"Afinal, a quem pertence O livro dos espíritos?", artigo por Rogério Miguez
Recebemos e compartilhamos o seguinte artigo, composição de nosso confrade e colaborador da Luz Espírita, Rogério Miguez (São José dos Campos, SP), cujo tema é especialmente oportuno ainda pelos nossos festejos de mais um aniversário do Espiritismo que, por convenção, tem como marco inaugural o lançamento de O Livro dos Espíritos de Allan Kardec, em 18 de abril de 1857. E o enfoque do artigo é justamente a indagação quanto a autoria desta obra monumental, pelo que julgamos válido investir nosso tempo e atenção às considerações aqui propostas:
Afinal, a quem pertence O livro dos espíritos?
Diante da vastidão de princípios abrangidos pelas Leis de Deus, cobrindo não só aspectos morais, bem como os materiais ou físicos, destacam-se muitos pontos merecedores da atenção daqueles em contato com o Espiritismo pela primeira vez.
Entre tantos em evidência um deles certamente é a compreensão da existência e natureza dos Espíritos. É comum observar nos recém-chegados ao movimento espírita certa dificuldade no entendimento de tais entidades, sendo esta inclusive uma das várias motivações conduzindo um interessado à Casa espírita, ou seja, deseja esclarecimento sobre os chamados mortos, tanto quanto explicações a respeito de aparições de toda ordem.
Elucida a Doutrina, inicialmente em O livro dos espíritos, sobre a existência de dois princípios básicos no Universo: o princípio espiritual (fonte de criação dos Espíritos) e o princípio material. Na sequência das obras do Pentateuco, esclarece-se mais um pouco sobre estes fundamentos aqui, outro tanto ali, e na última obra, A Gênese, Allan Kardec discorre sobre estes princípios de maneira ampla e detalhada, os quais, somados a Deus, formam a assim chamada Trindade Universal espírita.
Como a percepção comum considera as almas ou Espíritos entidades à parte, habitantes do plano etéreo de onde eventualmente, embora “mortos”, se apresentam para nos atormentar e amedrontar haja vista o conceito disseminado de ”alma penada”, exceção feita às aparições dos “anjos”, muitos têm dificuldade em compreender e aceitar a sua própria natureza. Não perceberam ainda serem também Espíritos em essência, individualizações do princípio espiritual anteriormente mencionado, encontrando-se provisoriamente ligados a um corpo de carne, vivendo um pequeno capítulo de suas existências e, em breve tempo, estarão também do lado de lá, no impropriamente chamado ”Reino dos Mortos”.
Esta visão representa a verdade, porquanto a maioria teme as almas do outro mundo, havendo inclusive alguns espíritas que “morrem de medo” de ver Espíritos; sendo assim, os neófitos resistem em aceitar que os Espíritos continuam a fazer parte do Universo, embora agora sem corpos físicos; não são mortos ressuscitando dos túmulos ou sepulcros para nos assustar e perseguir. Entretanto, imaginam ainda os Espíritos como entidades à margem da criação. Comenta-se sobre Espíritos e surgem múltiplas interrogações: vieram de onde, onde habitam estes tais, quem são na realidade, o que fazem há tanto tempo no além?
Conforme previsto nas leis eternas, acabarão também aprendendo por meio de estudos, aulas ou exposições, que verdadeiramente alguns Espíritos buscam nos atrapalhar temporariamente, são os assim chamados obsessores, e mais, quando descobrem que estes podem ser numerosos, sem esclarecimentos doutrinários, chegam a se apavorar. Felizmente, por outro lado, tomarão conhecimento também sobre a existência de muitos outros Espíritos cuja função ou missão é de nos ajudar, são os nossos guias espirituais, além destes, há também os Espíritos familiares e os simpáticos, todos em síntese desejando apenas o nosso bem e nosso progresso; mas quem os dirige se é que há organização nestes grupos de seres parecendo tudo observar e tudo indicando estarem em toda a parte, indagam curiosos?
