Projeto Allan Kardec: 'Discurso de Allan Kardec [DD/MM/1867]'
Retomando a nossa série de estudos a respeito do acervo do Projeto Allan Kardec da Universidade Federal de Juiz de Fora - UFJF-MG (Saiba mais por este link), aqui temos a contextualização de mais um documento histórico para o Espiritismo: manuscritos originais do codificador espírita provenientes da coleção Forestier e catalogados como "Discurso de Allan Kardec [DD/MM/1867]", contendo importantes detalhes para nossa apreciação, tal como veremos a seguir.
Os originais e a transcrição desses manuscritos estão dispostos publicamente no portal do referido projeto da UFJF.
Eis a tradução para o nosso português:
'Senhores e senhoras, caros irmãos e irmãs espíritas:
O acolhimento que recebemos entre vós, minha esposa e eu, sensibiliza-nos com um profundo sentimento de gratidão, que vos peço acolhais, não obstante a expressão imperfeita com que eu o expresso a vós.
Fiquei particularmente comovido com a oferta que me fizestes para presidir esta reunião de família; se recusei essa honra, não foi porque eu lhe despreze o valor, mas porque não aceito a presidência de nenhuma das reuniões para as quais sou convidado, considerando-me suficientemente honrado com o simples título de irmão.
Essas manifestações de simpatia adquirem seu valor sobretudo da sinceridade dos sentimentos que as ditam; eu as aceito como uma homenagem prestada não ao homem, mas à doutrina, e como precioso encorajamento à pesada e difícil tarefa que empreendi. São flores em meio a muitos espinhos de que o caminho está semeado, e que conservam longamente o seu perfume após serem colhidas. Minha nova estadia nesta cidade ficará marcada em minhas mais agradáveis lembranças. Lamento apenas não poder prolongá-la tanto quanto eu desejaria. Eu ficaria especialmente feliz se pudesse ter aproveitado a ocasião para visitar nossos confrades das províncias vizinhas. Inicialmente, meu projeto era ir até Carcassonne, apertar a mão do digno e respeitável senhor Jaubert, que eu jamais tive o prazer de ver; tive, porém, de ceder à necessidade que me chama ao centro dos meus trabalhos. Quanto mais nos aproximamos do desfecho, menos me é permitido dispor livremente de meu tempo; a urgência do que me resta a fazer não tardará a se fazer sentir, o que me obriga a ocupar-me da tarefa sem descanso, a fim de estar pronto quando a hora soar.
Longe de mim, porém, o pensamento de me orgulhar do sucesso de nossos trabalhos; se eles têm algum valor, o mérito cabe aos bons Espíritos, sem os quais eu não teria saído da obscuridade. Quem sou eu no grande movimento que se opera? Um eixo de sustentação, e me considero feliz por poder acrescentar: um homem de boa vontade. Aceitei a tarefa e esforço-me para cumpri-la com o melhor de mim. Não dissimulei suas asperezas, e foi com perfeito conhecimento de causa e com a previsão de todas suas consequências que nela me empenhei. Bem louco seria aquele que, em uma obra de reforma qualquer, esperasse fazer dela um leito de rosas neste mundo, de modo que aqueles que invejam minha posição não sabem o que desejam.
Todavia, não creiais que os contratempos que da tarefa são inseparáveis fiquem sem compensações; eu as tenho bem grandes e bem suaves, entre as quais devo, em primeiro lugar, colocar o privilégio excepcional de ter testemunhado, ainda durante minha vida, os sucessos da doutrina da qual me fiz o promotor. Cada um que ela faz feliz, cada consolação que ela proporciona, cada lágrima que ela seca, cada coragem abatida que ela levanta pagam-me ao cêntuplo todas as minhas fadigas. Eu digo a mim que uma doutrina toda de amor e de esperança, fundada sobre próprias leis da natureza, não pode perecer, porque ela responde às necessidades mais imperiosas, às aspirações mais profundas dos homens. Sim, é uma enorme satisfação ser testemunha de tais resultados, e poder para eles ter cooperado. Tal benefício vale, e muito, o preço de algumas tribulações.
