa que se faz de "espetacularizar" a mediunidade no afã de "chamar a atenção", de "despertar o interesse" dos leigos, como um recurso de propaganda da doutrina. Sobre isso, Kardec sempre alertou a negatividade dos resultados, pois quem entra no Espiritismo movido apenas pela vã curiosidade e pela fascinação causada pelo fenômeno só tende a ceder à euforia, como fogo de palha — que produz altas labaredas, mas que em pouco tempo se consome e apaga a luminosidade. Estes se tornam os "espíritas exaltados", que muitas vezes mais deturpam a propagação da doutrina do que mesmo ajudam na sua divulgação:
"A espécie humana seria perfeita se sempre tomasse o lado bom das coisas. O exagero é prejudicial em tudo. Em Espiritismo, inspira confiança bastante cega e frequentemente infantil em relação ao mundo invisível, e leva a aceitar-se com extrema facilidade e sem verificação aquilo cujo absurdo ou impossibilidade, a reflexão e o exame demonstrariam. Porém, o entusiasmo não reflete, deslumbra. Esta espécie de adeptos é mais prejudicial do que útil à causa do Espiritismo. São os menos aptos para convencer a quem quer que seja, porque — e com razão — todos desconfiam dos julgamentos deles. Assim, por causa de sua crença fácil, são iludidos por Espíritos mistificadores, como por homens que procuram explorar a sua fé. Haveria apenas meio-mal se só eles tivessem que sofrer as consequências. O pior é que, sem o quererem, dão armas aos incrédulos, que antes buscam ocasião de zombar do que se convencerem e que não deixam de imputar a todos o ridículo de alguns. Sem dúvida que isto não é justo, nem racional; mas, como se sabe, os adversários do Espiritismo só consideram de bom quilate a razão de que desfrutam, e conhecer a fundo aquilo sobre o que pensam é o que menos cuidado lhes dá."

O Livro dos Médiuns - cap. III, item 28.
Allan Kardec, codificador do Espiritismo

E, como dito, não é raro que os espíritas individualmente ou mesmo os centros espíritas e canais de divulgação da doutrina promovam verdadeiros espetáculos mediúnicos, muitas vezes exaltando e promovendo excessivamente o nome de médiuns, tratando-os como celebridades, quase ídolos, abdicando da missão primordial de disseminar o bom entendimento sobre a faculdade mediúnica, que é uma capacidade inerente ao organismo humano comum a todos nós.

É assim que temos visto a expansão de eventos apelativos vendendo a ideia de curas fáceis, quase milagrosas, mediante a intervenção de Espíritos curadores, enquanto a verdadeira cura fica obliterada — cura essa que é o autodescobrimento, a libertação individual a partir do desenvolvimento do intelecto e do desabrochar do espírito da caridade, portanto, a "cura da alma".


O OPORTUNISMO DOS MATERIALISTAS E ANTAGÔNICOS DA ESPIRITUALIDADE

É no ápice da exploração midiática desses escândalos que se levanta com mais vigor a voz dos antagônicos ao Espiritismo e demais correntes espiritualistas, especialmente os materialistas, dentre os quais alguns que se valem de seus diplomas acadêmicos e suas influências terrenas para vender ideias retrógradas e limitadas de um falso cientificismo e de uma exaltação tão ou mais acentuada que os mais fanáticos religiosos.

Um exemplo dessas vozes é a de um doutor celebridade que distribui pelas mídias sociais um vídeo rechaçando toda e qualquer ideia de espiritualidade pegando carona na má reputação de que sofre o médium João de Deus, vídeo esse que aconselharíamos não fosse visto para não dar audiência a essas vozes, mas, por força da necessidade de análise, aqui dispomos para apreciação de todos:


Ora, o charlatanismo e o charlatão sim devem ser expostos e rechaçados, inclusive a título de educação para prevenção de futuras vítimas. Também o Espiritismo estimula que os espíritas sejam bem atentos para distinguir o embuste e a verdadeira mediunidade. Mas daí, a partir de um falsário ou de um usurpador, você julgar todo a classe de médiuns e toda a faculdade mediúnica — e até toda a natureza espiritual — é de uma irresponsabilidade tremenda, indigna e cabível somente àqueles que se insinuam os "sabe-tudo", de quem julga conhecer todos os segredos da natureza.

Estas vozes, infelizmente, arrastam multidões e lhes privam de adentrar mais a fundo nas leis divinas e encontrar as autênticas respostas para os seus dramas pessoais, as soluções para seus conflitos psicológicos e a depuração de suas condutas. Assim foi que o cientificismo do século XX sufocou a difusão do Espiritismo na Europa e na América do Norte, onde se criou uma nova ordem científica, materialista, atendendo aos apelos imediatistas dos homens com a promessa vil de que a ciência do futuro daria a todos "cura"de todos os males físicos, psicológicos e materiais.


O SALDO FINAL

Todavia, como já tivemos oportunidade de dizer, apesar de todo o prejuízo momentâneo que a exposição desses casos incide contra o Espiritismo, o saldo final há de ser positivo a partir de certas providências que se possa deliberar para uma melhor compreensão acerca da mediunidade e, principalmente, para um melhor exercício dos recursos mediúnicos por parte daqueles que dispõem dessas faculdades. É o que se entende pela mensagem atribuída ao Cristo sobre "a necessidade dos escândalos, embora implique em pesadas responsabilidades sobre aqueles que os provoquem". Veja-se em O Evangelho segundo o Espiritismo, de Allan Kardec - capítulo VIII, especialmente os itens 11 a 21.

Que o necessário escândalo de hoje propicie uma nova ordem de atividade no meio espírita; que possamos estudar, compreender e melhor exercer a faculdade mediúnica.

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