É preciso assistir a continuadas palestras doutrinárias, ler e bem estudar a literatura espírita, de modo a assegurarem-se, certificarem-se, convencerem-se de que também se tornaram imortais a partir do momento de sua individualização por Deus, fazendo igualmente parte deste coletivo de seres sempre vivos chamados Espíritos, entidades estas continuamente criadas por Deus, sendo Este o organizador maior de tudo e de todos.
Em função destas temporárias e esperadas incompreensões, quando se abordam temas doutrinários, e faz-se menção ao O livro dos espíritos, mencionando uma pergunta aqui, outra acolá, com as suas respectivas e sábias respostas dos Espíritos, surgem outras questões: afinal quem são estes que ditaram esta imensidade de textos, ideias, conceitos, formulando incontáveis teorias a este francês com nome de batismo Denisard Hipolyte Leon Rivail (1), nascido em Lyon, todavia, conhecido popularmente por Allan Kardec!?
Quando se diz ser a Doutrina dos Espíritos, ajuízam, mas não foi Allan Kardec quem escreveu, organizou, codificou e publicou O livro dos Espíritos? Então como pode este livro pertencer aos Espíritos e não ao francês Allan Kardec? Ele não é o autor?
É preciso um tempo de convívio e amadurecimento dentro do movimento espírita, exercitando a leitura atenta ou mesmo o estudo de livros e mensagens, participando continuadamente das reuniões doutrinárias, para pouco a pouco começar a se sentir parte deste universo de seres espirituais.
Contudo, enquanto isto não se dá, sentem-se deslocados, e em função do entendimento ainda incompleto da Doutrina, aceitam inclusive a possibilidade de alguns Espíritos encarnados serem privilegiados dentro da criação, os chamados médiuns, porém, sabemos não o são, pois estes últimos possuem a capacidade de falar, ver, sentir e interagir com estas outras individualidades, os chamados Espíritos desencarnados.
Adicionalmente, se soubessem ser possível existir comunicação mediúnica com um Espírito ainda encarnado, mesmo estando distante o corpo desta particular entidade, muito provavelmente diriam: Não, isto é impossível, deve haver alguma outra explicação, pois se o Espírito está aqui presente, se manifestando, então só pode estar morto!
É de se notar na fase inicial de visitação às Casas, muitos nelas comparecem na esperança de afastar, de se verem livres dos assim chamados Espíritos, popularmente conhecidos por “encostos”, muita vez, em função de desavisados terem informado estarem tais entidades lhes acompanhando, “fantasmas” estes considerados como únicos responsáveis por todas as dificuldades e agruras enfrentadas no dia a dia deles.
Todavia, gradativamente, na medida de seus continuados esforços em aprender, e apreender novos conceitos, os iniciantes espíritas passam da condição de deslumbramento e questionamento para a condição de observadores atentos e alguns mesmo de participantes ativos nas múltiplas atividades oferecidas nas Casas espíritas.
A fase dos primeiros porquês e das interrogações vai se apagando lentamente, dando lugar a uma posição mais dinâmica e segura, no lugar da passividade característica, quando compareciam à Casa apenas para receber orientações, informações, conselhos, passes, quem sabe ter uma garrafa de água fluidificada e todo o tipo de apoio possível de ser obtido.
