Eventos espíritas pagos: vamos refletir à respeito?

Foi realizado neste final de semana o 18° Congresso Estadual de Espiritismo promovido pela USE - União das Sociedades Espíritas do Estado de São Paulo, num hotel em Atibaia, congresso esse que estava previsto para 2020 e que foi adiado por conta da pandemia do Covid-19. Com o anúncio da remarcação das datas do evento e da campanha por novas inscrições, desencadeou-se uma série de críticas contra esse congresso e, de maneira geral, a todos os eventos pagos no movimento espírita, além de outros pontos questionáveis, tais como: estabelecimento de um elitismo e distanciamento das massas, autopromoção pessoal (dos palestrantes) ou institucional, mercantilismo, utilidade dos eventos etc.

Nos últimos dias, nós recebemos muitas mensagens sobre o assunto, algumas delas com críticas abertas contra os ditos "megashows espíritas", outras nos perguntando a nossa opinião a respeito e algumas, inclusive, nos cobrando um posicionamento público, já que se trata de uma polêmica recorrente e envolve outras tantas entidades — a Federação Espírita Brasileira, principalmente, tem sido bastante criticada por isso. Pensadores espíritas sérios e influentes no nosso meio já teceram opiniões francamente em oposição a programações dessa natureza, visto tratar-se realmente de algo grave.



Com serenidade, então, aqui vamos tecer nossos comentários, sempre convidando os confrades a uma reflexão aberta, sem dogmatismos, sem extremismos, buscando objetivamente contribuir para um debate produtivo. Cuidamos primordialmente do conceito das questões envolvidas e a partir daí poderemos aplicar nossos posicionamentos a toda e qualquer entidade.


Mercantilismo no meio espírita

Séria lícito cobrar por eventos espíritas? Há quem pense que isso é um absurdo e que a revelação espírita deve ser distribuída gratuitamente, conforme, aliás, o preceito "Dar de graça o que de graça receber" contido no capítulo XXVI de O Evangelho segundo o Espiritismo de Allan Kardec, ainda mais porque a não observância absoluta deste princípio implicaria na abertura para o mercantilismo dentro do nosso movimento, cujos descaminhos e riscos são de imprevisíveis perigos para o Espiritismo, tomando por exemplo o que tem ocorrido com denominações religiosas, bem como com a ciência e a filosofia, em que o apelo material corrompe o ofício sagrado das respectivas causas.

Sim, de fato, há o perigo real de se descambar para um dos extremos que é a exploração financeira abusiva. Contudo, o outro extremo nos parece por demais radical; pretender excluir o dinheiro de toda e qualquer atividade espírita é um ato dogmático extremista e nos leva a indagar qual a razão de se ter ojeriza pelo dinheiro e pelo comércio, que são instrumentos perfeitamente lícitos e úteis — quando bem aplicados — para o desenvolvimento das nossas potências sociais, considerando as condições atuais de nosso mundo. A questão essencial é o propósito do uso desses instrumentos.

O ideal nos parece ser sempre oferecermos nossos trabalhos doutrinários gratuitamente, mas há certos "produtos" que requerem financiamento e alguém precisa pagar a conta. Não se produz um filme sem investimento, por exemplo. Então, deveríamos abominar produções como Chico Xavier, o filme, Nosso Lar, Kardec, a história por trás do nome em razão de estarem "explorando" a nossa doutrina?

Também devemos considerar que o próprio Codificador do Espiritismo comercializou obras espíritas, vendeu assinatura da sua Revista Espírita e ainda cobrava pelos títulos de sócios da Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas embora, que fique bem claro, ele próprio não usufruísse pessoalmente desse comércio, mas é certo que ele pagava um secretário, e mais tarde projetou a instituição de uma livraria e editora espírita com comissão para seus dirigentes. Vê-se, portanto, que o pioneiro espírita não tinha o puder de mexer com valores financeiros. Novamente, enfatizamos, a questão é o propósito da coisa. Kardec, por exemplo, usava o lucro da venda de suas obras basicamente para patrocinar a confecção de novas peças, muitas das quais ele doava; os títulos da SPEE eram usados para o aluguel do salão de reuniões e materiais usados nas sessões (papeis, lápis etc.). Kardec absolutamente não viveu financeiramente da doutrina.

Todavia, é preciso distinguir comércio (transações necessárias) de mercantilismo (propensão ao lucro) e mesmo dentro das atividades necessariamente comerciais, sempre que possível facilitar o acesso ao povo em geral. Por exemplo, na época de Kardec a produção e distribuição de livros e revistas era de alto custo; hoje, temos todas as facilidades para editar uma obra e disponibilizá-la online sem nos preocuparmos com preço.

Individualmente falando, o trabalho espírita só tem a ganhar em credibilidade se feito voluntariamente. Portanto, que nenhum espírita esteja na precisão de receber salário por nenhuma atividade espírita.


Palestra espírita paga é legal?