Que dizer então se, lançando meu olhar adiante, entrevejo a humanidade toda, convidada ao grande banquete da fraternidade, os povos de mãos dadas em nome dos princípios da doutrina, a sociedade regenerada florescer sob o reino da justiça, que é o reino de Deus? Que dizer então se, projetando-o ainda mais à frente, para além da vida terrestre, descubro, com o auxílio da inteligência, sob o véu levantado pelo espiritismo, os esplêndidos horizontes do mundo invisível, percebendo as entonações felizes dos Espíritos purificados pelas novas crenças? Àquele que considera as coisas desse ponto elevado, as vicissitudes da vida parecem diminutos pontos escuros, quase invisíveis, sobre um fundo luminoso; os pequeninos desgostos suscitados pela malevolência são-lhe menos perceptíveis do que a roçadela do inseto nocivo; os respingos de lama lançados pela inveja e o ciúme não o podem atingir, nem lhe perturbar a serenidade da alma. A calma, em meio às tormentas da vida, não é um dos menores benefícios da doutrina, e é um benefício de que goza inevitavelmente todo aquele que assimila seus princípios. Assim como disse Jesus: meu reino não é deste mundo, ele também pode dizer: “Minha verdadeira pátria não está na terra; aqui estou apenas de passagem. Que me importam os desgostos desta estadia momentânea se, por esse preço, posso assegurar-me um lugar melhor em minha morada definitiva!”
Longe de mim também o pensamento de crer-me indispensável; não faltam trabalhadores capazes e dedicados nos grandes canteiros do Senhor, e todos têm sua missão, pequena ou grande, pois ninguém é inútil. Se tivesse falhado em minha tarefa, eu logo teria sido colocado de lado e substituído; do mesmo modo, quando ela terminar – e minha estadia neste mundo não será longa –, um outro assumirá o comando. Quem será ele? Ninguém o sabe, pois ele deverá surgir da sombra. Tudo o que se pode dizer é que, estando o espiritismo nos desígnios providenciais para a regeneração da humanidade, Deus não deixará sua obra inacabada. Aquele que tomará as rédeas do espiritismo revelar-se-á quando chegar o momento, mas não será aquele que tenha concebido tal propósito premeditadamente. Será conduzido a essa posição pela força das coisas, não por sua vontade, revelando-se por seus atos, não por suas pretensões. Talvez nesse momento ele ainda esteja nos bancos escolares ou curvado sob o peso do trabalho para ganhar a vida, como os pescadores do lago de Genesaré, ignorando-se a si mesmo, mas elaborando, como Espírito, a missão que lhe será confiada. Talvez, mesmo, ele já tenha testado suas forças, e faça suas provas nos exercícios da inteligência. Talvez, enfim, ele se encontre em cada uma dessas posições, pois não há missões determinísticas. O Espírito, ao encarnar-se, sabe a que está destinado e o que deve realizar; como homem, ele o ignora até o momento em que deva executar sua tarefa, e frequentemente o faz inconscientemente, isto é, sem desconfiar que cumpre uma missão. A realização, porém, está subordinada às condições que ele preencherá durante a vida; ele pode recuar no momento decisivo; não cumprir as condições necessárias; comprometer o sucesso da missão por seu orgulho ou falta de previdência; não ter toda a abnegação que uma vida de dedicação exige. É por isso que para cada missão importante sempre há vários candidatos, de modo que, se um faltar, possa ser substituído. Os desígnios de Deus não podem ficar à mercê do capricho ou das fraquezas dos homens. Ora, a missão de um daqueles que serão um dia chamados a dirigir o espiritismo será grande, pois a ele caberá consolidá-lo e fazê-lo dar os frutos esperados. Será, eu vos asseguro, um grande Espírito, diante do qual todos se inclinarão, pois para tanto estará vestido de autoridade.
Quanto a mim, apenas abro o caminho e preparo o terreno; mas não estou sozinho; se fui um dos primeiros a apontar a estrada, milhares de outros prestaram sua ajuda eficaz, ao preço de sacrifícios pessoais. Cumpre uma missão todo aquele que trabalhe com zelo, dedicação e, sobretudo, abnegação para a propaganda da ideia emancipadora; todo aquele que, confiante em sua fé e penetrado da importância do objetivo a atingir, persevere até o fim, enfrente a perseguição, lute com firmeza contra os obstáculos, sem se deixar perturbar pelos sarcasmos, pelas injúrias e pela calúnia. O espiritismo já conta, em diferentes lugares, com um bom número dessas pessoas, sem falar de todas aquelas que, numa escala menor, não deixam de prestar útil auxílio à causa.