A partir desta nova fase, se ainda não as obtiveram, podem elaborar por si mesmos respostas a muitas daquelas intrigantes perguntas formuladas no passado, porquanto:
- compreendem que os chamados mortos nada mais são do que aqueles que nos antecederam na viajem para o lado de lá, podendo aparecer eventualmente, e sob certas condições, a alguns e não a outros, e na medida em que forem se conscientizando da existência deles aceitando-os naturalmente, espera-se, não mais se amedrontarão, afinal são todos nossos irmãos;
- descobrem haver muitas moradas na casa do Pai, sendo estas ocupadas tanto por Espíritos encarnados quanto desencarnados se agrupando pela lei das afinidades, todas regidas pelas determinações de Deus, e como os Espíritos vêm sendo criados continuamente pelo Sempiterno, estão por toda a parte;
- constatam não serem os chamados obsessores Espíritos votados eternamente ao mal por natureza, estes encontram-se temporariamente afastados do bom caminho, também sendo filhos legítimos de Deus, por conta disto, não se desencaminharão perpetuamente, porquanto, conforme alertou Jesus, nenhuma ovelha do rebanho se perderá;
- percebem não terem os Espíritos vindo de algum lugar especial, determinado canto esquecido do Universo, são apenas os seres vivos chegados ao reino hominal, criados simples e ignorantes há muitos milênios atrás pelo mesmo Deus que nos criou e, agora, naturalmente, continuam a particular jornada de evolução, crescendo sempre intelectualmente, embora de imediato nem sempre moralmente, rumo à aquisição da relativa perfeição passível de ser alcançada;
- aceitam ser a pátria espiritual a única e verdadeira, pois todos estamos destinados a habitar e permanecer neste referido plano, o etéreo será a nossa moradia final, quando concluirmos o ciclo das encarnações necessário a consolidar o nosso aprendizado nos mundos materiais. Enquanto não alcançamos esta condição permanecemos no plano espiritual, o chamado período da erraticidade, aguardando o momento mais adequado para reingressar na carne, ou reencarnar, uns esperando passivamente, outros ativamente, estudando, trabalhando e se fortalecendo para novo período de provas e expiações no Educandário Terra;
- entendem que o corpo não é o dono do Espírito, mas o contrário se dá, o segundo é o dono do primeiro, assim sendo, o Espírito pode se afastar ou emancipar do corpo, sua ferramenta de trabalho, parcialmente e temporariamente, provocando os fenômenos das aparições registradas em nossa História, mesmo a distância de seu corpo, além disso, constatam agora que nós não temos um Espírito, somos Espírito;
- e, finalmente, concluem por qual razão Allan Kardec, assim denominado quando esteve encarnado entre o povo dos Druidas na antiga Gália à época de Júlio Cesar, antiga designação do atual nome francês Hippolyte Léon Denizard Rivail (2), ter intitulado o primeiro livro da Codificação como o fez, pois o Sábio de Lyon se colocou humildemente como elemento de ligação entre os Espíritos superiores desencarnados colaboradores nos variados textos, e toda a Humanidade. Espíritos estes de avançada evolução, incluindo Jesus, o Mestre dos mestres, Espírito Puro, coordenador de todo o trabalho.
Este é um processo bem característico e esperado de muitos buscando a Doutrina, nada a estranhar, seja por curiosidade, outros ainda por necessidade, mas ao final, se tudo andar bem durante esta caminhada inicial, aceitam-se também como integrantes da classe dos Espíritos, fazendo parte deste todo, se veem como elementos da criação, em suma, finalizam se enxergando como Espíritos imortais, filhos do mesmo Pai.
A partir deste momento, tem o caminho aberto para se interessar mais pelo Espiritismo, passam a buscar por iniciativa própria aumentar os conhecimentos, reconhecem ser este conjunto de informações oceânico, formado por uma parte religiosa, outra filosófica e uma terceira científica, tudo abordando, sobre qualquer assunto emitindo uma coerente opinião, e quando a humanidade ainda não está apta a receber novidades explicadas pelas leis eternas, os Espíritos nos deixam com as interrogações a serem elucidadas em futuro oportuno, quando for mais adequado.
Nesta hora, muitos finalmente entendem, sentem intimamente ser o conhecimento da primeira obra básica da Doutrina imprescindível para bem conduzir a própria vida, sem qualquer prejuízo das outras quatro obras fundamentais e das obras subsidiárias. Aquela contém uma fonte aparentemente inesgotável de explicações e, neste instante, O livro dos espíritos se torna um compêndio universal, passam a amá-lo, por que não? Este livro não pertence mais apenas àqueles que o ditaram no século retrasado; se transforma em um livro de uso comum, diário, de cabeceira; embora seja especialíssimo devido ao seu conteúdo, percebem-se também como Espíritos, pois de fato todos somos e O livro dos espíritos se transforma então daí para a frente em O livro de todos nós!
Rogério Miguez
Notas:
(1) Mantivemos a grafia registrada nas duas certidões originais de nascimento, embora esta grafia não seja a usada pela maior parte do movimento espírita.
(2) Esta é a grafia normalmente utilizada pelo movimento espírita.
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