Mas vamos tratar especificamente dos congressos. É moralmente legal promover palestras e congressos espíritas pagos?

E para ampliarmos as considerações, vejamos outras questões que se colocam aí: há críticas correntes contra uma tal indústria de megaeventos doutrinários, geralmente em instalações de luxo (hotéis resorts, centros de convenção etc.) e a preços exorbitantes. Isso não é ostentação e elitismo? O ideal não seria sempre a palestra gratuita na casa espírita lá no meio da vida, do povão?

Novamente vamos nos colocar fora dos extremos: não somos partidários de uma proibição absoluta aos eventos pagos e realizados em espaços sofisticados, que oferecem um estrutura para receber grandes públicos (e com isso requerem toda uma infraestrutura para atender a grandes demandas, o que custa dinheiro) e que podem oferecer outros atrativos (uma hospedagem num hotel, por exemplo) para quem talvez procure conciliar um momento de estudo doutrinário com um passeio familiar. Desejamos que o Espiritismo vá a todos os lugares minimamente apropriados e a todas as classes que desejam se instruir pela Doutrina Espírita. Isto, porém, sem exclusão da mensagem acessível a quem não disponha de recursos monetários para tais investimentos. E é bem verdade que esses grandes eventos normalmente são transmitidos ao vivo pela internet, de modo a não privar ninguém do ensino ali proposto.

Entretanto, pensamos que esse formato não deva estar nem perto das prioridades de uma entidade espírita, porque, para começar, envolve toda uma estrutura e burocracia que toma tempo e energia para se administrar, e em terceirizando essa parte administrativa, abre-se a porteira para o desfoque dos objetivos doutrinários e abre-se espaço para o mercantilismo, porque se carecerá pensar nos lucros para a viabilidade material do evento. E daí uma série de escolhos se apresenta, inclusive o elitismo mesmo, porque também os congressistas serão tentados a quererem priorizar estarem nos grandes eventos em preferência a dar uma palestrazinha num centro espírita da vila — se bem isso seja uma coisa particular, servindo de provação para cada qual. O ponto-chave aqui é anuência que as entidades dão para essa ladeira abaixo.


Formato dos congressos

Agora, uma questão crucial é quanto o formato e utilidade desses megaeventos promovidos pelas grandes instituições espíritas. O que vemos geralmente nada mais é do que a sucessão de palestras que, por melhor que sejam, são comuns às palestras que são realizadas normalmente nas casas espíritas ou transmitidas online. Ou seja, não oferecem significativas novidades nem proporcionam um estudo interativo e aprofundado, como bem pode ser um curso doutrinário regular.

Segundo o Dicionário Houaiss, um congresso é (terceira concepção, aqui cabível): reunião de especialistas para que deliberem sobre questões de interesse comum ou para que se apresentem estudos, novas descobertas etc. É assim que as academias de ciência promovem seus congressos, a partir de um estudo objetivo, metódico e resoluto a apresentar uma finalidade prática para a ciência em si e para a sociedade em geral. Então, permitimo-nos perguntar: que deliberações a USE vai tirar deste congresso? E da mesma forma, estendemos a pergunta à FEB e a outras entidades que promovem tais congressos.

Ora, é bom possível que as entidades apresentem justificativas plausíveis — e nós as receberemos de bom grado. Não obstante, estamos à espera de que essas grandes entidades promovam encontros mais produtivos para a disseminação da Doutrina Espírita. Que tal uma reunião mais aberta entre os grandes pensadores e divulgadores espíritas com o objetivo de articular melhores ações e campanhas para fazer o Espiritismo adentrar nas massas? Pois, há muito, temos visto o nosso movimento ficar estagnado — ou quiçá retroceder — frente ao materialismo cultural, esse grande dragão devorador do progresso espiritual.

Talvez estejamos perdendo essa batalha contra o materialismo exatamente por estarmos com o foco invertido, ocupados com os círculos fechados. Urge elaborarmos projetos mais ousados, mais efetivos e mais inclusivos, mais em prol do Espiritismo do que por outros propósitos quaisquer. Para tanto, é possível que a coletividade dos espíritas independentes possam fazer mais e melhor do que as instituições burocráticas, mas seria bem mais fácil e útil se estivéssemos todos sintonizados nos mesmos propósitos.

* * * * * *

E para ficar bem atualizado de tudo o que ocorre de mais importante no movimento espírita, siga-nos pelo FacebookTwitter Instagram.

Assine também gratuitamente o nosso newsletter Informe Luz Espírita.

Comentários

Postar um comentário

Postagens populares

Chico e o retrato de Maria de Nazaré

"Espiritismo, misticismo, sentimento religioso e positivismo: uma resposta de Léon Denis", por Jáder dos Reis Sampaio

A Proclamação da República do Brasil e o Espiritismo

Considerações a partir do Discurso "O espiritismo é uma religião?" de Allan Kardec, por Brutus Abel e Luís Jorge Lira Neto

Necrológio: Isabel Salomão (1924 - 2024)