Todos somos, então, trabalhadores da obra regeneradora; eis por que não aceito a presidência de nenhuma outra reunião senão a minha, pois isso implicaria a ideia de uma preeminência que jamais busquei, não querendo eu que aquele a quem cabe por direito a honra de presidir seja privado disso por minha causa. Se a crítica houve por bem condecorar-me com alguns títulos, os espíritas serão justos, penso, em reconhecer que nem nos meus escritos nem por nenhum outro meio me atribuí nenhum deles. Aqui não está, portanto, nenhum chefe, nenhum mestre, nenhum sacerdote, mas um simples irmão, feliz em comungar com seus irmãos em crença.
O espiritismo, em toda parte, repousa sobre a mesma base: a existência e a manifestação dos Espíritos. Pode-se divergir acerca de alguns pormenores, sobre a maneira de encarar certas questões, e sobre as consequências a serem, dele, extraídas. Alguns acreditam poder aliá-lo às crenças religiosas nas quais foram criados, assim como outros podem querer isolá-lo de tais crenças. Trata-se de opiniões diferentes; não, porém, de motivo para que os que as esposam se queiram mal uns aos outros. Se o espiritismo proclama a fraternidade universal; se considera a liberdade de consciência como um direito natural, e a tolerância como um dever; se ele faz uma lei da caridade, sem acepção de castas nem de seitas, com mais forte razão devem tais princípios ser aplicados entre pessoas unidas por uma mesma crença de fundo. Pode-se não aprovar uma maneira de ver, sem lançar pedras contra aqueles que a professam, o que constituiria ato antiespírita e violação de seu próprio lema. Lastimemos aqueles que as lançam contra nós, mas não as atiremos de volta contra eles.
Os espíritas, qualquer que seja o matiz de suas posições – sejam americanos ou europeus, kardecistas, como se diz, ou outros, seja qual for o nome que se lhes dê –, devem todos, portanto, se forem coerentes com seus princípios, dar-se as mãos, considerando que marcham na direção do mesmo objetivo: a emancipação moral da humanidade.
Pelos motivos que acabo de explicar, permiti-me, senhores e caros irmãos, propor-vos um brinde múltiplo:
1.º À sociedade espírita de Bordeaux e, em particular, a seu digno presidente: parabéns pela ordem e entendimento que presidem aos seus trabalhos!
2.º A todos os zelosos defensores da doutrina; que seus nomes sejam inscritos no panteão do espiritismo para a edificação dos espíritas do porvir!
3.º Aos espíritas dos Estados Unidos da América, que foram os primeiros a abrir o caminho à doutrina nova: saudações de cordial fraternidade!
4.º Aos espíritas do mundo inteiro, sentinelas avançadas da doutrina e que espalham a semente sobre todos os pontos do globo. Possam eles, pelo seu zelo, propagar os princípios de fraternidade, apressar o momento em que os povos verão as lutas sangrentas ser substituídas pelas lutas pacíficas, únicas proveitosas à inteligência!
5.º Finalmente, senhores, nesta reunião de família, destinada a estreitar os laços fraternais por uma santa comunhão de pensamento, não esqueçamos nossos irmãos que partiram antes de nós; que uma boa lembrança os atraia a nós! Prestemos também um tributo de reconhecimento aos bons Espíritos pelos ensinamentos que eles nos dão, pela proteção com que cercam a obra nova e pela sabedoria com que a conduzem. Esforcemo-nos para auxiliá-los, imitando-lhes a prudência.
Senhores, neste brinde coletivo que dediquei aos zelosos adeptos da doutrina não citei nenhum nome próprio; a lista teria sido longa demais. Contudo, não me desaprovareis, penso, se vos propuser um testemunho especial de simpatia e de reconhecimento a dois homens cuja dedicação vos é bem conhecida, ainda que não pertençam a esta cidade. Um, pela firmeza com que tem alçado bem alto a bandeira do espiritismo, considerada a delicadeza de sua posição oficial; o outro pelo zelo inteligente e a toda prova com o qual se consagra ao alívio do sofrimento. Um e outro não somente contribuíram poderosamente para divulgar a doutrina em suas regiões, mas também souberam fazer que fosse amada e respeitada por seu exemplo pessoal. Um é o senhor vice-presidente Jaubert, de Carcassonne; o outro, o senhor Dombre, de Marmande.
Proponho declarar que ambos merecem muito bem o reconhecimento do espiritismo.'
Contextualizando os manuscritos
O ano é 1867, dois antes de Kardec completar sua extraordinária trajetória reencarnatória e já a uma década liderando o movimento regenerador da Terceira Revelação; portanto, temos um Kardec bastante amadurecido na sua empreitada e bem conectado com o andamento dos trabalhos doutrinários, inclusive de outras localidades além de Paris, que era sua cidade sede.
Os presentes manuscritos são, aliás, um ensaio para um discurso de agradecimento por um momento festivo em que o codificador e sua esposa (Amélie Boudet) são recebidos pela Sociedade Espírita de Bordeaux, numa de suas viagens a título de confraternização entre os espíritas e de mais divulgação em prol da sua doutrina. Quanto a essas viagens, Kardec demonstra grande interesse e lamenta não dispor de mais tempo para elas, dado a enormidade de tarefas que ele exerce "sem descanso".
Nota-se aqui a humildade do mestre espírita ao recusar tomar o posto de presidente das reuniões nas outras sociedades às quais participava como convidado, pelo que se justifica: "se recusei essa honra, não foi porque eu lhe despreze o valor, mas porque não aceito a presidência de nenhuma das reuniões para as quais sou convidado, considerando-me suficientemente honrado com o simples título de irmão."
Podemos então imaginar o quanto ele era requisitado, o que consiste numa prova de reconhecimento pela sua obra. De fato, longe de ser meramente um erudito copilador resguardado num escritório burocrático, Kardec era um grande líder — o que não era fácil, pois às vezes era preciso lidar igulamente com situações adversas, devidas às incompreensões das pessoas, ou até mesmo com sentimentos negativos; tanto é que ele chega a dizer: "aqueles que invejam minha posição não sabem o que desejam".
A propósito dessas adversidades, o presente ensaio contém ainda um confissão pessoal das tribulações da missão de liderar o Espiritismo; mas não é um desabafo despropositado: é para exemplificar o peso das responsabilidades, dada a complexidade e importância da coisa. Ao final, pois, Kardec aponta para o enorme saldo e para a recompensa pessoal em ver o progresso da doutrina e os frutos que ela germina nos indivíduos nela interessados: "Cada um que ela faz feliz, cada consolação que ela proporciona, cada lágrima que ela seca, cada coragem abatida que ela levanta pagam-me ao cêntuplo todas as minhas fadigas."
Como líder exemplar, vemos Kardec também valorizar os esforços alheios, ao invés de se vangloriar: "Longe de mim também o pensamento de crer-me indispensável; não faltam trabalhadores capazes e dedicados nos grandes canteiros do Senhor, e todos têm sua missão, pequena ou grande, pois ninguém é inútil"
Ele tinha consciência das pelejas doutrinárias entre os próprios espíritas, implicações muitas vezes banais, sobre detalhes irrisórios e exageros de interpretações particulares; contudo, como líder, ele procurava fazer com que todos se apoiassem nos pontos essenciais do Espiritismo, nos quais todos estavam em acordo, para então minimizar as diferenças: "Os espíritas, qualquer que seja o matiz de suas posições – sejam americanos ou europeus, kardecistas, como se diz, ou outros, seja qual for o nome que se lhes dê –, devem todos, portanto, se forem coerentes com seus princípios, dar-se as mãos, considerando que marcham na direção do mesmo objetivo: a emancipação moral da humanidade."
E por este úlitmo recorte, tomamos nota de que já naquela época se falava em uma "doutrina kardecista", ou seja, num "kardecismo". Mero detalhe, claro; ora, o que importa é a implantação do "reino de Deus" na Terra.
Enfim, era uma ocasião solene, feliz; então Allan Kardec levantou um brinde múltiplo. E viva a Doutrina Espírita!!!
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